sábado, 21 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12481: Bom ou mau tempo na bolanha (40): Não era o Pai Tónio (Tony Borié)

Quadragésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O Cifra já explicou que tinha um diário que uma madrinha de guerra lhe mandou, onde ia apontando algumas cenas que presenciava, ou os companheiros lhe contavam ao regressar de cenários de mato, de savanas, de bolanhas, de emboscadas e tudo o que esses heróis, militares de acção, estavam sujeitos. Ia escrevendo, com palavras e frases muito mal escritas, sempre em cima do joelho, mas lá ia apontando e guardando. Agora abre o esse diário, e não importa a página que lê, é só ataques ao aquartelamento, emboscadas, fornilhos que rebentaram, feridos, e todo aquele, blá, blá, blá, que todos os antigos combatentes, infelizmente conhecem, e alguns no corpo.

Mas mais à frente, vem assim, e o agora Tony, vai tentar reproduzir todo o texto, embora lhe seja um pouco difícil, pois muitas palavras são ilegíveis, e não encaixam, talvez fosse o desespero naquele dia menos feliz, cá vai:

“Hoje, dia 29 de Abril de 1965” 
- Estou triste, não vou escrever nada, mesmo nada, acordei com o mosquiteiro e a cama toda molhada, quando é que esta “porcaria” vai secar, estou triste e angustiado, estou aqui, junto destes jovens, é a mesma coisa que estivesse preso, pois estou rodeado de arame farpado, e ainda por cima aquele janelo, ainda não está acabado, e a chuva entra cá dentro, e a culpa é do Marafado que costuma lá pôr o casaco do camuflado, cheio de lama, a secar, e esta noite, não o fez, não sei porquê. Olha, e sem querer já estou a escrever, mas para quê, só vai sair porcaria, pois estou triste, passei a noite a sonhar que estava na minha aldeia, no vale do Ninho d’Águia, e a estrada de Lisboa ao Porto, estava renovada, o senhor Francisco, que era o cantoneiro, que os vizinhos diziam que pela manhã colocava o carro de mão, a pá e a enxada, na beira da estrada, e a placa uns metros à frente, a dizer “obras”, só para marcar presença, e ia amanhar umas leiras de terra seca, que também diziam que não eram dele, era da “JAE”, ou seja, Junta Autónoma das Estradas, que lhe pagava o ordenado, onde ele plantava, quase sempre fora do tempo, umas favas e às vezes tremoço, que os coelhos e lebres selvagens comiam tudo, mesmo antes de nascer, e eu no seu sonho, via-o a tapar os buracos da estrada, com areia e alcatrão, a que ele chamava “piche”, e depois começou a marcar a estrada, com tinta branca ou amarela, e assim podia evitar acidentes, quando o carro das vacas do senhor Manuel Lagareiro passasse pela camioneta da carreira, que era mais larga, e afrouxava naquela curva, onde havia uma árvore que estava sempre com o tronco pintado de branco, mas onde o “pessoal do contra” lá ia colocar panfletos, e às vezes até pinturas, com letras a dizer coisas que o senhor Francisco, que também todos diziam que era “Bufo’, que na linguagem do povo, era um informador da polícia do estado, e às vezes alterado, dizia:
- Se sei, ou agarro o filho da puta que escreve estas coisas, vou denunciá-lo à polícia e não vê mais a luz do sol, vai para o “Tarrafal”, com toda a certeza.

Depois, no meu sonho, via o pai Tónio, lá ia pela estrada abaixo, descalço, levantava o braço a dizer “olá”, a toda a gente por quem passava, às vezes até tirava o chapéu roto e encorrilhado, de repente vem um carro preto, parou e dois homens grandes e feios, levaram-no à força, pois o pai Tónio também tinha fama de ser do “contra”, foi preso para uma prisão onde estavam muitos companheiros, cercada de arame farpado, onde a água da chuva entrava por um janelo roto e aberto, que naquela altura, não estava encoberto por um farrapo, que um companheiro lá punha todas as noites, e quando acordou, estava todo molhado, e era eu, felizmente não era o pai Tónio, que tinha fama de ser do “contra”.

Tony Borie, 2012

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12446: Bom ou mau tempo na bolanha (39): Uma simples comparação (Tony Borié)

2 comentários:

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro Camarigo Tony

Apreciei o texto do teu diário que partilhas connosco. Dizes coisas muito sérias, encriptadas nas linhas e nas entrelinhas que só o talento do "Cifra" sabe escrever. Transportas-nos a um passado que também conheci, tão distante, mas só lá vão pouco mais de 50 anos. Também a mim, estas memórias e talvez o contágio das tuas lágrimas, me causaram um arrepio e os olhos se umedeceram.

Um forte e fraterno abraço
JLFernandes

Hélder Valério disse...

Caro Cifra

Desta vez o Tony teve uns sonhos (ou premonições?) bastante esquisitos..

É claro que por vezes, se calhar muitas vezes, os regressos do mato não permitiam ter um repouso descansado mas os sonhos/pesadelos do Cifra/Tony foram bem 'pesados'.

Homens de preto a 'levar' pessoas só por serem do 'contra'? Ná, não havia disso... e se houvesse era muito bem feito para não fazerem, pensarem ou dizerem coisas!

Caro amigo, dorme descansado, pelo menos durante mais algum tempo, que essa época não está agora 'na moda' se bem que....

Abraço
Hélder S.