1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:
MEMÓRIAS DA GUINÉ
Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap Mil de Artilharia
12 - Férias da Páscoa em Bubaque - Bijagós
Na Páscoa de 1971 consegui uns dias de férias.
Resolvemos eu, a Lena e o nosso filho Fernando Manuel, passá-las no arquipélago de Bijagós.
Esse arquipélago "ocupa uma área de 1478 Km2, distribuídos por cerca de cinquenta ilhas e ilhéus, que emergem do extenso planalto submarino que se localiza a menos de vinte metros do nível das águas"(1).
As ilhas mais importantes do arquipélago de Bijagós são: Orango, a maior, com 313 Km2; Bubaque, sede de circunscrição, com 48 Km2; Caravela (117 Km2); Formosa (115 Km2); Orangosinho (94 Km2); Roxa (90 Km2); Uno (82 Km2); Coraxe (72 Km2); Maio (52 Km2); Ponta (35 Km2); Meneque (35 Km2); Cagono (27 Km2); Uracane (27 Km2); Rubane (18 Km2); Unhacomo (13 Km2); João Vieira; Cavalos; Meio; Poilão; Soga...
A origem do povo do arquipélago de Bijagós é duvidosa.
Lemos Coelho diz ter recolhido a tradição de ter este povo sido expulso do continente pelos Beafadas.
Durante séculos os Bijagós exerceram pirataria na costa, trazendo nativos da parte continental com os quais se cruzavam.
"Os Bijagós distinguem-se dos demais povos por viverem em regime de matriarcado, no qual a mulher, como dirigente da economia familiar, desfruta de prerrogativas especiais.
É ela que toma a iniciativa do casamento.
O convite é expresso por um cabaço de arroz cozido enviado ao pretendido.
No caso de separação é ela também que toma a iniciativa. Põe a esteira e os apetrechos do companheiro à porta da palhota, significando com isso não o desejar mais no lar"(1).
Álvares de Almeida já em 1594 diz que os homens Bijagós nada mais fazem na vida do que três coisas: guerra, embarcações e tirar vinho da palma.
As mulheres, essas fazem as casas, as searas, pescam e mariscam e todo o mais serviço que fazem os homens em outras partes.
Na Páscoa de 1971 desloquei-me em barco militar para a Ilha de Bubaque, sede administrativa do arquipélago.
A viagem foi muito agradável, de tal forma agradável que, por muitos anos que viva, não mais a poderei esquecer.
O mar estava calmo, o céu luminoso, o ar quente.
Quando comecei a aproximar-me do arquipélago fiquei surpreendido com as ilhas que se me desfilavam ao longe.
Os golfinhos davam grandes saltos na proximidade da embarcação.
Entrando propriamente na área do arquipélago, o mar era um canal e a vista sobre as ilhas deslumbrante.
Até ali nunca tinha feito um cruzeiro no Mar Jónio, visitando as ilhas gregas. Na altura supunha que seria uma situação parecida com a que estava a viver.
Mais tarde, quando tive oportunidade de fazer esse cruzeiro pelo Arquipélago Grego, cheguei à conclusão de que a viagem por Bijagós me foi mais agradável, dando-me maior prazer.
Em Bubaque instalámo-nos na Estalagem do Teodoro.
O Teodoro era um negro, já aculturado, que explorava a única instalação hoteleira de todo o Arquipélago.
Essa instalação era composta por umas tantas palhotas que, exteriormente, eram semelhantes às dos Guinéus, mas que interiormente eram dotadas de um quarto, uma saleta e um quarto de banho, divisões devidamente equipadas.
As refeições tinham lugar numa construção de madeira com dois pisos.
No piso superior havia um amplo terraço sobranceiro ao mar onde eram servidas as refeições.
Jantar nesse terraço com o mar praticamente por baixo, o mar que era um canal, uma vez que defronte, não muito longe, se viam perfeitamente outras ilhas; com os golfinhos a exibirem-se continuamente, jantar naquele terraço era uma situação de encantamento e muito prazer.
Aí encontramos o Major Lemos Pires (que mais tarde viria a ser o último Governador de Timor e hoje é General), que também se encontrava em Bubaque em gozo de umas curtas férias com a sua esposa.
Logo que nos viu convidou-nos para a sua mesa, pelo que desfrutámos da sua agradável companhia por alguns dias.
Mais tarde encontrei também o meu colega Linderbrün (engenheiro técnico como eu mas de uma especialidade diferente - enquanto a minha especialidade era engenharia civil a dele era engenharia mecânica).
Estava colocado como Capitão Miliciano em Bissau no Serviço de Material.
Era bom pescador e marisqueiro.
Muitas vezes nos convidou (a mim e à minha família) para a sua palhota, onde preparava peixe grelhado e assava ostras.
Também estava em Bubaque, nessa mesma altura, o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho (o estratega do 25 de Abril de 1974) mas não se instalou na Estalagem do Teodoro. Era convidado, segundo julgo, do Administrador.
Os oito dias de férias em Bubaque decorreram com muita satisfação e calma.
Fazíamos praia. A algumas centenas de metros da areia havia, mar dentro, uma protecção contra tubarões, que existiam naquelas paragens. A sua presença era notada sempre que víamos cardumes de pequenos peixes fugindo da sua perseguição até terra firme.
Conversávamos com o casal Lemos Pires.
Comíamos peixe de grande qualidade na Estalagem do Teodoro. E muitas vezes apanhávamos um fartote de ostras na palhota do Linderbrün.
Quando as férias acabaram voltámos a Bissau num barco militar.
Nele vinha o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, a sua mulher e os três filhos, o Intendente e a esposa, o Linderbrün e a mulher e outros de que não me recordo.
A viagem foi iniciada dentro da maior normalidade.
O barco vinha superlotado.
Pouco tempo depois de zarparmos de Bubaque, o vento começou a fazer-se sentir com alguma intensidade.
O mar começou a encapelar. As ondas atingiram alguns metros de altura.
O nosso barco parecia uma casca de noz no meio daquele mar imenso.
As pessoas começaram a assustar-se.
O Intendente, homem já de certa idade, foi-se abaixo.
Numa ocasião em que o nosso barco caiu no cavalo de uma onda para aí de oito metros de altura, a esposa do Capitão Otelo agarrou-se às minhas mãos e, aflita, gritou:
- Senhor Capitão, vamos morrer todos aqui!
Serenei-a como pude, enquanto o marido protegia os filhos.
Surpreendentemente, a Lena e o Fernando Manuel enfrentaram a situação com alguma coragem.
Anoiteceu. Estávamos relativamente perto de Bissau.
As luzes da cidade eram perfeitamente visíveis.
Acabámos por entrar no rio Geba que, tal como o mar, estava também com ondas alterosas. Parecia que o tormento nunca mais acabava.
Finalmente aportámos sãos e salvos.
Foi um alívio.
Desta situação o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, mais tarde, em 1990, sendo entrevistado pelo jornal Público, e sendo-lhe perguntado qual a pior recordação de férias da sua vida, respondeu assim:
"- Na Páscoa de 71, na Guiné-Bissau, regressávamos eu, minha mulher e os nossos três filhos da ilha de Bubaque, no arquipélago dos Bijagós, depois de duas óptimas semanas de férias, quando o barco em que seguíamos, superlotado, esteve prestes a naufragar com um rio/mar encapelado e tormentoso como o Geba o pode ser."
Como não mais me esquecerei da viagem de Bissau até Bubaque por ter sido muito agradável e pelos momentos de encantamento que me proporcionou, não poderei também esquecer, por muitos anos que viva, a viagem de regresso a Bissau, pelas razões que descrevi.
(1) - Enciclopédia Luso-Brasileira
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Nota do editor
Último poste da série de 12 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12435: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (11): Passagem de ano na Associação Comercial
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Camarada e amigo Fernndo Valente
Já uma vez critiquei um texto teu hoje penso que com alguma dureza e com pouca justiça. Os homens podem ser bons ou maus para lá das diferenças ideológicas. Gostei muito do teu texto, da descrição que fizeste e gosto da seriedade que sempre pões em tudo o que escreves.
Um grande abraço
Francisco baptista
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