1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2013:
Queridos amigos,
A obra de José Martins Gago é um diário minucioso, ele fala dos cadernos de apontamentos que vai enchendo, seguramente que confrontou todo esse material com a correspondência que ia enviando à sua mulher.
Há camaradas nossos, como o José Martins, que poderão iluminar alguns dos episódios descritos por Martins Gago, valia a pena. É um homem massacrado por dores de estômago, fala e repisa sobre a qualidade da comida, entusiasma-se com as tarefas da horta, o serviço de justiça, o inventário da cantina, as permanentes reparações. Ele descreve Canjadude nesse momento crucial em que a zona do Boé, desertificada, torna este quartel bem como o de Cabuca, muito mais expostos.
Assombra a minúcia, o detalhe, a sinceridade, trata-se de um diário na plena aceção do termo.
Um abraço do
Mário
O diário de Canjadude e Bolama, por José Martins Gago (2)
Beja Santos
“Guiné, Guerra e Poesia, Canjadude e Bolama”, por José Martins Gago, Chiado Editora, 2012, é um diário íntimo, vibrante, a conta-corrente de alguém que fala recorrentemente do seu sofrimento físico, da sua vontade de fazer coisas, de saber cumprir e fazer os seus soldados cumprirem. Obriga o leitor a entrar na intimidade, a viver silêncios e a perceber o que se estava a passar num ponto remoto do Leste da Guiné, muito exposto às deambulações dos guerrilheiros.
É preciso ser muito sincero para escrever, como ele faz em 23 de Abril de 1969 que mal chegam de um patrulhamento lhe entregam o correio e ele, sôfrego, abre. “Nas cartas vinham duas fotografias da minha filhota, uma delas acompanhada da minha mulher. Senti-me senhor da Guiné e do mundo e com ânimo para suportar tudo até voltar. Como não sentir isto depois de um dia de tantas privações e incertezas? Aquilo não eram fotografias, eram elas em pessoa, a dar-me a coragem necessária para terminar o que agora começava, nem que para isso tivesse que lutar sozinho contra aqueles inimigos que nem sequer conhecia”. A horta entusiasma-o, mandou aprofundar o poço, mas todas as obras o empolgam, como arranjar o cano falso da cozinha para escoar a água dos resíduos. Olha à sua volta e também vê desgaste psicológico, a sua relação com os soldados reforça-se e dá-lhe um sentido para esta sua vivência militar. Os problemas de saúdem, os problemas alimentares, são uma opção constante. As semanas passam, as patrulhas prosseguem, os guerrilheiros não estão à vista, não emboscam, não minam, não flagelam. O serviço de justiça e o inventário da cantina também o absorvem. Nutre uma grande admiração pelo comandante da companhia, capitão Pacífico dos Reis. De vez em quando fala no refúgio na leitura, não esclarece o que lê. Aparecem dois indivíduos a vender arroz, veio a descobrir-se terem sido enviados pelo PAIGC. Logo se prepara uma operação em que os dois capturados irão como guias. Foram levados até um acampamento, estava vazio, havia para lá lanternas, marmitas, latas de conserva, livros de escola. Deitou-se fogo ao acampamento. A patrulha seguiu em direção ao rio Corubal, nenhum indício da presença do IN. Em Maio, já sofre de dores violentas do estômago, o enfermeiro admite a possibilidade de se tratar de uma enterite. Ele procura não desfalecer, mas começaram as noites sem dormir, são insónias que se irão repetir, haverá mesmo uma baixa à neuropsiquiatria. Estamos ainda na época seca, há sedes imensas, todos bebem nos charcos água imunda, as consequências vêm depois.
Em Maio, dá-se uma ocorrência inesquecível, ele vai pisar uma mina, seguiam por um trilho quando o guarda-costas lhe disse: “meu alferes não se mexa, pisou uma mina!”. O alferes fica petrificado, raciocinou: se a mina não tinha rebentado rebentaria se tirasse o pé. Mandou instalar o pessoal e afastar os homens, estudou bem a posição do pé sobre a mina. “As minas antipessoal são compostas de uma caixa de madeira retangular de dez centímetros de largura por cerca de vinte centímetros de cumprimento. A caixa tem um disparador na extremidade oposta à que liga a parte de cima à parte de baixo e quando pisado nesta parte a pressão do pé aciona o disparador que faz rebentar a carga que tem junta. Ora eu tinha posto o pé ao lado contrário ao do disparador e por isso não o acionei logo. Mas eu não sabia se tirando o pé, mesmo rapidamente, a mina não rebentaria, era um risco enorme que eu não podia correr. Só havia uma possibilidade de sair dali incólume: mandei cortar um ramo de árvore com uns três metros de cumprimento e logo a seguir apareceu o meu guarda-costas com uma vara que teria cerca de cinco metros, mandei coloca-la junto ao pé, para ver se ela podia exercer a pressão necessária para equilibrar a do meu pé”. E começou aqui um exercício de alto risco que podia ter tido um desfecho trágico. Ele atirou-se para o lado contrário, não houve detonação, os soldados mantinham-se com a vara na mão. A mina não rebentou. E depois foram levantar a mina, ninguém se molestou.
Em Junho, voltam a aproximar-se de Cheche, continua a não haver sinais de vida. Mas a 27 ele vai escrever no seu diário: “Vou começar a narrativa do dia em que pela primeira vez o meu corpo esteve exposto a milhares de balázios”. Saíram de Canjadude e foram até Samba Gana, nada se encontrou. É nisto que aparece um heli de onde sai Spínola. Prepararam uma emboscada noturna numa extinta tabanca de nome Burmeleu. Aqui chegados, deparasse-lhes um trilho, de passagem muito recente. Ele está a inspecionar o sítio quando se ouvem vozes, aí uns cinquenta metros, preparava-se o dispositivo para iniciar um ataque quando surgem dois guerrilheiros, pronto começou o tiroteio. Ora os guerrilheiros estavam a montar uma emboscada em duas frentes, o que significa que dispunham de uma maior flexibilidade no potencial de fogo. Mas aquele pelotão da CCAÇ 5 avançou, o IN recuou. “Apanhámos mais uma arma e gostei de ver o meu grupo em combate, foram uns leões, valeu a pena a preparação que lhes dei”. E passam mais uma noite emboscados no mato. Viram um grupo de oito a dez elementos a caminhar por um trilho próximo da posição em que se encontravam, mandou a prudência em guardar silêncio absoluto. Pelo amanhecer, vieram avisá-lo que ia a passar um grupo de cerca de trinta elementos. Começaram a avançar e cerca de 500 metros à frente caíram numa emboscada. Alguém em espanhol lhe perguntou quem vinha lá. E um tiroteio mais violento do que na véspera acompanhou a resposta deste alferes de Canjadude. Lançaram-se a correr, quem estava a emboscar fugiu. Destruíram várias canoas junto do rio. E os despojos da batalha foram bem magros: alguns carregadores, cartucheiras e barretes. Cedo fez-se sentir, mas tiveram que caminhar muito até chegar ao pé das viaturas, que os aguardavam: “Pus um garrafão à boca e bebi para além dos limites, até o estômago não suportar mais”. A época das chuvas tudo alaga. As insónias prolongam-se. As obras dentro do quartel nunca param. Em Julho, há uma grande operação com tropas especiais, a companhia de Canjadude parte como dispositivo à retaguarda, o inimigo não se apresentou por uma razão muito simples, estava a atacar Canjadude, quem se revelou um herói foi o apontador de morteiro 81, conhecido por 115.
Fazem-se patrulhamentos debaixo de chuva diluviana, continua a não haver sinal do IN. Voltam para as missões de rotina dentro do quartel, ele sofre dores de cabeça horríveis. O registo do diário fala de chuvas, relâmpagos faiscantes, trovões de enlouquecer, a atmosfera a desfazer-se em água. Os sapos, pelo seu coaxar, fazem um barulho de enlouquecer. As colunas a Nova Lamego são obrigatórias, todo o abastecimento é sempre periclitante. Em Agosto, vão novamente em direção a Cheche, passam por Samba Gana, percorrem uma boa extensão da margem direita do Corubal, nada. A 12 de Setembro, o demónio anda à solta, uma GMC acionou uma mina anticarro num sítio que até agora era considerado tranquilo. Dez homens ficaram ensanguentados, nenhum morreu mas alguns deles irão ficar em tratamento vários meses. “Desde que cheguei, ainda não tinha visto a cor do sangue, mas hoje já e da maneira que mais me custou, que foi a dos meus homens, dos meus melhores homens”.
O comandante Pacífico dos Reis preparou uma boa reação, nova patrulha, o IN não frequenta por ora aquelas paragens. Ao fim de seis meses, parte para férias, regressará em Outubro.
(Continua)
Da esquerda para a direita: Capitão de Cavalaria Pacifico dos Reis (armado com Mauser), 2.º Sargento Manuel Farinha Marques, Furriel Miliciano José Martins e Alferes Miliciano José Martins Gago
(Fotografia já publicada no blogue).
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Nota do editor
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Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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