segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12378: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (4): Cinco dias no Niassa; A primeira grande experiência e Dois alferes de uma só vez

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 4

"Cinco dias no Niassa, alguns em barracões"; "A primeira grande experiência" e "Dois alferes de uma só vez"

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

i - Cinco dias no Niassa, alguns em barracões

Chegámos a Bissau na manhã de 22 de Julho. Na véspera, tinha-se realizado no navio um acto de variedades para esconjurar medos. No entanto, vivemos a bordo durante cinco dias, o que nem era de todo mau. Por falta de instalações, o Batalhão 490 só desembarcou no dia 27, ficando alojado na Bolola. Pior não podia ser, sob todos os aspectos. O alojamento era formado por alguns barracões, sem as mínimas condições. Além disso, se de um lado ficava o cemitério, do outro estendiam-se os canais do rio Geba, o grande rio da Guiné, a fornecer-nos exércitos de mosquitos arreliadores nos seus zumbidos, nas suas picadelas. Os barracões não tinham nem portas nem tão pouco janelas e os telhados, de zinco, não garantiam que não chovesse. Aliás, os barracões estavam em obras e ali fui encontrar o alferes Sampaio Alegre, de Anadia, ocupado da logística. Com grande azáfama. Era sempre uma grande alegria encontrarmos camaradas conhecidos, embora o nosso conhecimento fosse muito ténue.

As refeições eram servidas em marmitas (e sempre o havia de ser durante toda a comissão). Era tempo das chuvas e não havia qualquer recinto abrigado que nos protegesse da inclemência do tempo. Quando as obras estavam quase prontas, eis que se verificou a nossa mudança para o Forte de S. José da Amura, onde encontrámos instalações mais apropriadas, mesmo assim, também com algumas deficiências. Mas mais um imprevisto. Quando as instalações estavam prontas a serem desfrutadas, o Batalhão recebia a missão de instalar-se em alguns aquartelamentos do norte da província ou fosse no triângulo da mais activa zona do PAIGC, o Oio. Logo que o 490 desembarcou, foi-lhe atribuída a pior das missões, a de Unidade de Intervenção às ordens do comandante-chefe, Arnaldo Schulz.

Na Amura, um tempo bom, que só durou até 2 de Agosto de 1963, era dada instrução e fazia-se o serviço ao aquartelamento, e havia secções ou pelotões, a dar apoio a outras unidades, quer de carácter logístico, quer de fogo.

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ii - A primeira grande experiência

Quando as companhias partiram com o objectivo da intervenção na zona do Oio, considerado inexpugnável santuário do IN, tendo Morés como centro e fulcro do terrorismo, era zona de mata densa, não era aconselhável que a tropa se fizesse acompanhar da sua bagagem. Já bastaria a cada homem o peso de armas e munições. Calculava-se que o batalhão fizesse uma operação que estava calculada para a duração de 20 dias, mas assim não aconteceu, foram meses de luta e desgaste. E os homens tiveram de haver-se apenas com uma muda de roupa, com a organização de suas posições e com o combate ao IN que se mostrava moralizado e atrevido, para não dizer atrevido e forte.

Ficaram sediadas duas companhias, uma em Mansoa e outra em Mansabá, enquanto iam sendo rendidas, uma de cada vez, pela terceira que se encontrava em Bissau, ou por aquela que estivesse em descanso. Actuaram assim em Mansabá e Bissorã. A minha fez, primeiro, Mansabá e depois Bissorã. E assim andámos em perigos e guerras esforçados até 29 de Dezembro. Vinha aí outra guerra, maior ainda.

Nesta zona do Oio, as três companhias fizeram de tudo: acções de reconhecimento, capinagem e limpeza das bermas das estradas, emboscadas, umas montadas e outras sofridas, mostrando o IN moral em alta e bastante agressividade, remoção de abatizes, patrulhamentos, acções de psico-social, ensino do português, mas também operações de grande envergadura, como a operação “Tigre” e “Adónis A-2” (487), “Verde” e “Adónis 2” (488) e a de maior envergadura “Adónis B-3”, no dias 2 e 3 de Novembro de 1963, no coração do Oio. Morés acabou por ser ocupada pelas nossas tropas, depois de muita luta, alguns mortos e feridos. Ali foi hasteada até a bandeira nacional e houve grande regozijo. Visitou o local o comandante-chefe. Entusiasmado, visitou Morés mais uma vez, fazendo-se acompanhar de alguns mimos para os guerreiros, água, pão e guloseimas, que, de propósito, fora buscar ao QG ( Quartel Generall). Minguada glória.

Duas das grandes emboscadas em que caiu a 489 foram: uma entre Talicó e Morés e a outra na estrada de Bissorã. Estiveram envolvidas nesta operação as companhias 487, que teve um morto por acidente e 3 feridos; a 488, com cinco feridos, enquanto a 489, a mais castigada, registou 1 morto e 10 feridos e a CCS, 1 ferido. Do lado do IN, houve 36 mortos confirmados e 8 feridos e foram ainda feitos 12 prisioneiros, além de vário material capturado. A mulher idosa, Mala Seidi, que levara a companhia 489 à base de Morés, foi baleada pelo grupo guerrilheiro. Nesta operação alguns prisioneiros, porque não iam amarrados, escaparam-se para o seu lado, quando se deu o grande embate.

Localização de Morés e Talicó um pouco a sul

O IN, disposto a defender o seu quartel-general, esperou que a tropa avançasse, como de facto aconteceu com muita dificuldade, muito suor e sangue, mas também muita coragem e valentia. Foram 45 minutos de fogo cerrado e algum sangue, mas com o apoio dos T6, sustentaram o ímpeto e de tal modo que ficaram nessa noite em Morés, mas não em paz, pelo contrário. Toda a operação envolveu 10 acções de fogo, que fizeram obviamente os seus estragos.

Era um perigoso e árduo treino para outra guerra, esta no sul, Ilha do Como, que ninguém tinha ousado “descobrir” até então. Era outro santuário, outro bastião seguro.

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iii - Dois alferes de uma só vez

Não começávamos da melhor maneira na companhia 488. Os alferes Brasil (António Norberto Coelho Brasil), dos Açores, e Fernando Correia (Fernando António da Silva Correia), do Porto foram feridos gravemente numa emboscada, no caminho de Mansabá para Bissorã, atravancado de abatizes, no dia 2 de Outubro de 1963. O primeiro tinha ido como voluntário. Encontrava-se supostamente protegido atrás de uma viatura, quando uma granada bateu na caixa metálica, provocando mil estilhaços. Alguns atingiram-lhe a cabeça e as costas.

O alferes Fernando Correia tinha como missão retirar as abatizes e encontrava-se a 3 kms do quartel de Mansabá. Uma rajada de metralhadora ligeira, desferida sobre ele, ouvidas as vozes de comando, furou o pneu de uma roda de um jeep que se encontrava nas suas costas, desfez-lhe a coronha da espingarda G3, atingiu-o de raspão no braço direito e uma outra bala atingia-lhe o peito, alojando-se entre duas costelas. Houve até alguma discussão no bom sentido, entre o médico, José Hipólito de Sousa Franco, que afirmava não ter o ferido a bala alojada, e o sargento Napoleão a dizer que sim. Foi tratado em Bissau, sendo-lhe extraída, na verdade, a bala alojada mesmo junto do coração. Teve sorte, por um triz.

Evacuados de helicóptero para o hospital de Bissau, o Brasil, ao outro dia, foi transferido para o Hospital da Estrela, em Lisboa.

Sofremos todos um grande sobressalto. Logo dois alferes de uma só vez. Era um aviso grave: havia terrenos que não deviam ser por nós percorridos ou devassados, sem muitas cautelas Era perigoso fazê-lo. O Oio era então o grande santuário da guerrilha.

O comandante, coronel Fernando Cavaleiro, que, na altura, se encontrava em deslocação a Mansabá, foi em socorro, integrado no meu pelotão. Silenciado o IN, reorganizámos o regresso, era quase proibido ir mais além atacar no coração do PAIGC. O comandante ordenou-me que progredisse em fila por um dos dois lados do caminho e por dentro do capim. Não gostei lá muito da estratégia, disse que era perigoso, ainda nos montavam mais emboscadas ou nos apanhavam à mão, refilei, mas ele esteve certo. Não houve mais fogo nem mais sangue nessa manhã, em que, de uma só vez, eu perdia dois camaradas que, entretanto, mereciam um louvor do Comandante Chefe em 18 de Outubro de 1963 e oportuna condecoração.

A partir daí, o alferes Brasil não mais voltava ao teatro das operações, ao contrário do Fernando Correia, que, operado em Bissau, após 15 dias de convalescença, já estava de novo no mato, desta vez, no outro vértice do triângulo do Oio, em Bissorã. Aí desfrutámos de algum sossego, mas fizemos o que fazíamos em toda a parte, acções de guerra contrasubversiva. Com um pouco mais de sorte.

Passávamos o tempo, por vezes cavalgando dois burros, subtraídos ao IN, escoltados pelo cão do meu colega, o Porto, que mandara ir da metrópole.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12360: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (3): Diário de bordo - Manhã azul e Deus ao leme

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