Trigésimo oitavo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
Já passava da uma hora da manhã, eram quase duas, no aquartelamento de Mansoa, felizmente nada se ouvia. O Cifra estava de serviço das suas tarefas, a temperatura era quente e húmida, como sempre não trazia camisa, mas transpirava mesmo, tinha consigo um púcaro dos do café, que alguém trouxe para o centro cripto, e que todos usavam, com alguma água tirada de um barril do vinho, que com o tampão de cima removido, servindo de tampa, era utilizado como depósito da água, que quase todos os dias alguém mudava. A garrafita da coca-cola, que era a sua companheira nos últimos meses de comissão, que continha tudo, menos coca-cola, estava lá dentro, vazia, ao lado do maço de cigarros “três-vintes”. Não corria nenhuma aragem, o Cifra estava cá fora sentado no patamar de cimento, que havia em frente ao centro cripto, o outro militar, que estava nas suas tarefas de receber mensagens, na porta ao lado, onde funcionava o centro de transmissões, ressonava, era bom sinal, não havia mensagens, e não havendo mensagens, eram boas notícias, era sinal de que tudo devia de estar a correr em silêncio, sem combates, feridos ou mortes.
O Cifra, olha em volta de si e, na escuridão, que não era muito acentuada nessa altura do ano, verifica que estava tudo num silêncio abandonado, não havia qualquer sentinela, estavam nessa altura na colocação do arame farpado no lado sul. Já havia alguns abrigos, mas o resto de onde iria ser o novo aquartelamento, era um deserto, aberto, livre e, se um guerrilheiro, com o mínimo de treino militar, quisesse entrar dentro do que iria ser o novo aquartelamento, não só entrava, como até podia ir ver se havia um bocado de pão na cozinha improvisada do Arroz com Pão, que era o cabo do rancho, onde o Cifra ia quase todos os dias roubar um naco de pão. O Cifra, como era um razoável militar, mas um fraco, mesmo fraco guerreiro, com estes pensamentos, por momentos ficou arrepiado, olhou em seu redor e fugiu para dentro do centro cripto, como que a proteger-se e, já fechado lá dentro, continuou a pensar na sorte que tinha e na improvisação que eram as instalações militares em seu redor.
Estávamos numa guerra, onde quase tudo era improvisado e que alguém, ninguém sabe quando e como, começou, sem saber quem e como, a ia acabar. Alguns de nós tivemos única e simplesmente sorte, em regressar a Portugal vivos.
Tony Borie, 2013.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 30 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12366: Bom ou mau tempo na bolanha (37): Temos boca, falamos (Toni Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário