quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12392: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (8): Último dia nos Bijagós, em Bissau e na Guiné. Até um dia destes

1. Oitavo e último episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU

A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

8 – Último dia nos Bijagós, em Bissau e na Guiné... até um dia destes

Eram as últimas horas em Bubaque e o retorno a Bissau, com a amarga sensação de que estes dias memoráveis na Guiné estavam a chegar ao fim. Como o voo para Bissau seria logo após o almoço, levantámo-nos bem cedo para desfrutarmos de mais umas horas na pequena, mas acolhedora piscina de água salgada. Foi uma manhã muito agradável, na companhia do jovem casal de noivos, e esticada até ao limite do possível antes do apronto final das bagagens e do último almoço nesta ilha.

Enquanto nos deliciávamos com uns mergulhos, apercebemo-nos da chegada do avião que nos levaria de regresso a Bissau. Acabado o almoço, na companhia de todos os hóspedes, ficamos aguardar ainda algum tempo que nos transportassem até à “pista” porque a tripulação da aeronave teria ido almoçar a outro lugar.

Durante a espera dei comigo a pensar que, exceptuando-se as semelhanças da natureza no interior da ilha, esta sociedade animista, fortemente baseada na influência das mulheres, não tinha qualquer registo nas minhas memórias. Esta estadia em Bubaque mostrou-me também uma outra realidade. Conheci uma Guiné que não se sente prisioneira de memórias da guerra, tal como é latente em qualquer pequeno rincão e nos habitantes do seu espaço continental.

Pensamentos! E por falar em pensamentos, é inevitável que nos assaltem alguns receios quanto ao voo para Bissau, já que não é fácil esquecer o atribulado episódio da aterragem que até aqui nos trouxera. Mas, como não havia alternativa, só nos restava confiar nos homens e na máquina.

De novo no jipe lá seguimos a caminho da “gare”, uma pequena construção de tijolos e chapa de zinco, uma torradeira aquela hora do dia para quem se atrevesse a ficar lá dentro. Aqui chegados, fomos surpreendidos pela presença de dois aviões estacionados. Um, era naturalmente o nosso já conhecido velhinho biplano, e o outro era um pequeno mas moderno, elegante e colorido aparelho em que predominava o azul e branco.
Perante a nossa admiração, o condutor do jipe informou-nos de que o aparelho pertenceria ao casal homossexual, que eram também hóspedes do hotel.

Chegara a hora da partida. Para além de nós e da tripulação, embarcaram também dois outros europeus que não conhecíamos, sendo um deles bastante “robusto” e que nos disse depois que era o proprietário do aparelho. Motores em marcha para o aquecimento e feitas as verificações finais o aparelho começa a mover-se lentamente, quando se gera algum burburinho a bordo. Alguém se terá apercebido de que uma nova passageira, que em marcha acelerada se dirigia para o aparelho, fazia sinais para que esperassem por ela. Imobilizado o aparelho, a senhora guineense bastante cansada e ofegante lá subiu e se acomodou num dos lugares ainda vagos. Este episódio fez-me lembrar situações semelhantes que acontecem na minha cidade com os transportes públicos. Tudo resolvido e o avião faz-se à pista. A descolagem decorreu normalmente e o avião deixa Bubaque, sobrevoando a praia que frequentamos e a ilha de Rubane.

Calados, expectantes e ansiosos, rogamos aos céus para que tudo corresse bem. Os últimos minutos da aproximação a Bissalanca foram de alguma turbulência mas, apesar disso, o aparelho tocou a pista com suavidade. Respiramos fundo. Com a recordação sempre presente da aterragem em Bubaque, exclamamos: desta já nos safamos.

Seriam cerca das 15 horas e aqui o calor apertava. Na gare, para além dos ocupantes do aparelho, não se via uma só pessoa. De malas nas mãos dirigimo-nos para a praça defronte da gare para se arranjar um táxi que nos levasse até ao Hotti Bissau. Também aqui era o vazio. Percebi que havia falhado ao imaginar que esse elementar serviço num qualquer aeroporto estaria sempre disponível. Estávamos a conhecer a realidade guineense e a “saborearmos” mais um dos encantos da África. O proprietário do aparelho, atento e percebendo o desconforto da situação em que nos encontrávamos, apressou-se a oferecer-nos boleia na sua viatura que estaria a chegar.

Deixou-nos depois no hotel, desta feita por poucas horas. Aqui instalados, fizemo-nos à magnífica piscina para um resto de tarde de relaxe e da contemplação do bonito enquadramento em que estava integrada. Outros europeus, sobretudo cooperantes, eram a nossa companhia neste hotel que era um pequeno paraíso neste pobre, mas único país. Programamos para marcar o fim da nossa estadia, um jantar no restaurante do hotel e convidamos o Candé a partilhá-lo connosco, aquele a quem passamos a considerar como Amigo e que muito contribuiu para o sucesso desta viagem.
Depois do prolongado jantar era a hora do transporte para o aeroporto, com uma paragem no Lusófono para uma última bebida antes do regresso a casa.

O avião partiu com o meu coração muito apertadinho por tantas emoções, mas de uma coisa eu tinha a certeza; voltarei um dia. Senti que uma semana é sempre muito pouco tempo para um primeiro retorno à terra em que vivemos uma parcela da nossa juventude, aquela fase da vida em que escolhemos e confirmamos as nossas opções para o futuro. Mas apesar disso, e como escreveu um dia a esposa de um amigo, nesta terra é possível num só dia lançar a semente à terra, ver crescer a planta e colher as suas flores. É assim nesta terra, os dias parecem imensos e vive-se docemente sem o stress da vida agitada da nossa sociedade. Aqui, são tantas e tão intensas as emoções que nos envolvem e tão grande o choque com as realidades sociais e humanas, que acabamos por crescer e a aceitar o mundo com as suas diferenças e aprendemos a ser mais tolerantes e solidários. Por isso, quando se vem à Guiné é indispensável trazer na bagagem uma atitude mental de disponibilidade para se aceitar as realidades que vamos encontrar. Não devemos comparar nada. Não comparem os preços nem as condições de higiene, não comparem a qualidade dos transportes nem a qualidade de vida. Não comparem nada, mesmo nada. E sobretudo, aceitem e respeitem os diferentes usos e costumes das diferentes etnias. Não se vem à Guiné para se provar nada. O que aqui me trouxe foi a procura das minhas memórias, dos lugares, das imagens e dos interlocutores das vivências do meu passado. Vim ao encontro da minha juventude. Em troca, recebi afectos que julgava perdidos e as mais efusivas demonstrações de amizade, de respeito e até de gratidão. Vá-se lá encontrar a explicação para esses sentimentos. Talvez até nem seja difícil.

Como algo fica sempre por fazer ou por ver, como a não concretização do ansiado encontro com Galé Djaló, voltarei um dia de coração ainda mais aberto, para rever esta terra e as suas gentes. Para os que me acompanharam nesta viagem, em especial a minha esposa que da Guiné só guardava os aerogramas do nosso tempo de namorados, todos ficaram maravilhados com o povo Guineense.
Abençoada viagem.

Neste momento, em que alinhavo os últimos retoques para dar por finda esta série (8) “CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ - A MINHA PRIMEIRA VIAGEM – 1998”, preparo-me para iniciar os contactos para voltar à Guiné em 2012, na minha quarta viagem. A seu tempo, para não correr o risco de ser repetitivo, vos darei um resumo dos momentos mais interessantes do conjunto das posteriores visitas e, por considerar que é no relato da primeira viagem que reside o maior encanto e a magia do reencontro com um passado, que é património da personalidade de cada um de nós.

Zé Rodrigues

Hotti Bissau, acesso à piscina

Deliciosos momentos

Restaurante Asa Branca, último almoço em Bissau

Regresso a Lisboa, paragem no Lusófono com o Candé

A minha primeira viagem à Guiné - 1998 (6) - Vôo para Bissau, estadia e regresso a Lisboa
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Nota do editor

Postes da série de:

17 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12162: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (1): A asfixiante e inadiável ideia de voltar

24 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12195: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (2): A minha primeira viagem em 1998

31 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12226: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (3): A minha primeira viagem em 1998 - A descoberta da nova realidade

7 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12260: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (4): A caminho do Xitole, 26 anos depois

14 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12290: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): O dia seguinte no Xitole com as pessoas

21 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12322: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): Bubaque, a outra Guiné com sabor a férias
e
28 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12356: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (7): Segundo dia em Bubaque, na descoberta do povo Bijagó

1 comentário:

Luís Graça disse...

Zé, que grande lição de sabedoria!... Obrigado, mestre!


(..) "Quando se vem à Guiné é indispensável trazer na bagagem uma atitude mental de disponibilidade para se aceitar as realidades que vamos encontrar. Não devemos comparar nada. Não comparem os preços nem as condições de higiene, não comparem a qualidade dos transportes nem a qualidade de vida. Não comparem nada, mesmo nada. E sobretudo, aceitem e respeitem os diferentes usos e costumes das diferentes etnias. Não se vem à Guiné para se provar nada. O que aqui me trouxe foi a procura das minhas memórias, dos lugares, das imagens e dos interlocutores das vivências do meu passado. Vim ao encontro da minha juventude. Em troca, recebi afectos que julgava perdidos e as mais efusivas demonstrações de amizade, de respeito e até de gratidão. Vá-se lá encontrar a explicação para esses sentimentos. Talvez até nem seja difícil." (...)