sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 – P12396: Memórias de Gabú (José Saúde) (34): Uma ida ao matadouro de Gabu… Seidi, o magarefe

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


As minhas memórias de Gabu

Uma ida ao matadouro de Gabu

Seidi, o magarefe

A memória, essa irrevogável rainha e protetora do ser humano, conduz-nos, amiúde, a excêntricas contemplações que nos transportam a tempos idos e que nos fazem reviver momentos únicos de um passado que jamais esqueceremos e tão-pouco voltará.

Hoje, invariavelmente, trago mais um tema de as minhas memórias de Gabu. Vasculhando a coleção de fotos que tenho em meu poder dos meus tempos na Guiné, e que guardo religiosamente na minha mesinha de cabeceira, detive-me perante uma imagem que me fez reviver mais um naco de recordações que permanecem intocáveis na minha mente.

Uma ida ao matadouro de Gabu e aviar uma boa dose de carne de vaca acabadinha de se ser esquartejada para delírio da malta, dava um prazer enorme a uma rapaziada que se deliciava a trincar a dita cuja, saboreando inevitavelmente a frescura da chiça com uma boa quantidade de cervejas que refrescavam gargantas e saciavam deliciosos prazeres de pomposos pratos devidamente ornamentados.

O homem do matadouro chamava-se Seidi, isto se a memória não me falha, mas julgo que estou certo, não obstante um eventual desencontro de nomes de pessoas com as quais convivi já lá vão 40 anos. O Seidi era um amigo que se desfazia em cortesias. Mas vamos à natureza do requintado local. Em formato de síntese, garanto que a instalação era francamente diminuta, ou seja, exígua. Um barracão com telhado de zinco, com paredes de barro mal amanhado, casa única e uma ou duas facas bem afiadas que faziam todo o trabalho da desossa.

O Seidi, ostentando normalmente o seu harmonioso chapéu, encarregava-se de arranjar a vitela. Seguia-se a ida da novilha para o calvário. Depois, lá vinha a batalha final. Lembro-me em apreciar a facilidade do Seidi no desmancho da carcaça do animal. Convém sublinhar que o homem congregava duas vertentes na arte: era magarefe e cortador da carcaça do bovino.

A faca do nosso amigo não dava mãos a medir. A sua rapidez, digamos estonteante, fazia-me lembrar o matadouro de Beja, a minha urbe de adoção, ou, enquanto puto, o da minha terra natal, Aldeia Nova de São Bento, onde os moços disputavam duras brigas pela conquista de uma bexiga de porco que, depois de cheia com ar de pulmões jovens, servia para mais uma jogatana de futebol num dos largos da aldeia de terra batida.

Como era da praxe levávamos um Unimog para transportar a carga. Comigo seguiam alguns camaradas que se deslumbravam com a peça adquirida. A sua cordialidade, dos camaradas claro, era cinco estrelas. A viagem, afinal, compensava. Uma vaca dava para um “batalhão” de gente que se predispunha então aos prazeres comestíveis.

Com a nossa chegada ao quartel a “encomenda” era distribuída irmãmente. Seguiam-se os maravilhosos cozinhados. Bifes com batatas fritas e arroz, costeletas fritas ou grelhadas, iscas com elas, cozidos com couve, vitela à jardineira, entre outros pratos magistralmente agendados pelo 2º sargento Martins, o gerente da nossa messe.

Dia de carne de vaca fresca era de arrepiar barrigas já fartas de outros manjares. O arroz com salsichas fazia, naquela ocasião, uma interrupção e dava lugar a um rancho substancialmente melhorado. A malta comia que se desunhava com a fartura apresentada sobre a mesa.

No recantado matadouro que se situava perto das tabancas, as vísceras do animal eram jogadas para um ermo onde proliferava um bando de abutres que, sempre à espreita, aguardavam calmamente pela hora do repasto. O Seidi, generoso, alimentava a passarada. Nada sobrava. Como os camaradas recordam os abutres, pássaros de grande porte, alimentavam-se, e alimentam-se, de carne por vezes já putrificada. Aquela porém não tinha esse rotulo. Era fresquinha e recomendava-se.

Mas os dias de matança eram também sintomas para uma espreitadela ao matadouro do Seidi por parte de nativos da população. Normalmente apareciam uns miúdos que regateavam algumas deixas deitadas à mercê dessas crianças por parte do nosso amigo Seidi. Ele, com um ar bondoso, não se fazia rogado aos desejos desses miúdos que imploravam uma pequena dadiva.

Curioso era a indumentária do Seidi nesses dias de intenso trabalho. Os calções e a túnica que resguardava o tronco, apresentavam-se encharcados de sangue do animal. Coisa que para ele não lhe causava problemas acrescidos. Tudo era natural. Estava habituado a lidar com a situação. Para nós não foi fácil adaptarmo-nos aquela vida do magarefe. Mas tudo passou.

Vamos ao preço da vaca mas… em silêncio, não seja a “boca” lançada motivo para uma “porrada” inscrita meticulosamente numa cédula militar que não acusa nenhuma infração: - Se a memória não me falha, creio que o seu custo original rondava os 500 pesos. 500 pesos que seriam depois multiplicados no interior do quartel, comentava-se. Cada cavadela uma minhoca. E lá se arranjavam pressupostos trocos para compor a fatia final ganha em mais uma comissão nas ex-colónias ultramarinas. Diziam as más línguas que o eventual sistema era seguro. E era. 

Mas, segundo se constava também, é que no orçamento geral do exército de então a questão do deve e do haver nas províncias do Ultramar era coisa de somenos importância, dado que os respeitosos profissionais, bem como os seus apaniguados submissos, tudo faziam para repor a verdade orçamental, deixando bem vincada que a contabilidade era selada a lacre e com saldos sempre positivos. Tudo corria maravilhosamente em termos de tesouraria. Nada falhava.

Era uma velha escola que perdurava naquele tempo. O Seidi, por outro lado, honrava os pedidos solicitados. A regra da multiplicação passava-lhe ao lado. A preocupação do talhante era servir a tropa “tuga” e receber, na hora, os “pesos” do trabalho feito.

Recordar é viver!...


Numa conversa com o Seidi, testemunhado pelos camaradas que me acompanharam ao matadouro de Gabu

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

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