sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12399: Notas de leitura (541): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Ainda hesitei se não devia prolongar esta recensão, tais e tantos são os bons parágrafos destes contos em que Alpoim Calvão escreveu na primeira pessoa, estão aqui os feitos das suas duas comissões da Guiné.
Tudo respira sinceridade: a agilidade dos homens a penetrar na mata, as sensações de sede cansaço, contagiantes, a vigilância de tigres antes do ataque, os redutos do inimigo que, afinal, não são inexpugnáveis.
Há para ali uma arte em saber abrir o conto, desenvolvê-lo e concluí-lo, uma exultação do comandante à vontade indómita dos seus homens. Palavra de honra, estão ali contos que mereciam ser reorganizados, tanta é a inspiração e o talento de quem o escreveu.
Que grandes contos!
Que desperdício cultural não os republicar!

Um abraço do
Mário


Alpoim Calvão na primeira pessoa (2)

Beja Santos

Um dos mais brilhantes oficiais da Armada, altamente condecorado e louvado, nomeadamente pelos seus feitos em duas comissões na Guiné, polémico, por vezes irascível, manifestamente dotado para a escrita, como já comprovara nos seus relatórios logo a partir dos acontecimentos em que esteve envolvido na Operação Tridente, andou décadas a prestar esclarecimentos sobre a Operação Mar Verde, o seu contributo no MDLP, operações avulsas, levando a crer que se recusava a redigir a versão dos acontecimentos. Faz comentários, dá entrevistas, colabora em livros escritos pelos outros, no entanto parece tímido em não se expor na primeira pessoa. E, no entanto, em 1994, numa edição de autor, Guilherme Alpoim Calvão falou de si, embora camuflado através de um alter-ego. Em “Contos de Guerra” podemos sentir que se perdeu um escritor, embora seja de admitir que Calvão temesse deixar-se subjugar pela onda emocional, caso tomasse a resolução de escrever, de fio a pavio, todas as suas memórias de campanha. Em “Contos de Guerra” sente-se que por vezes deixa essa emoção à rédea solta. Ele é o comandante que aparece em todos os contos. Esse comandante, à vista de Lisboa, no regresso da comissão militar, sente uma angústia a oprimir-lhe o peito: está a chegar a hora da separação. A memória parece uma hélice em vertigem, recorda tudo o que deve aos seus homens, recorda a sua bravura, o espírito de sacrifício, a sã camaradagem, a alegria do cumprimento da missão. Este relato será muito provavelmente a imagem que Calvão tem de si, no final da obra:
“Sorri, ao lembrar-se da irreverência respeitosa de alguns e da permanente boa disposição de todos. Vê-os mais uma vez, debaixo de fogo, os dentes serrados e avançando sempre. Quantas vezes, foi o exemplo dos homens que o fez seguir!
E sente-se unido a eles por laços imarcescíveis; sente-se amalgamado com eles, no indefinível espírito da unidade. Obrigado, meus amigos!
A noite caiu completamente. À popa, olhando a esteira luminosa que o navio ia tecendo, o comandante sentiu um ronco de choro a farfalhar-lhe na glote. Lágrimas de emoção rolaram-lhe pelas faces. Não sentiu pejo nelas. Porque às vezes as lágrimas não envergonham os homens. Antes os engradecem!”

Ao longo dos contos, a parte mais sólida da obra – já que as reflexões atribuídas a um capelão são mal confecionadas, muitas vezes desajustadas, chegando mesmo ao ridículo – os homens estão em combate, ou a caminho e por vezes na espera. E há combates que demoram horas. No rescaldo, o comandante sente-se recompensado, acredita na nobreza daquela guerra, a ela se entrega nos limites da generosidade. É provável que o que escreveu aqui se baseie em acontecimentos reais vividos na ilha do Como, faz todo o sentido: 
“No acampamento, o comandante contemplava o pôr-do-sol. Pinceladas mágicas enchiam de maravilhosos tons (ouro e vermelho) o céu lá, para as bandas do poente.
Alguns pássaros, saltitando e esvoaçando nos ramos das árvores, cantavam arrebatadamente as benesses e os encantos da criação. Olhou para as palavras que acabara de escrever em amarrotada folha de papel: nelas procurara exprimir toda a veneração, toda a fraternal amizade que lhe mereciam os seus homens. Chamou-os e fê-los sentar à sua volta: simples, humildes e bons. Mas também grandes, heróicos e generosos. Com a voz escurecida pela emoção do momento, leu os louvores que lhes concedera”.

É um contista exímio, tem a noção exata do que é um bom arranque e como se dá uma contextualização:
“A base estava muito bem escondida no meio da mata frondosa e verde. Mais de quarenta casas, alinhadas e vivas, enquadravam uma parada de terra batida, tudo completamente protegido pelas árvores, longe de olhares indiscretos dos aviadores que, como abelhas teimosas zumbiam às vezes por cima, num esforço de penetrar visualmente as massas da folhagem.
Era uma base de treino e de repouso. Situada na forquilha de dois rios, estava praticamente ao abrigo de ser atacada pela tropa. Além do mais, todos os acessos dispunham de postos de vigias, e só efetivos muito grandes poderiam criar dificuldades aos numerosos grupos de guerrilheiros que ali vinham a aprender táticas e armamentos novos e descansar”. O ataque à base será um êxito, levarão de vencida a resistência inimiga, indiferentes ao vendaval de fogo os fuzileiros irão vencer, encontrarão na base armas, munições, medicamentos e mantimentos. E assim se conclui:
“Fora violado o santuário e desfazia-se assim o mito. Esse ente sublime e belo, desejado porque difícil de encontrar, querido porque faz palpitar de alegria o coração dos homens, a vitória, sorrira mais uma vez à nossa gente”.

Haverá uma noite de Natal, celebrada na Guiné, dá nova oportunidade a que conheçamos a têmpera do comandante quando este faz uma alocução aos seus homens:
“A nossa unidade não é apenas mais um destacamento de fuzileiros. Não! A nossa unidade vive, palpita, respira e tem vontade própria! Tem um querer enorme, irresistível, poderoso, que vocês criaram, numa realização admirável! Vós, que vindos de todos os recantos da nação, sois bem os representantes do nosso povo, desse povo bom, sofredor, nobre e simples, capaz dos mais extremos sacrifícios e das mais belas ações! Vós sois o povo! Vos sois a Pátria!”.
Os fuzileiros rejubilam e gritam hosanas ao seu comandante.

Vejamos um outro conto e como arranca, tão fluído, logo a cativar o leitor:
“Agachados no capim, observavam os movimentos dos dois vigias que se aproximavam com ar atento e desconfiado. Deviam ter ouvido o ruído da lancha e vinham averiguar o facto. Os homens continuavam imóveis e alguns deles mantinham sob a visada das armas os dois inimigos que, a cada passo, encurtavam a distância que os separava do fim”.

“Contos de África” é um livro injustamente esquecido, quando possui parágrafos belíssimos, autobiográficos, vigorosos. Há sempre lanchas que percorrem os rios, desembarques, envolvimentos, tiroteios, assaltos. São contos dedicados a atos heroicos de fuzileiros. Por vezes, o comandante erra, descura regras de segurança e nesses momentos fica muito só. Aqueles militares são solidários. O autor, a propósito, explica ao leitor a especificidade daquela guerra, assim:
“Quem já andou na Guiné, quer por prazer cinegético, quer por obrigação militar, sabe o que significa andar no lodo. Põe-se o pé com toda a cautela na superfície escura e escorregadia e afundamo-nos até à coxa. Sente-se uma ventosa que suga as pernas e as prende ciosamente. O esforço necessário para dar um passo é violentíssimo e muitas vezes a prisão do lodo apodera-se das botas e há que caminhar descalço. Se por acaso o lodo é mais fluido e o homem se enterra até ao peito, é preciso desatolá-lo e ensinar-lhe a nadar no lodaçal que se agarra à roupa e à pele, cobrindo de uma estranha película que o calor do Sol transforma em carapaça quebradiça e a água tem dificuldade em lavar”.

Que bom seria que Alpoim Calvão refizesse e tonificasse estas memórias plenas de sinceridade e primorosamente escritas!
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12377: Notas de leitura (540): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Fuzileiros, Comandos, Paraquedistas, foi para muitos uma vida extraordinária, naquele entusiasmo dos 20 anos.

Houve muitos que no 25 de Abril ficaram como mercenários por África, e mesmo alguns entraram para aquela Legião Francesa que aceita gente incógnita(?).

Houve mesmo negócios de "exportação" de combatentes entre certo Almirante luso e o MPLA.

No início da guerra em Luanda (1961) foi complicado lidar com tanta "testosterona".