segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12377: Notas de leitura (540): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Assim, inesperadamente, num alfarrabista da rua do Século, a contemplar estantes com os imensos dossiês de Silva Cunha, então ministro do Ultramar, topo com uma raridade há tantos anos procurada, os contos escritos por Alpoim Calvão, da sua lavra, contando façanhas de fuzileiros destemidos e do seu comandante, um guerreiro incomum.
Há para aqui páginas indispensáveis entre as melhores que se escreveram. Lido e relido, também se percebe como Alpoim Calvão nunca mais se interessou por aquele que deve ser o seu único livro só por si escrito.
O que é pena, a qualquer tempo se pode retocar um livro para benefício da História e dos créditos da literatura.

Um abraço do
Mário


Alpoim Calvão na primeira pessoa (1)

Beja Santos

É facto que ao longo dos anos Guilherme Alpoim Calvão concedeu entrevistas, prestou esclarecimentos, desdobrou-se em depoimentos. Escrito do seu próprio punho só há notícia de um livro publicado em edição apagada, 1994, com o título “Contos de Guerra”. E no entanto esta obra encerra parágrafos excecionais de inclusão obrigatória nas antologias da literatura da guerra colonial.

“Contos de Guerra” tem como autores G. Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira. O que se prende com a estrutura que o brilhante oficial da Armada delineou. Alguém, metaforicamente, morrera: “António Pedro de Albuquerque morreu. Morreu no dia em que terminou o Ultramar”. Legou escritos, impunha-se a sua publicação para se saber, na plenitude a guerra que se travara. Este António Pedro de Albuquerque entregou “um punhado de papéis amarrotados” a alguém que fora capelão, Sérgio Augusto. E assim, ao longo da obra, há os contos de António Pedro (o alter ego de Alpoim Calvão) entremeados por cartas de Sérgio Augusto (porventura o mesmo Alpoim Calvão revelando a sua cultura, vasta e diversa). A estrutura não é convincente, sente-se sem esforço que é o mesmo escritor e a matriz cultural que subjaz a toda a narrativa, compreende-se que o autor pretenda invocar e lançar na reflexão as questões da guerra e os valores do soldados lusitano, o produto final é fruste e tão mais dececionante quanto há nos contos matéria suficiente para a sua reedição obrigatória. Pode também ter acontecido que Alpoim Calvão tenha sentido a falta de calibre no produto final, remetendo para um silêncio injusto o que há de soberbo em “Contos de Guerra”.

Escreve, pois, é indispensável que os outros conheçam aquela guerra. A partir de que representação? Da sua experiência de fuzileiro, como é óbvio. Mas dentro de uma moldura de valores, misturada com a sua sensibilidade e o molde do seu carácter, de que se orgulha: “A guerra é muito mais do que tiros. O isolamento é guerra; as longas vigílias e as intermináveis esperas também são guerra, assim como o desejo, que devora a carne dos homens jovens que a fazem. É guerra o constante esforço de autodomínio com que o homem se norteia, numa atmosfera desequilibrada por muitos fatores. Na guerra, não há uniformes bonitos nem dinheiros fáceis. A lama e o bedum dos corpos, são uniforme que a todos identifica e iguala. O dinheiro não paga o sangue que se verte, nem os terrores da noite e da morte. Na guerra conhecem-se os homens e a palavra fraternidade é qualquer coisa mais do que uma hipérbole literária”.

A generalidade dos contos anda à volta de operações ofensivas, fuzileiros emboscados, conseguindo tantas vezes ter do seu lado o fator-surpresa. Logo no golpe de mão em Canjaja: “Sentia que o adversário o esperaria no caminho que ligava a povoação ao Porto. Sabia que neste existia uma sentinela. E a partir daqui gizou uma traça muito simples: passar em frente do porto, numa lancha de desembarque, com máquina devagar avante para não fazer ruído em demasia, dar à sentinela a ilusão de seguir para a foz e desembarcar sorrateiramente no meio do tarrafe, num local impossível, cerca de um quilómetro para jusante”. Para se compreender aquela gesta que se viveu nas florestas, lalas e mangais, é também importante desenhar os protagonistas. Por exemplo, aquele jovem tenente que apenas há um ano era mais um licenciado em Económicas e que era um condutor de homens, com exato sentido das suas responsabilidades. Está tudo cronometrado para entrar de surpresa na casa de mato, já se ludibriou quem lá vive, eles julgam que as embarcações rumam para longe. Mas o barco será emboscado e há um bravo grumete que não perdeu o ânimo quando viu ali num charco de sangue o oficial comandante da emboscada, pegou em todas as sus forças e a peito descoberto despejou carregador sobre carregador protegendo a guarnição da peça. Um ano mais tarde, tenente e grumete receberão a medalha da Cruz de Guerra. A seguir a peças tão belas, que faz o antigo capelão? Disserta e protesta sobre maldades e calúnias: “Quem ainda não ouviu dizer que a guerra continuava por conveniência dos militares? A verdade, contudo, é que a comissão militar no Ultramar não enriqueceu ninguém. Para ganhar dinheiro muito poucos iriam para a guerra, se é que alguém se ofereceria. Também não foi para enriquecer que os militares portugueses se bateram”. O antigo capelão, mais adiante, reflete sob a condição de herói e covarde: “Tantas vezes se pensa que ser herói é sinónimo de irresponsável. Esse poderá ser herói se for empurrado. Só um néscio é que se pode permitir afirmar que não sabe o que é o medo. Sentir medo não envergonha ninguém. Medo não é covardia, mas sentido das realidades. Covardia será que um homem se deixe dominar pelo medo”.

Naquele dia o comandante tomou posição perto de uma pequena base avançada, o corpo de fuzileiros está em progressão, e é nisto que estralejam as metralhadoras inimigas. É aqui que se revela o homem da ação: “O comandante procurou referenciar as metralhadoras inimigas e conseguiu distinguir sete, colocadas em meia-lua. Percebendo a manobra, fez avançar a secção da retaguarda para a direita, em contra-envolvimento. Os homens lançaram-se em frente, mas foram obrigados a parar pois a enorme frente adversária deslocara-se ligeiramente, para manter as posições relativas. O comandante voltou-se para o tenente que o acompanhava e disse-lhe em voz aparentemente calma: - Tens de arrancar com a seção da direita; estamos em má posição. Com efeito, agarrados ao solo num espaço a descoberto, os homens tinham parado e o poderoso fogo inimigo revolvia a terra à volta, causando os primeiros feridos. O tenente empalideceu profundamente e teve um momento de hesitação. – Se não fores tu tenho de ir eu”.

A ofensiva não pôde ser travada. Há para ali um pormenor, está presente um oficial, “cujos galões e funções não o obrigavam a estar ali, mas que viera para ver”. É admissível que tenha sido o comandante da defesa marítima da Guiné em pessoa, aparece num outro escrito sobre a vida de Alpoim Calvão. O inimigo irá recuar. Este comandante emociona-se, nunca esconde que os seus olhos se marejam de lágrimas e que tem saudades dos seus bravos. E assim se escreve: “O comandante sentia um nó na garganta. Ali, à frente dos seus olhos, estava o inimigo, na iminência de se apoderar de um dos seus homens. Apoiou-se a uma árvore, pesando o dilema: arriscar mais vidas para tentar recuperar o corpo ou ver mãos ávidas arrastarem-no aos poucos para as densas sombras da mata, onde serviriam depois de troféu de propaganda? Subitamente viu alguns homens destacarem-se do perímetro defensivo. Distinguiu perfeitamente as largas espáduas do sargento André, a achaboucada figura do Fonseca, o Botelho, o Dias da Rosa, o ágil perfil de lobo do Piedade Grumete e outros mais. Símbolos da mais pura camaradagem e da mais viril fraternidade – a das armas. Avançaram resolutos, pelo limiar da eternidade, em direção ao camarada morto. Alcançaram-no esmagando as sombras que o queriam levar. Regressaram às linhas. Aos ombros, em vez de um, traziam dois cadáveres: a dádiva generosa do Botelho fora total".

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12359: Notas de leitura (539): "Guiné-Bissau Tera Sabi", Edição Tiniguena (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Luís Graça disse...

Meu caro Mário:

Nunca será demais louvar, aqui, publicamente, o teu esforço, gigantesco, persistente, disciplinado, de pesquisa, inventariação, recensão e divulgação de obras, de ficção e não ficção, relacionadas com historiografia da presença portuguesa na Guiné, em geral, e com a guerra colonial na Guiné, em particular...

No entanto, as tuas notas de leitura, preciosas, devem ver sempre acompanhadas da "ficha técnica" da obra, o que nem sempre acontece, certamente por laso: autor, título, editora, local de edição, ano, nº de páginas, etc.

Isso ajuda o potencial leitor interessado em ler ou adquirir a obraa mais facilmente encontrá-la, no mercado livreiro, no alfarrabista, nas bibliotecas públicas...

E a propósito do autor (e nosso camarada de armas) Gulherme Alpoim Calvão, encontrei, através da pesquisa avançada da PORBASE as seguiintes referências bibliográficas:

1. De Conakry ao M.D.L.P. : dossier secreto / Guilherme Almor de Alpoim Calväo. Lisboa : Intervenção, 1976.

2. Contos de guerra / G. Alpoim Calvão, Sérgio A. Pereira. 1a ed. Lisboa : [s.n.], 1994.

3. Operação trovão : guerra de África : a nossa história / A. Vassalo, Alpoim Calvão. 1a ed. [S.l.] : Intertermal, 1995.

4. O 11 de Março : peças de um processo / Guilherme Alpoim Calvão, Jaime Nogueira Pinto. 1a ed. Lisboa : Futuro Presente, 1995. ISBN 972-8230-01-X.

A PORBASE, como sabes, é a Base Nacional de Dados Bibliográficos.

Um Alfa Bravo fraterno. Luis Graça

http://porbase.bnportugal.pt/

Luís Graça disse...

SOBRE A PORBASE

A PORBASE - Base Nacional de Dados Bibliográficos é o catálogo colectivo em linha das bibliotecas portuguesas, constituindo a maior base de dados bibliográficos do país na qual colaboram a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e mais de 170 bibliotecas portuguesas de variados tipos e dimensões, tanto públicas como privadas. Criada em 1986, a PORBASE é coordenada pela BNP e está disponível ao público desde Maio de 1988.

Aberta à participação de todas as bibliotecas portuguesas, a PORBASE assenta numa filosofia de cooperação com regulamento próprio, visando servir de suporte à investigação e à difusão cultural, optimizar os recursos disponíveis e dar suporte à normalização das práticas profissionais na comunidade de bibliotecas e serviços de documentação portugueses.

Os registos bibliográficos contidos na PORBASE referenciam materiais bibliográficos diversos, nacionais e estrangeiros, sem restrições de âmbito temático ou cronológico. A dimensão actual da Base de Dados ronda 1.500.000 de registos bibliográficos, contendo também mais de 1.200.000 registos de autoridade. O crescimento médio anual da PORBASE, que é actualizada diariamente, é estimado em 100.000 registos bibliográficos.

Desde Abril de 2006, o conteúdo da PORBASE está disponível no Google Scholar permitindo que os recursos das bibliotecas portuguesas sejam pesquisados neste serviço especializado, especialmente vocacionado para o público académico. A PORBASE está também presente na B-On- Biblioteca do Conhecimento Online serviço que reúne uma vasta cobertura internacional de publicações científicas disponíveis em linha.

http://porbase.bnportugal.pt/

(Reproduzido com a devida vénia)