segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Uma manada de vacas, cambando o Rio Udunduma... Possivelmente pertencentes a um notável fula da região (Amedalai, por exemplo, que era a tabanca mais perto)... Só com muita relutância os fulas vendiam cabeças de gado à tropa... O gado era, tradicionalmente, um "sinal exterior de riqueza", um símbolo de "status" social...

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quarta.


4 - A VACA

Para além dos sofrimentos da alma, dos perigos sempre no horizonte mental, das agruras do clima, da omnipresença dos incomodativos insetos, havia, ainda, uma alimentação monótona e quase sempre imprópria para seres humanos.

Os alimentos e quase tudo o que consumíamos estava dependente do seu transporte, desde Lisboa até ao local recôndito onde estávamos instalados, com recurso a sucessivas operações de carregamento e descarregamento, por entre navios, barcos mais pequenos, camiões, aviões e outros meios, suportando dias de exposição ao calor e à chuva, chegando ao destino, muitas vezes já afetados no seu estado de conservação ou literalmente adulterados.

Os aquartelamentos implantados junto à margem dos grandes rios ou braços de mar tinham um abastecimento mais regular, visto que recebiam diretamente, por barco, as suas provisões, mas aqueles, como era o caso de Mampatá, que tinham que organizar colunas de reabastecimento, sofriam os constrangimentos quer de eventuais ataques da guerrilha ou rebentamento de minas, quer das indiscritíveis condições de transitabilidade por caminhos que pareciam rios, na estação das chuvas.
Nalguns casos o transporte planeado para certo dia era adiado, porque numa situação de guerra de guerrilha, o espaço não era ocupado apenas por um dos beligerantes, mas sujeito sempre à presença, ainda que esporádica, do inimigo. Havia aquartelamentos implantados bem perto de tabancas habitadas por população que tinha um comportamento duplo, ora connosco ora com o inimigo. Nestes casos, ocorriam operações em que eram roubadas vacas que depois eram abatidas para abastecimento do depósito de géneros da companhia. Não era o nosso caso.

Estávamos em setembro de 1973, em plena estação das chuvas, e talvez por isso a chegada de géneros alimentícios tardava, e parecia que não havia mais nada que comer para além daquela fastidiosa massa com rodelas de chouriça de colorau, ao almoço e ao jantar. Para ser mais exato havia uma variante, arroz em vez de massa. Mas que fazer? O caçador da milícia bem se esforçava, saindo de noite para a zona periférica do quartel onde esperava horas pelo aparecimento de uma gazela ou de um porco do mato. Mas nada! Nem para ele nem para nós.

Um dia, mais uma vez, interpelei o meu Capitão, dizendo-lhe que até na enfermaria se repercutiam as consequências de uma dieta tão monótona promotora de um agravamento generalizado do estado de saúde da rapaziada. Ele, farto de me ouvir, e não tendo solução para um problema que também o trazia preocupado, propôs-me:
- Ó Carvalho, você, que até se dá muito bem com a população, veja se consegue convencê-los a venderem-nos uma vaca!

Pois o desafio era esse, convencê-los a venderem-nos uma vaca, e se não resolvia o problema estrutural, amenizava-o, pelo menos.

Os Fulas, grupo étnico predominante naquela região, no sul da Guiné, tinham muita relutância em vender uma das suas vacas que pastavam capim no lado exterior da cerca de arame farpado que nos protegia dos ataques do inimigo. Na verdade, a nossa perspetiva eivada de etnocentrismo impedia-nos de perceber que, para eles, as vacas constituíam a sua propriedade que geriam de forma muito parcimoniosa.

Devido às altas temperaturas tropicais e à ausência de meios de frio, os fulas matavam, para consumo próprio, uma vaca de cada vez, numa escala rotativa por entre todos os possuidores de cabeças de gado, sendo que toda a carne de um animal era distribuída em doses proporcionais ao número de membros de cada agregado, para consumo num único dia. Para eles, a venda de uma vaca não lhes interessava, porque alterava todo o esquema estabelecido no seio da comunidade. Era então preciso sentarmo-nos à mesa, como se diz em Portugal, para tentarmos convencer os donos daquelas vacas pequenas e magras a venderem-nos uma.

Confiante na minha facilidade de comunicação com a população de Mampatá, primeiro falei com o Régulo, Aliú Baldé, só depois com alguns dos homens grandes da terra. O régulo é assim uma espécie de presidente de Junta, mas com mais autoridade, talvez um misto de presidente de junta e regedor.
Disse-me ele, naquele seu modo seguro mas ponderado, que o assunto iria ter um bom desfecho, mas que era preciso fazer uma reunião com a presença dos proprietários das vacas, cerca de uma dúzia, e nós os dois.

No dia seguinte, pelas três horas da tarde, lá estávamos todos na morança do Régulo Aliú. Ele próprio, com a paciência de Fula, num tom monocórdico, expôs o objeto da reunião, no dialeto local, permitindo-me, mesmo assim, perceber que argumentou em favor da minha pretensão, dando-me, de seguida, a palavra.

Em rigor aquela reunião não decorria à volta de uma mesa, mas simplesmente nos encontrávamos sentados, cada um sobre uma esteira, no chão de terra. E foi assim, naquela roda democrática, que intervim aduzindo argumentos em favor da minha companhia, usando palavras em crioulo mescladas com muitos termos do dialeto fula. Disse-lhes que estávamos ali todos irmanados no mesmo objetivo, que também, inúmeras vezes colaborávamos com a população nas suas atividades agrícolas e que, por isso, agora que tínhamos problemas de saúde pela falta de uma alimentação variada, precisávamos que nos vendessem uma vaca.

Todos quiseram dar a sua opinião, mas eu estava certo que nenhum deles se iria opor. Na verdade apenas havia que se cumprir aquele ritual, e a mim nada custava deixar passar o tempo e as cerimónias próprias daquele ato diplomático.

Os Fulas eram quase todos boas pessoas e eu sentia-me bem em tratar daquele assunto. No dia seguinte uma vaca foi sacrificada, e centena e meia de soldados tiveram uma refeição melhorada.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

5 comentários:

José Teixeira disse...

Antonio Carvalho porque não fizeste como eu em novembro de 1968? Alta madrugada andava eu a fazer a minha ronda pelos postos de sentinela. Sentado junto do sentinela do posto do caminho da fonte - lado de Colibuia- sentimos o tilintar das garrafas na rede de arame farpado. Diz- me sentinela: é uma vaca que anda ali. Como há cerca de um mês que não víamos carne - época das chuvas, como tu explicas muito bem - eu disse- lhe se voltar a tocar manda para um tiro. Ele assim fez e a vaca, que era do Aliu Baldé o teu é meu amigo, apareceu coxa. Imagina o sururu. Mas ninguém soube quem foi. Tivemos rancho melhorado. Só que o inimigo soube a tempo de nos vir estragar a festa. O grupo de Uane apareceu. Cercou Mampatá e tentou entrar. Queimou onze casas e o Aliu Baldé juntou-se à tropa como m um morteiro 60 e ajudou-nos a correr com os bandidos. Quando acabou a festa, os bifes tinham desaparecido e sabes quem os pifou? Os djuvis que andavam sempre à nossa volta.
Fraternal abraço
Zé Teixeira.

Anónimo disse...

Caro amigo António,

É verdade que os camponeses fulas não gostavam de vender o seu gado e a razão é muito simples, era e continua a ser a única riqueza que têm e com a qual podem contar para se socorrer em casos de necessidade da família e da comunidade ou ainda em casos de calamidades naturais ligadas as suas actividades de sobrevivência. Só quem (sobre)vive da terra, da agricultura percebe as dificuldades e incertezas com que se deparam e num pais onde não existem nem subsídios, nem financiamentos ao agricultor. Para nós, na tabanca, tirar uma galinha já representa um grande sacrifício. E de mais a mais, as manadas representam uma propriedade colectiva onde crianças, mulheres e homens adultos, cada um tem a sua vaquinha para seu sustento (ordenha do leite) e a sua poupança para o futuro a titulo individual e colectivo. Vocês, vivendo no meio dos guineenses, nunca estranharam o facto de nunca terem encontrado instituições de fomento e/ou de apoio aquelas famílias muitas vezes escorraçadas das suas terras e condicionadas pela situação da guerra onde eram mais vítimas do que propriamente actores ?

Para nós que estávamos habituados a escassez e a miséria do dia a sua, parecia-nos um exagero quanto as "queixinhas" dos metropolitanos sobre a comida. No caso concreto de Fajonquito, todas as semanas (segundas feiras?) abatia-se uma vaca que compravam (?) com a ajuda das autoridades locais quando não eram vacas trazidas do mato, e habitualmente, preparava-se um guisado de carne com batatas ou então com massas (esparguettes) e ainda assim acontecia, esporadicamente, na aldeia o desaparecimento de cabritos e galinhas que iam parar no forno do padeiro.

Para a tropa a comida nunca estava boa, mas ainda assim nós os Jubis do quartel debatiamos sempre com insuficiência de sobras, aliás não raras vezes as segundas (dia do abate) era o dia que não queriam ninguém no quartel, corriam com todos, isto falando dos outros, porque os faxinas estes ficavam na caserna a espera que um dos amigos lembrasse de trazer um pouco da sua comida ou da segunda dose quando restava alguma coisa na mesa. O que me valia a mim era ter o amigo Teixeira (Cabo Mecânico), hoje um empresário de sucesso em Lisboa, que nunca se esquecia do seu amigo Chiquinho. Alguns eram bons comilões e por cima mandões, porque traziam a marmita vazia para eu lavar e guardar.

Continua que estamos a gostar, embora me pareça mais do género politicamente correcto, como se costuma dizer e um pouco a esquerda. Não sei se vais ter muitos leitores nos tempos que vivemos.

Um grande abraço,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Caros comentadores e não comentadores:

Excelente é ler-vos, porque significa que o meu escrito vos despertou algum interesse. Não é provável, nem sequer desejável, uma apreciação concordante com o que escrevo. Na verdade, cada um viu e sentiu a sua passagem pela Guiné à sua maneira, em tempos e locais distintos. Muito menos pode um guineense ver-se na pele de quem saiu de Lisboa ou de qualquer aldeia de Portugal e pousou no meio de um sítio estranho. Escrevi em obediência a uma necessidade interior, sem me preocupar com o número de leitores, porque nem sou escritor nem vendedor de livros.
Gostei muito da explicação do Cherno, sobre o gado e o que ele representa para os seus donos e população, mas eu cedo percebi essa característica cultural dos guineenses.
Um abraço para os meus amigos Teixeira, Cherno e todos os tabanqueiros.
Carvalho da Mampatá.

Anónimo disse...

Caros comentadores e não comentadores:

Excelente é ler-vos, porque significa que o meu escrito vos despertou algum interesse. Não é provável, nem sequer desejável, uma apreciação concordante com o que escrevo. Na verdade, cada um viu e sentiu a sua passagem pela Guiné à sua maneira, em tempos e locais distintos. Muito menos pode um guineense ver-se na pele de quem saiu de Lisboa ou de qualquer aldeia de Portugal e pousou no meio de um sítio estranho. Escrevi em obediência a uma necessidade interior, sem me preocupar com o número de leitores, porque nem sou escritor nem vendedor de livros.
Gostei muito da explicação do Cherno, sobre o gado e o que ele representa para os seus donos e população, mas eu cedo percebi essa característica cultural dos guineenses.
Um abraço para os meus amigos Teixeira, Cherno e todos os tabanqueiros.
Carvalho da Mampatá.

ildeberto medeiros disse...

Tambem sou um ex combatente pois gostei imenso de ler estas lindas historias reais porque fas-me recordar os tempos da minha estadia por esta Guine mais propriamento Massaba k3 70/72 construcao da estrada Manssaba Farim Pois Que me desculpem pelas minhas simples palavras porqu e recordar e viver Umforte abraco para todos os ex combatentos do cabo condutor da 2753 OS BAROES