quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quinta.


5 - DORMIR COM O INIMIGO

Conhecia-os bem, porque passavam, de vez em quando, pelo nosso aquartelamento de Mampatá, a caminho do mato, sempre que as operações decorriam na área do sector atribuído à nossa companhia. A sua companhia era de intervenção, o que significava que não tinha apenas uma área fixa à sua responsabilidade operacional, mas intervinham às ordens do comando do batalhão, ora num subsector ora noutro. Era na verdade uma companhia muito prestigiada e com uma atividade operacional muito intensa a Companhia de Caçadores n.º 18, designada por nós a CCaç 18, a que aqueles dois furriéis pertenciam.

A maioria dos seus militares era natural da Guiné, e só a minoria composta pelo capitão, quatro alferes, 1.º sargento, alguns furriéis e uns tantos cabos especialistas, eram oriundos da então chamada metrópole portuguesa. Mas estes dois furriéis que viajavam comigo num batelão de mercadorias, em pleno rio Grande de Buba, eram guineenses de pele bem escura. E se nos conhecíamos de Mampatá e até de encontros fortuitos em Aldeia Formosa, durante aquelas longas horas entre Buba e Bissau, com escala na ilha de Bolama, falámos de tudo, mas especialmente da guerra e das previsões que dela faziam aqueles dois meus camaradas de armas. Sim parecia-me que entre nós os três havia muito em comum, embora não deixasse de considerar que eles estavam no seu solo e no seio da sua cultura.

Ambos eram manjacos, um dos grupos étnicos não islamizados, combatentes do exército português, tal como eu. Os três iríamos desfrutar de um mês de férias, eu em Medas-Gondomar, eles em Bissau. Pelo que tenho presente nenhuma reserva mental se interpunha entre o meu pensamento e as ideias que exteriorizava sobre aquele conflito sugador de bens, ávido de sacrifícios e predador de vidas. Parecia-me, pelo lado de ambos, algum desconforto na impossibilidade de me dizerem tudo o que lhes ia na alma. Sentir-se-iam eles de consciência absolutamente tranquila, cientes de que lutavam dentro do seu território contra, pelo menos, uma parte do seu próprio povo? Ou criam naquela ideia, utópica para uns, realizável para outros, de uma Guiné integrada num espaço pluricontinental e pluricultural, beneficiando da proteção de uma metrópole europeia capaz de assegurar a formação de quadros técnicos e apoio na construção de infraestruturas, num território delas tão carente? Mas como poderia Portugal, então sob um regime de ditadura, garantir a uma ou a todas as suas parcelas dispersas pelas mais diversas geografias, um governo autónomo resultante de uma escolha democrática?

Um era o Furriel Baticã, do outro já se me varreu o nome da memória, mas ambos me pareciam apreensivos quanto ao seu futuro, vestindo uma roupagem que não lhes assentava na perfeição. Mesmo assim, no decurso daquela viagem até Bissau, muito aprendi da sociologia da Guiné, dos usos e costumes, dos dialetos, do comércio esclavagista, do fluxo demográfico da Guiné para Cabo Verde e, posteriormente, da migração de cabo-verdianos para a Guiné.

Desembarcados em Bissau, combinámos beber umas cervejas no Café Bento, logo ali à direita, no início da avenida mais importante da capital guineense, onde daríamos os últimos retoques à conversa e nos despediríamos. E foi assim, na despedida, que os dois camaradas da CCaç 18 me convidaram para passar, na casa que tinham na cidade, os dois ou três dias que teria que esperar pelo meu embarque para o Porto, via Lisboa.
A casa era modesta, para os padrões europeus, mas boa no contexto da Guiné. Num amplo quarto estavam dispostas meia dúzia de camas de ferro ladeadas por uma mesinha de cabeceira. Tudo muito sóbrio num chão de cimento coberto aqui e ali por esteiras de confeção artesanal.

Naquela casa entravam e saiam, continuamente, familiares e amigos dos meus anfitriões, aceitando com naturalidade e até simpatia a minha presença. Por certo todos estavam informados de quem eu era. Pela minha parte sentia-me à vontade, mais seguro até do que se estivesse num local onde predominassem militares de pele clara. Bissau começava a ser um local pouco seguro, a que chamávamos a Saigão da Guiné, sobretudo desde o ataque, com foguetões, ao aeroporto.

Mais tarde, depois das férias que correram vertiginosamente na metrópole, e regressado ao mato, reencontrei estes hospitaleiros camaradas guineenses e até ao fim da comissão tive oportunidade de lhes reafirmar a minha gratidão pela forma simpática como me receberam em sua casa onde passei dois ou três agradáveis dias, num bairro onde só se viam pessoas de pele escura.
Alguns anos depois da independência da Guiné, vim a saber, com algum espanto, que o Furriel Baticã, foi integrado no governo do PAIGC, ao contrário de muitos outros guineenses que foram fuzilados por terem integrado as Forças Armada Portuguesas. Posso então dizer que dormi na casa do inimigo.

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

8 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não foi caso virgem...Já aqui relatámos outros casos, na Guiné, em Cabo Verde, e em Angola, de camaradas nossos que, depois da independência,continuaram o curso "normal" das suas vidas...Obrigado pela sinceridade e a partilha. Luís.




Tabanca Grande Luís Graça disse...

No clã Baticã houve destinos diferentes, alguns trágicos.

A. Murta disse...

Também me aconteceu um encontro fortuito com o “inimigo” em Bissau, já depois do 25 de Abril, quando eu estava de passagem para a metrópole. Contei aqui no Blogue essa história num dos meus postes há muito tempo, mas já não recordo os pormenores. Lembro apenas que caminhava numa rua afastada do centro de Bissau, talvez a que ia para o QG, e entrei numa espécie de tasca ou café para comprar tabaco. Era um estabelecimento escuro e sobre o comprido, mas o balcão era ao pé da porta e via-se bem. Estava já a pagar o tabaco para sair dali, quando do escuro lá do fundo, alguém me chamou: “Alferes Murta!” Virei-me, mas só vi três ou quatro guineenses, que não reconheci, sentados a uma mesa. Achei muito estranho, pois eu estava à civil, tal como todos eles. Perante a minha inação, levantou-se um deles e veio junto de mim, com um ar muito prazenteiro, a perguntar se não o reconhecia. Perante a minha negativa, disse-me que era o cabo que manobrava o obus 14 de Buba. Creio que até me disse o nome, mas não estou certo. Do que tenho a certeza, foi de ele me ter dito, a rir, que era, e sempre fora, do PAIGC. Trocámos umas palavras amistosas, eu ainda a pensar porque teria ele fixado o meu nome, mas depois a conversa acabou mal e eu, já exaltado acabei por lhe virar as costas. Isto porque se falou no nome de um militar muito conhecido (já não recordo) que tinha combatido ao lado da tropa portuguesa e, para quem, ele só via um castigo: fuzilamento. Ainda rebati com alegações de circunstância e convicção minha, pois o tema já dominava as cabeças de toda a gente, mas ele começou a endurecer o falatório e foi então que fui à minha vida. Durante muito tempo não me saiu da cabeça aquele encontro desagradável e muito estranho.

Aos meus amigos Luís Graça e Carvalho de Mampatá, de quem fico à espera que continue a publicar as suas memórias, votos de boa saúde.

Grande abraço,
António Murta.

Anónimo disse...

Esclarecimento

Não existia o termo "manobrador" na artilharia, mas sim serventes.
O 1.º servente era o que introduzia os dados de tiro no aparelho de pontaria que normalmente seria um 1.º cabo, mas na prática era quase sempre o comandante de secção (furriel).
Os artilheiros (soldados) eram do recrutamento da Guiné.
Muitos mudaram de "campo" no pós independência, até por uma questão de sobrevivência. Duvido que algum artilheiro fosse do PAIGC, e a sê-lo não teriam qualquer utilidade operacional para o PAIGC.
Durante o tiro toda a atividade era vigiada e não sabiam calcular os elementos de tiro. Isso era da competência dos graduados.

AB
C.Martins

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Eu alinho com o C. Martins sobre a forte possibilidade de se tratar de estratégias de sobrevivência que era mais fácil ou mais difícil conforme o grupo étnico e tipo de tropa que era. Aqueles que tinham parentes bem posicionados entre os novos senhores era mais fácil, exemplos: Aladje Manuel Mané que era membro influente da ANP (Acção Nação Popular) do Gen. Gov. Spinola reconverteu-se facilmente pois era Beafada do influente clã Mané e primo/irmão de Samba Lamine e de N'zamba Mané. Foi alto dirigente do PAIGC, Presidente da ANP guineense e da CNE por largos anos. O CADOGO Junior, do clã Pepel de Bissau/Bolama, primo/irmão de Nino Vieira, ex-Sargento do exército foi PM e Presidente do PAIGC por mais de 12 anos. Nesses grupos, praticamente os únicos visados foram os elementos dos Comandos.

Pelos vistos o grupo com maiores dificuldades de reconversão e mais hostilizado foi o dos fulas que foram literalmente massacrados e as suas chefias tradicionais decapitadas. De seguida teria sido o grupo manjaco da área de Canchungo onde o clã Baticã (antigo régulo) pagou um alto pela aliança com Spínola e Portugal.

Neste caso deve-se ver caso a caso porque depois dos fuzilamentos o poder em Bissau teve que reconsiderar e chamar ao poder alguns filhos do régulo que tinham fuzilado para não hostilizar os seus primos/irmãos manjacos, mas o mal já estava feito.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Cá tambem houve tanto vira casacas, para não ser atropelado, burgueses metamorfoseados em comunistas e maoistas, e desses muitos fizeram o flic-flac, e voltaram »a posição original, cenas dignas de um grande filme cómico, para não chorar.

E cá não havia tanto o perigo de fusilamento, como na Guiné, embora se falasse no "curro" do campo pequeno.

Cumprimentos

Valdemar Silva disse...

Rosinha
Flics-flacs são exercícios de ginástica no solo (realidade), e é vê-los a flicar ainda por aí. Até parecem borboletas levadas pelo vento. Conheci um que tinha o emblema do "benfica" na lapela e na parte de trás o do "sporting", o do "porto" apareceu um ano mais tarde. Essa rapaziada nem com sessões de fisioterapia da dignidade adquire um posição vertical, continua a andar de mãos e pés no chão das conveniências. E é pena, quanto mais não seja pra agradecer à natureza esta evolução da vida humana.

Abracelos
Valdemar Queiroz

p.s. não quis arranjar comparações com os cucos por serem aves, mas lembrei-me.

Anónimo disse...

Flic...FLAC...flic....FLAC...flic...

"Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas aquele que melhor se adapta às mudanças".

Leon C. Megginson (1963)

Cherno AB