terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21909: Notas de leitura (1341): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte I - O direito, o dever, o prazer... e a dor da memória (Luís Graça)


FERREIRA, José Pardete - O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971. Lisboa : Prefácio, D.L. 2004. 169 p., [12] p. il. : il. ; 24 cm. (História militar. Memórias de guerra). ISBN 972-8816-27-8.

1. O ex-alf mil médico , José Pardete Ferreira 1941-2021), membro da nossa Tabanca Grande,  que, infelizmente,  nos deixou há um mês (*), escreveu, por volta dos seus 60 anos de idade, um livro que eu acho notável (**), e que se pode classificar como um misto de narrativa histórica e de autobiografia, uma e outra, ficcionadas. 

O autor chama-lhe "romance", mas no subtítulo aparece a expressão "novas crónicas da Guiné, 1969/71". O arco temporal da acção   é maior, abarcando, no essencial, a década de sessenta e de setenta (até ao 25 de Abril), com dois acontecimentos marcantes de que o autor foi, ele próprio, protagonista, a crise académica de 1962 e a mobilização, em fevereiro de 1969, para o teatro de operações da Guiné, como médico militar (ia fazer  28 anos em 15 de fevereiro de 1969, e no dia 6 tinha acontecido o desastre de Cheche, aquando da retirada de Madina do Boé).

O "making of" do livro terá durado cerca de 2 anos e foi partilhado pelo poeta, livreiro, amigo e  vizinho de Setúbal, de origem açoriana, Manuel Pereira Medeiros (1936-2013), que também assina o prefácio,  sob o pseudónimo literário de Resendes Ventura. 

Do livro diz o prefaciador que é "um confessado momento de divertimento" (...): "quem conhece Pardete Ferreira,  reconhece-o bem neste seu livro" (p. 7).

Ao rever, também com o autor, os anos sessenta, ele evoca  "o direito, o dever e o prazer da memória, mas acrescenta-lhe a "dor". De facto, "não era para a dor que estávamos preparados" (p. 8), Nós, a geração nascida com ou após a II Guerra Mundial, e que irá fazer a guerra colonial.

E se não tivesse havido a "guerra colonial", pergunta Resendes Ventura ? O que teria feito de e por Portugal a geração de sessenta ?

É uma pergunta meramente teórica, "bizantina", daquelas "tipo sexo dos anjos", que não tem resposta. Na História não há "ses"... Mas  esta geração, a da guerra colonial,  isso sim, tem de "exercer o direito  e o dever de memória" (p. 8).

Uma questão que no virar do milénio parecia fazer ainda mais sentido, face à dificuldade em se " saber o futuro".

Por seu turno,  na introdução ao seu livro, o autor diz que tentou "descrever analiticamente ou analisar descriticamente o que foi o conjunto dos anos sessenta e setenta" (p. 11).

E começa por exigir que se respeite a geração de combatentes, a sua (e nossa) geração que mal ou bem fez a guerra colonial. E respeitar não é erigir memoriais (em ferro, em pedra, em bronze...) como sobretudo o "conceder  aos combatentes do Ultramar o estatuto de cidadão a tempo inteiro" (p. 12).

Não foi isso que aconteceu, no pós-25 de Abril, acrescentando o autor, de forma sarcástica, a seguinte explicação: 

"A Nação exigiu a esta geração o dever do pagamento do Imposto chamado serviço militar obrigatório", para logo a seguir atirá-lo à cara, "com uma escarradela de reprovação e desprezo" (p. 12).

Mas vamos às personagens que animam os 24 capítulos da obra, tantos quantos "o número médio de meses de uma comissão de serviço militar, por imposição" (p. 16).

No essencial são duas as personagens principais cujos destinos se vão cruzar na Guiné,  em 1969/71, nesta narrativa cuja classificação não cabe nos clássicos géneros literários. São eles o Paparratos e o João Pekoff, o primeiro,  um  soldado comando da 105ª CCmds [leia-se, 16ª CCmds, 1968/70],  o segundo, um  "estudante activista de 1962" e depois médico no CAOP (de fevereiro a junho de 1969) e no HM 241 (até ao princípio de 1971).

Sobre o primeiro, falaremos com mais detalhe numa próxima nota de leitura. Mas aqui  fica uma primeira apresentação sumária (pp. 18/19);

(...) “O Gabriel ou Paparratos era um rapaz simples das nossas aldeias, filho de um casal de trabalhadores rurais, que partilhava o seu tempo na escola, nas brincadeiras com os seus inúmeros irmãos e companheiros, no ajudar dos pais e na serventia ao sacristão. Sabia ler e escrever, desconhecendo-se ao certo qual o nível real de instrução que conhecia.

" O contacto com a rude dureza da vida ensinara-lhe a humildade e, provavelmente mais a generosidade do que a valentia. Esta, já a mostrava nas rixas no povoado ou nos campos, em dias de festa da aldeia ou no turbilhão domingueiro que quebrava a monotonia repetitiva do labor quotidiano”.  (...) 

"O ir às sortes foi uma festa (...).  "Uns meses mais tarde, chamado à vida militar, não se fez rogado (...) .

(...) Ofereceu-se  para servir nos Comandos (...). No final do treino foi um dos contemplados com a boina e com o crachá que o faziam distinguir como comando. (...) Pela primeira vez, na sua ainda breve vida o Gabriel se sentiu gente. (...)


BI Militar do alf mil méd José Pardete Ferreira, 
de que o João Pekoff é um "alter egi"

No livro do J. Pardete Ferreira, é notória a parecença  de determinadas situações narradas com "factos e feitos" ocorridos  no TO da Guiné neste periodo: por exemplo, a retirada de Madina do Boé (estava o autor a caminho do CTIG); a  morte dos 3 majores no "chão manjaco" em abril de 1970; a invasão de Conacri (Op Mar Verde), em 22 de novembro de 1969; ou a captura, o evacuação e o tratamento no HM 241 do capitão cubano Peralta (Op Jove).

Daí que não repugnasse  ao autor a ideia de  que este livro fosse  um misto de "romance" com uma vertente "histórica" e outra "autobiográfica" (p. 16).

O Paparratos é, no entanto, uma figura mas ficcionada e "estereotipada" do que o João Pekoff, afinal, um "alter ego" do autor. Mas no final, e para os devidos efeitos (incluindo legais), J. Pardete Ferreira adverte que qualquer semelhanca com a realidade (nomes, figuras, locais, factos, datas, etc., descritos) é "pura coincidência"... Enfim, um velho truque de defesa de qualquer escritor de ficção...

Talvez tenha interesse para o leitor, e nomeadamente o leitor do nosso blogue, saber o seguinte, em traços largos, sobre o autor José Pardete (e o seu "alter ego"  ou heterónimo, João Pekoff);

(i) é lisboeta, nascido em 1941, em plena II Guerra Mundial; 

(ii) vai morrer na véspera de completar os 80 anos, vítima da pandemia de Covid-19;

(iii) filho único, mora, com os pais, no Bairro das Colónias;

(iv) frequenta, desde cedo, o Café Colonial,  que ainda hoje existe, na Av Almirante Reis, aos Anjos (naugurado em 1934 foi tertúlia e café de estudantes, transformado em pastelaria em 1978, hoje Café Pastelaria Colonial); 

(v) passa pela Mocidade Portuguesa e a JEC, enquanto estudante de liceu, e depois  pela Acção Católica, a  JUC e a Pax Romana - Movimento Internacional de Estudantes Católicos, enquanto estudante de medicina;

(vi) pratica desporto de alta competição na CDUL e no Sporting  (onde é, nomeadamente,  guarda-redes nas equipas de andebol)...

(vii) além de cirurgião, especializa-se mais tarde em medicina desportiva...


2. A preocupação maior,  na época, era "o medo de não terminar os estuds e seguir para África" como comandante operacional, de G3 na mão. ou seja, como alferes miliciano atirador de infantaria... (p. 48). E, naturalmente, o cenário mais temido era o da Guiné.

Concluído o curso de medicina, fará em 1968 o COM em Mafra, "com um frio de rachar" (p. 48). E a IAO, no Minho, integrado num batalhão, que admitimos possa ter sido o BCAÇ 2861, mobilizado pelo BC 10, Chaves, que desembarcou em Bissau em 11/2/1969. Deve ter passado,  antes,  seis semanas (!) no Hospital Militar Principal, um curto estágio de preparação para a sua difícil missão na TO da Guiné.

Chegado a Bissau, "saí logo do meu Batalhão e segui para o CAOP" [, que ainda não era o CAOP1], em Teixeira Pinto,  juntando-se ao Fernando Maymone Martins. [No  livro "O Paparratos", trata-se do  alferes milicano médico Moisés Mendes, que exerce também as funções de autoridade de saúde no "chão manjaco" (pp. 31/32)].

"O João Pekoff não tinha grande formação política" (p. 47), apesar de ser um dos "atores"da crise académica de 1962  (e sobretudo  sua testemunha privilegiada e, ao mesmo tempo,  um crítico da liderança estudantil em Lisboa)... 

Delicioso é o retrato que ele faz faz de alguns dos históricos dirigentes  do movimento estudantil dessa época, e de que falaremos em nota posterior: não é difícil descobrir por detrás do pseudónimo Ernesto Figueira, estudante de medicina,  figura o futuro psiquiatra Eurico Figueiredo, ou do  João Santos, estudante de direito, o futuro presidente da República Jorge Sampaio. Ambos frequentavam, tal como o João Pekoff, o Café Roma, junto à Praça de Londres, na Av de Roma (pp.  23 e ss). 

Aliás, interessante também é  "a ronda dos cafés" (pp. 81 e ss.), uma reconstituição do roteiro histórico dos cafés de estudantes e tertúlias da Lisboa dos anos 50, 60 e 70 (até ao 25 de Abril). Haveremos de cá voltar.`(***)

(Continua)


Guiné > Região do Cacheu > Chão Manjaco > 1970 > CAOP > A caminho de uma acção psico-social

Foto (e legenda): © José Pardete Ferreira (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Legendagem do José Pardete Ferreira, completadas por notas nossas, entre parênteses retos, em mensagem com data de 26 de junho de 2011 ("Desfazendo suposições") (***)

(...) Há já alguns anos esta fotografia foi publicada no nosso blogue. Com a força que a minha presença na foto atesta, posso descrever:

De esquerda para a direita:

(i) Major Pereira da Silva (Sherlock Holmes dos bigodes) [, no livro "O Parratos"..., é o major Peres Sousa, de alcunha o Sherlock Holmes,  pp. 41 e ss.];

(ii) [Por detrás do Major, um ] Capitão Miliciano, cujo nome não me lembro, vindo do Pelundo ou de Có, substituir o Capitão Barbeitos [, cmdt da CCAÇ 2366, que esteve em Teixeira Pinto até 27 de maio de 1969, sendo então substituída pela CCAÇ 2585, que teve dois comdts: Cap Inf António Tomaz da Costa e Cap Mil Grad Inf António Camilo Almendra];

(iii) Marinheiro, manobrador do Zebro, [, a navegar no Rio Mansoa, ] com os dois motores Mercury de 40 CV cada, uma bomba para a época;

(iv) Tenente Coronel Pinheiro, 1º Comandante do BCaç [2845, Teixeira Pinto, 1968/70] que dava a logística ao CAOP [, no "romance", é 

(v) Capitão Comando Jorge Duarte de Almeida (abatido no quartel do Batalhão de Infantaria da GNR por um cabo "pirado da mona" - diz-se - mas... uns anos mais tarde; possuidor de linda voz (...) [, era o comante da 16ª CCmds, 1968/70, a que pertencia o "Paparratos", no romance, a "105ª CCmds", pp. 41 e ss, sendo o seu comandante  o capitão Dias Anjos]; 

(vi) [E, por fim, em primeiro plano, à direita,] este vosso camarigo, qual Ícaro renascido das cinzas, visto que num dos postes me confundiram com o Alferes [Mil Cav Op Esp, Joaquim João Palmeiro Mosca], que foi morto com os Majores;

(vii) [Fotógrafo, que obviamente não aparece na fotografia, o] 2º Comandante do BCaç da Logística [, BCaç 2845,], Major Guilhermino Nogueira da Rocha [, no "romance", o major Neves Rico, p. 106].

__________




(...) O Paparratos é uma divertimento sério, supera as situações caricatas e cómicas, na senda da literatura de humor, que se perde na noite dos tempos, comprova que muitas vezes o que se diz a rir é para reter em todo o horizonte da amargura, a sisudez pode ser troça e não é difícil provar que há muito Paparratos que serve de carne para canhão.

É o prazer da memória e, insiste-se, não se conhece um fresco tão vigoroso sobre o meio estudantil universitário daqueles longínquos anos 60. (...)



Sem comentários: