segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21904: Notas de leitura (1340): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
 
É incontestável que a viragem política de Henrique Galvão se irá processar depois das suas viagens e relatórios a Angola e Moçambique, como inspetor superior de administração colonial. Diz preto no branco que há escravatura, miséria, corrupção na administração, nomeações de gente incompetente. Forma-se na Assembleia Nacional uma forte oposição, os interesses colonialistas não podem ser ofendidos e muito menos denunciados. Galvão, completamente desiludido, ingressa na oposição, irá apoiar a candidatura de Quintão Meireles e elabora planos quiméricos para um golpe de Estado.
 
Sentenciado, irá parar a Peniche, serão anos de prisão a que se seguirá uma espetacular fuga do Hospital de Santa Maria e o exílio na Argentina. O que não deixa de ser impressionante é o que aquele homem escreve e o que escreve tem sempre marcas do seu coração em África, indeléveis.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (2)

Beja Santos

“Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro, 2011, é a biografia de uma das figuras mais polémicas de um apoiante de Salazar e do Estado Novo que se rebeliou e se constituiu como um dos mais ferozes adversários do ditador.

Depois de uma acumulação de triunfos, Galvão, deputado da União Nacional e Inspector Superior de Administração Colonial, apresenta na Assembleia Nacional o “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”. A reunião tinha um caráter absolutamente privado, e a denúncia não tem precedentes, saltam das suas palavras verdades com punhos, do género:

“Todos sabemos como são pouco rigorosas as estatísticas demográficas e de produção referentes às colónias africanas. Nem todos, mas muitos sabem que, além de pouco rigorosas, induzem por vezes em erros perigosos. Alguns, mais raros, sabem o resto, isto é, como estas estatísticas são por vezes fabricadas”.

Debruçando-se sobre o recrutamento da mão-de-obra pelo Estado, deixa siderados os membros da Comissão das Colónias:

“Em certo ponto de vista, a situação é mais grave do que a criada pela escravatura pura. Na vigência desta, o preto comprado, adquirido como animal, constituía um bem que o seu dono tinha interesse em manter são e escorreito, como tem em manter são e escorreito o seu cavalo ou o seu boi. Agora, o preto não é comprado – é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre. E ao patrão pouco interessa que ele adoeça ou morra, uma vez que vá trabalhando enquanto existir – porque quando estiver inválido ou morrer reclamará o ‘fornecimento’ de outro. Há patrões que têm 35% de mortos entre o seu pessoal durante o período do contrato. E não consta que algum tenha sido privado do fornecimento de mais quando mais precisar”. 

Finda a apresentação do relatório, Albino dos Reis, o Presidente da Assembleia Nacional, foi conciso no despacho: 

“Foi enviada uma cópia ao Sr. Presidente do Conselho. Arquive-se este original sobre rigorosa reserva.”

Mas Galvão não desarmava, denunciava nas suas intervenções enquanto deputado nomeações erradas, escrevia nos jornais. Meses depois, o novo Ministro das Colónias, Teófilo Duarte, determina que se faça uma inspeção extraordinária em Moçambique, Galvão é o escolhido, irá debruçar-se sobre o povoamento, emigração e economia indígenas, haveria que cooperar com o Governador-Geral. O ministro entregou a Galvão instruções complementares secretas, cinco folhas datilografadas que versavam sobre diversos aspetos da realidade moçambicana. Também o ministro pretendia saber se seria viável a ideia de substituir o recrutamento individual (de trabalhadores para S. Tomé) por outro coletivo, abrangendo não só famílias mas ainda grupos de aldeias limítrofes. 

Chegado a Moçambique, Galvão atira-se ao trabalho, sem deixar, no entanto, de caçar. Escreve o autor:

  “Galvão depara-se, em Nampula, com uma operação de recrutamento de serviçais para S. Tomé e envia um telegrama ao Ministro das Colónias. Alerta-o para a gravidade do despovoamento e para o facto de esse recrutamento só se dever efetuar se fosse largamente excedido o número de indígenas que a lei permitia recrutar. Em outubro, Galvão escreve ao Encarregado do Governo-Geral de Moçambique: “O estado de miséria em que se encontram e apresentam os condenados e desterrados cumprindo pena em Marrupa excede todos os limites e falta de decoro e humanidade. A maioria não tem qualquer vestuário nem agasalho ou se apresenta com farrapos sórdidos de casca de árvore. E assim se encontram não só nos calabouços como nos trabalhos públicos em que são empregados”.

Galvão regressa profundamente indignado com a miséria e os abusos que presenciara. Em 1948, o Ministro determinou que Galvão se deslocasse com urgência a Angola, a fim de aí completar o estudo da questão indígena iniciado em 1945, sob as orientações de Marcello Caetano. Embarca em julho e regressa em dezembro, verá desmandos da Administração Colonial verdadeiramente revoltantes. Galvão escreveu a Salazar pedindo-lhe para lhe expor verbalmente o drama político, económico, social e o caos administrativo que encontrara em Angola. 

Será recebido pelo ditador em janeiro do ano seguinte, nada transpirou. E o relatório enviado ao Ministro era uma bomba: o Governador-Geral tinha procurado encapotadamente torpedear a inspeção; tinham-se instituído novas causas de despovoamento, o fornecimento de trabalhadores era pura escravatura, os indígenas eram arrebanhados à força para trabalhar em S. Tomé, e muito mais. Iniciara-se uma guerra aberta com sólidas instituições do Estado Novo, um amigo de Salazar, Mário de Figueiredo, líder parlamentar da União Nacional, troca palavras ásperas com Galvão, forma-se um círculo de hostilidade, negam-se os fundamentos das denúncias, 

Galvão sabe que está isolado. Lança-se na verrina, a sua escrita torna-se num permanente descasca pessegueiro, escreve artigos extremamente ácidos, uma ironia velada, mas os leitores percebiam para onde iam as flechas. Mário de Figueiredo participou disciplinarmente de Henrique Galvão, este foi recusado como candidato da União Nacional, amargurado, Galvão é informado que um juiz determinara a abertura de diversos processos disciplinares e criminais contra dezenas de funcionários angolanos.

Em 1951, Galvão apoia a candidatura de Quintão Meireles, é o seu homem de comunicação, escreve furiosamente comunicados, faz denúncias, só pensa no derrube do regime salazarista. No ano seguinte, a PIDE invade a sede da Organização Cívica Nacional, de que Galvão faz parte, virão a descobrir-se documentos que, embora quiméricos, faziam supor que Galvão urdira planos para um golpe de Estado. 

Começa o calvário das suas prisões, é transferido para o Forte de Peniche, tinha sido condenado a três anos de prisão celular. É um período que Francisco Teixeira de Mota descreve com ricos pormenores até chegarmos a panfletos da autoria de Galvão que tinham o título de Moreanto (Movimento de Resistência Anti Totalitária), anti salazarista, anti fascista, anti nazi, anti comunista e anti negocista, os ataques a Salazar eram vitríolo. 

Em contestação pela sua prisão, Galvão vai fazer greve de fome, toda esta atmosfera de peripécias é descrita com enorme vivacidade, Galvão não desarma, é transferido para o Hospital de Santa Maria, Galvão escreve a toda a gente, incluindo o Cardeal Patriarca de Lisboa. E dá-se o julgamento do Moreanto, Galvão é condenado a 16 anos de prisão maior.

 A partir de agora, aquele ativista do Império só podia contar consigo próprio, como observa Teixeira da Mota: 

“Se não se invadisse, ou enlouquecia ou morria na prisão, e as duas últimas hipóteses eram inaceitáveis para o seu orgulho pessoal e para o ódio que tinha a Salazar” e é no Hospital de Santa Maria que terá lugar a sua rocambolesca fuga.

(Continua)
Imagem do livro "Henrique Galvão, Um Herói Português". Músicos guineenses na Exposição Colonial do Porto. Fotografia de Domingos Alvão, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21869: Notas de leitura (1339): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

É uma pena que os heróis políticos (terá havido outros?) do nosso Séc. XX sejam heróis frustres. Raul Proença, os heróis dos 19 golpes de estado e tentativas revolucionárias contra o fascismo, Norton de Matos, Marques Godinho, Vassalo e Silva, Delgado, Galvão etc.
E o gozo que dá aos detractores de hoje encontrar aquele falhanço ou imperfeição que lhes permite condenarem-nos e prosseguir com a consciência tranquila!
Foram-no por falta de apoio de todos os seus contemporâneos - estrangeiros e principalmente nacionais - na sua luta contra um poder absoluto e aceite, num prodígio de desonestidade intelectual impróprio dos cérebros lúcidos do tempo, mesmo dentro do "sistema".
Daí a resvalar-se para o chavão de "o gajo é maluco" foi um passo, isto para não falar dos que se lamentavam de que, tendo-se "metido naquela coisa da pelitica, perdeu o pãozinho dos seus filhinhos". Uma justificação coxa, mas alardeada por todos aqueles que sabendo que era necessário fazer algo, por pouco que fosse, para que as coisas mudassem, optavam pelo princípio de que "a minha pelítica é o trabalho e tenho-me dado muito bem com isso", como dizia o Raul Solnado.
No fundo, como dizia o Fernando Pessoa, "quanto melhor é, quando há bruma, esperar por D. Sebastião, quer ele venha ou não".

Um Ab.
António J. P. Costa

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada

Volta à antena para recordar um episódio bíblico do Antigo Testamento: "A Morte de Abimelech".
Trata-se da morte de um individuo absolutamente execrável que foi matando paulatinamente todos o seus 70 irmãos, ao mesmo tempo que ia subindo na escala hierárquica do poder da sua tribo e, chegado ao topo, lá se fixou, sem contestação. Pudera!
Pondo de parte muita coisa, teve uma morte inglória e o irmão mais novo, o único sobrevivente, comentou que a ascensão dele só pode ser comparada à de uma silva que chegou a rainha das árvores, enquanto as árvores nobres: o cedro, a oliveira, a palmeira, a figueira foram recusando sucessivamente essa dignidade. Estou a falar de algo que se passa na Palestina e, por isso, as árvores que recusaram opor-se-lhe são aquelas. O Padre António Vieira narra este tacto e comenta-o com detalhe deixando a lição de que os medíocres só se afirmam, quando os homens de bem desistem de os combater. Durante muitos anos este episódio não foi divulgado pela hierarquia da Igreja. Há quem diga que era por ser pouco compreensível, mas no Séc. XVIII era ainda divulgado e contado nas edições da Bíblia.

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Na África ao sul do Saara, era violentíssimo nos anos 50, 60 e mesmo perto do 25 de Abril subtrair às famílias os jovens para irem trabalhar com o "branco", fosse para fazendeiros do café, (Angola) ou mesmo para o Estado, fosse na cidade, ou em Estradas no interior, ou para as minas da África do Sul, onde (constava) que ganhavam mais dinheiro, e vinham de lá com boas fardas e botas muito boas.

Era talvez mais violento para as familias (toda a sanzala)do que para os próprios jovens "Contratados" porque é de contratados que Galvão nos relatórios tratava e do tratamento que ele condenava.

Falo de Angola que conheci bastante bem, compreendo perfeitamente Galvão daquilo que viu nos anos 40, e que eu nos anos 50 (1958) numa brigada de cartografia trabalhei pela primeira vez com contratados recrutados nas sanzalas por chefes de posto.

Penso, digo, penso, que foram corrigidos alguns maus tratamentos que Galvão atacou, porque os contratados que trabalhavam connosco, não queriam regressar mais à sua sanzala, após o contrato (6 meses) e foi com muita pena deles que tiveram que voltar para a familia.

De facto, jamais se devia colonizar fosse quem fosse.

Mesmo o recrutamento para a tropa de indígenas era um tormento para as famílias, (eu vi devido à minha actividade no interior de Angola)que era muito pior para a familia do que para os proprios jovens, e o fim da tropa era outro castigo, mas agora era para os jovens, que não se adaptavam mais â vida de "indigena".

Colonizar, europeizar, ou seja, no conceito eurocentrista, civilizar, devia ser impedido, mas não foi impedido, mas também não foi terminado, ficou nem sim nem não.

E pelo que ficou mal feito, a Europa pagará.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Mais uma vez, as coisas estavam claramente mal.
Mas era necessário mascarar, mais para gastos de casa do que modificar algo. O que se pretendia era continuar a fumar, calmamente sentados no barril de pólvora que nunca rebentaria.
No fim era preciso simular uma modificação para que tudo ficasse na mesma ou próximo disso.
Tapava-se o Sol com a peneira e ficávamos farisaicamente tranquilos.

Não entendo muito de relações de trabalho, mas aquelas que aqui ficam enunciadas, mesmo em resumo, são muito más.
E depois ainda é a Europa que paga? O quê e porquê?
Naquele tempo, quem denunciou aquelas "relações de trabalho" foi trucidado e qual é a culpa de quem estava no terreno e implantava aquelas práticas? Não tem culpa nenhuma?

Um Ab.
António J. P. Costa