sábado, 20 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21923: Os nossos seres, saberes e lazeres (437A): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (1): (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Insista-se que foram férias repartidas, não se andou por Ceca e Meca e Olivais de Santarém, mas deu para visitar Óbidos e muitas redondezas, Pedrógão Pequeno até à Serra da Estrela, regressando por Portalegre. Procurou-se não contar mais do mesmo, é verdade que já se teve com a neta nas Penhas Douradas, por outro itinerário, com paragem no Fundão e na Covilhã, desta feita assentaram-se arraiais em Manteigas, transformado em pólo irradiante. E aqui fica o registo de uma manhã em que se respeitou o folheto disponibilizado pelo INATEL de Manteigas, houve bom tempo com aquele frio montanhoso do costume, deu para nos maravilharmos com o Cântaro Magro, Nossa Senhora da Boa Estrela, o Vale Glaciário do Zêzere, e indo por aí fora chegou-se ao Poço do Inferno, isto tudo depois de estarmos no ponto cimeiro de onde se avista um encadeado de cordilheiras que pareciam vogar na bruma.
Assim se passeou por um mundo que tem pergaminhos na fundação da nacionalidade, os primeiros reis precisavam como de pão para a boca das ordens militares e das populações fixadas. Séculos adiante, já não era a mourama que intimidava, e daí os soberbos castelos, como o de Almeida, de onde se podia avistar a intrusão castelhana. Tempos passados que deram o português do presente.
Um abraço do
Mário


De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (1)

Mário Beja Santos

Ao passar pela vila de Manteigas, passei pelo serviço do Parque Natural da Serra, à cata de literatura. Enquanto bebericava um café, li uma brochura ali adquirida sobre o povoamento da Serra da Estrela na Idade Média. Os primeiros reis deram-se naturalmente ao cuidado de conceder forais e benefícios tanto às ordens militares como às populações, era vital a sua fixação. Manteigas consta que terá nascido em 1188, em período idêntico povoações do concelho da Covilhã, os concelhos da Serra da Estrela – Linhares, Guarda, lê-se no documento a importância que na época tinha Folgosinho e Valhelhas, o Zêzere era o ponto extremo do limite Sul. Aspeto curioso, desenvolvia-se junto a Seia a cultura do vinho já no século XI. O autor do trabalho, José David Lucas Batista refere a fala de Manteigas: “Insere-se nos falares setentrionais de Portugal, particularmente no referente ao concelho da Covilhã. Limito-me a dar algumas caraterísticas fonéticas como a diversificação em u – luguar, por lugar; puai, por pai; pué, por pé – em sílaba tónica. Registe-se ainda a ditongação em i e em u por influência das palatais ch e j, como em feicho, por fecho; couxo, por coxo; esteija, por esteja; louja, por loja”.
Esta serra onde se insere o Parque Natural vai lá de cima desde Celorico da Beira e desce até Tortosendo. Manteigas está situada no Vale Glaciário do Rio Zêzere, cresceu com duas paróquias, de Santa Maria e de São Pedro, a sua economia está ligada à pastorícia, aos lanifícios, à floresta e agora ao turismo. O mapa com propostas de passeios de toda a ordem é aliciante, e os chamados pontos de maior interesse dão pelo nome de Poço do Inferno, Cântaro Magro, Covão d’Ametade, Nossa Senhora da Boa Estrela, as Penhas Douradas e a Torre. Há tentações de viajar dentro do parque até Seia e Gouveia, mas em Roma é-se romano, primeiro o que à volta de Manteigas se oferece.
Rezam os folhetos que as paisagens são de uma beleza incomparável, fala-se imenso do verde. Começa-se aqui pelo escalvado, aquele alcantilado que é um dos motivos para passeios terrestres na Grande Rota do Zêzere. O rio começa no coração da Estrela e em Constância entra no Tejo, há pois 370 quilómetros que podem ser percorridos de bicicleta, de canoa ou a pé, dizem que é uma experiência única e memorável. Contemplamos demoradamente o bravio da pedra e a estrutura rala da vegetação, mais adiante iremos ao Vale Glaciário, deixamos o Poço do Inferno para depois, tentou-se a estrada, deu para perceber que a afluência é enorme, retrocedeu-se até à braveza destes maciços de pedra, até dá para imaginar que por aqui andou Viriato a fazer a vida negra às legiões romanas. E não me digam que esta beleza agreste não é de cortar o fôlego, não me digam que o Cântaro Magro não estarrece pela sua imponência e solidão.
Talhada na rocha temos Nossa Senhora da Boa Estrela, quantos pastores por aqui têm circulado benzendo-se e pedindo a proteção da Senhora? Contempla-se e dá para pensar se a parte é maior que o todo, isto é, o momento espiritual está na imagem ou se esta pode ser destituída do gigantismo da pedra e até do entalhe da escadaria. Muito provavelmente, as duas estão certas mas é o gigantismo da pedra que dá o ar solene ao formidável altar ao ar livre, a presença do divino neste maravilhamento natural.
Há muita coisa para ver, e convém não perder de vista que segue no grupo uma criança de nove anos que pergunta que se farta. Porque é que se chama Lagoa da Paixão? O que é que quer dizer Covão d’Ametade? O que é que tu queres dizer quando falas em afloramento granítico? Quando falas em cântaros, significa o quê? O pobre avô lá vai falando das faias, daquela água abundante que brota debaixo de cada pedra, procura ser mais terra-a-terra falando da planície arenosa de aluvião, vai apontando exemplos de biodiversidade, aponta para o pastoreio dentro do Vale Glaciário, a tal lição a céu aberto sobre os vestígios da última época de glaciação, recorda-lhe um passeio de há dois anos atrás até às Penhas Douradas, e é nisto que o olhar se fixa no que é a vegetação da serra no Outono, que cores de toda a paleta. Porque isto de andar pela natureza tem as suas cadências e tempos de calendário, há muito que se propõe ir na primavera até ao Parque Natural de Montesinho que dizem ter cores deslumbrantes quando rebenta a floração. Um dia há de ser, está prometido, vamos então até ao Poço do Inferno, a neta diz que sim e que depois quer almoçar.
Trata-se de um lugar singular da muita oferta que Manteigas propõe, entre lagoas, covões, vales, parques, miradouros e a estância de montanha das Penhas Douradas. Vem-se aqui por causa da cascata, não se pode ficar indiferente ao espetáculo da queda de água cristalina sulcando as rochas. Impõe-se o regresso, há que acalmar as fomes e o voto feminino ganhou, logo à tarde há que visitar um prodígio do lanifício, o burel, já está decidido, repousa-se um pouco e avança-se até às fábricas desse tecido único.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21896: Os nossos seres, saberes e lazeres (437): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (6): A despedida de Óbidos, regresso a Lisboa (Mário Beja Santos)

4 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Gostava de ter lido o MBSantos a escrever sobre o Marcelino da Mata. Nem uma palavra, após a sua morte. O MBSantos continua a deliciar os tertulianos deste blogue avançando com prosa coxa sobre os seus entendimentos da paisagem de Manteigas ao vale glaciar do Zêzere.

Abraço,

António Graça de Abreu

antonio graça de abreu disse...

Acabo de ler no jornal Expresso de ontem,19.2, que o coronel Carlos Matos Gomes esteve no funeral de Marcelino da Mata. DiZ Carlos Matos Gomes: "Estive no seu funeral porque fui seu amigo."
Amigo de um herói, ou de um "criminoso de guerra", segundo o coronel Vasco Lourenço? Afinal "criminosos de guerra" somos todos nós,os muitos Vasco Lourenço, Carlos Matos Gomes, todos nós.
A guerra em que participámos, para o bem e para o mal, circula-nos no sangue, vai doer sempre. A herança do império, o sortilégio estranho de sermos portugueses.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

António Graça de Abreu se o homem (neste caso o Vasco Lourenço) não teve nenhum arranhão na sua comissão na Guiné, na calha é daqueles "operacionais" que não deu sequer um tiro.E depois há sempre aquela "pedrinha" no sapato de não ter chegado a general.
E o expresso também não informa nada e contribue para a radicalização esquerda/direita.E não é só o expresso, aquele pseudo debate na tvi que até deu náuseas, penso que vivemos num país que já não respeita nada nem ninguém.Até a morte de um homem serve para isto.
Os estados Unidos e a Grã-Bretanha continua a respeitar os seus soldados e antigos combatentes independentemente de as suas (deles) guerras (algumas não primaram pela mais elementar justiça. É que temos.
Abraço
Carlos Gaspar

Anónimo disse...

E digo mais António a guerra não pode ser discutida por quem não a fez.Que é o caso desta gente quase toda.Escrevem e falam do que não sabem.Só evocam o negativo, são uns egoístas e uns egocentristas que levam o seu umbigo muito a peito.Desconhecem a partilha a amizade e o sofrimento.Desconhecem, o apoio às populações.Enfim são do mais primário e básico.Nem os cursos que obteram lhes abriram a mente. Que era para isso entre outras que servia a universidade.
Carlos Gaspar