sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados

HM 241 de Bissau

1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sexta.


6 - O SOLDADO DOS PÉS INCHADOS

O rapaz apareceu-me tão cedo, na enfermaria, que me tirou da cama. Aquele assunto era mais do que urgente para ter que esperar pela hora oficial da abertura dos serviços. Dentro de poucos minutos ele tinha que estar na formatura, incorporado no seu grupo de combate, ali junto à árvore grande dos passarinhos, bem no centro da tabanca, fardado, com a arma, cartucheiras, cantil e ração de combate. A saída para o mato incutia-lhe algum receio, porque tinha já ouvido o alferes, no dia anterior, à noite, avisar que iriam montar uma emboscada num carreiro, onde era altamente provável a interceção de um grupo inimigo.
Há dias assim, em que mesmo o combatente mais afoito, nas suas elucubrações, tem uma premonição que o adverte para uma desgraça fatal. E foi isso mesmo que o atormentou a noite toda. E como havia ele de se livrar do mato, pelo menos naquele dia que lhe parecia poder ser o último dos seus verdes vinte anos? Tinha que engendrar um plano. E quando acordei, atordoado, com aquelas pancadas repetidas na janela, ao mesmo tempo que chamava por mim como se estivesse com muitas dores, foi só o tempo de calçar os chinelos e abrir-lhe a porta.
- Então, que se passa Sousa, perguntei-lhe?
- Olhe para os meus pés. Acha que eu estou em condições para sair para o mato, assim, com os pés inchados?

O problema parecia-me grave, até porque ele não me ajudava mesmo nada a diagnosticar o mal. Na verdade isso era o que menos lhe interessava. Que não estava em condições de cumprir aquela missão era a única certeza que eu tinha. E era isso, apenas, que interessava ao Sousa. Apressei-me a comunicar ao Alferes que aquele homem não estava operacional, partindo o grupo para a operação, sem ele.

Não me achando capaz de debelar aquele mal, nem lhe conhecendo a origem, encaminhei-o para o médico, colocado na sede do batalhão que, por sua vez, na ausência de meios complementares de diagnóstico o fez evacuar para o Hospital Militar de Bissau. Ao fim de alguns dias regressou o Sousa a Mampatá, já sem inchaço.

Só há meia dúzia de anos o Sousa me contou como me enganou, assim como ao Alferes médico. Naquela noite ele tinha aplicado uma espécie de garrote em cada perna, que desapertou imediatamente antes de me bater à janela, “aflito”.

Não fiquei agastado com o Sousa, nem tinha que ficar. Afinal, na operação em que ele não participou correu tudo bem, mas podia ter corrido mal.

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mais uma história, daquelas que eu gosto, com "mural ao fundo"... Como não se fazem juízos de valor sobre o comportamento dos nossos ex-camaradas de armas, acrescentarei apenas: "Não se pode levar a sério os pesadelos... E todos os temos. E se calhar mais hoje do que no tempo da guerra"...

Recordo-me em Contuboel de ter ouvido um tiro à noite... Dormíamos em bivaques. Sobressaltados, fomos ver o que era: se não erro, um soldado básico (que nem operacional era...) dera um tiro num pé...

Será que o Valdemar Queiroz se lembra desta cena ? O pobre diabo, com um pé esfacelado, sei que não era da nossa companhia, a CCAÇ 2590... Contuboel era então um CIM - Centro de Instrução Militar e um oásis de paz, em junho/julho de 1969...

Cinco estrelas, António, para o teu microconto...

Valdemar Silva disse...

Luís, lembro-me desse caso mas julgo não ter sido à noite.
Esse soldado básico, também não era da nossa CART 2479, pertencia à pouca tropa do Quartel lá destacada do CIM Bolama. Ele de básico só na cabeça, pois até tinha bom aspecto físico.
Mas, realmente não batia bem da cabeça e andava constantemente a pedir para ser evacuado pra Bissau, quando aparecia DO ou heli lá corria ele pra pista para apanhar boleia.
Certo dia, aconteceu que a mulher do Capitão teve de ser evacuada de urgência devido ao seu estado de gravidez e quando apareceu o heli ou DO (?) para o efeito é que o coitado do soldado básico se passou dos carretos.
'Então por a mulher do Capitão estar prenha vai ser evacuada e eu não?', gritava ele e com um aceno de cabeça dizendo 'Já vamos ver o que acontece' dirigindo-se para a caserna.
Depois com a G3 deu um tiro num pé tendo ido para a enfermaria num estado lastimoso. Não me recordo se foi imediatamente evacuado, mas lembro-me dele ter dito 'se soubesse que isto doía tanto tinha dado um tiro na cabeça'.

Coitado do soldado básico, com a cabeça a regular daquela maneira nem sequer deveria ter sido chamado pra tropa quanto mais pra guerra na Guiné.

Abracelos
Valdemar Queiroz

Zé Manel Cancela disse...

Gostei de ouvir (ler)de novo esta historia.
Continua amigo......Um abraço...