quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21916: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (9): "O relógio do Matos", "Há homens que metem medo" e "Canquelifá"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


25 - O RELÓGIO DO MATOS

Num qualquer domingo de janeiro de 1974, fomos a Bissau vários camaradas em cujo grupo se incluía o Matos, regressado na véspera da Metrópole, onde tinha gozado férias.

Perto da Amura, quando íamos descer a escada de acesso à esplanada do Pelicano, que dava para o cais, estava um guineense vivaço a querer vender um relógio vistoso a preço de combate.

Ninguém se mostrou interessado no artigo, com exceção do Matos, que, por acaso, trazia no pulso um relógio que lhe fora oferecido dias antes, durante as férias, mas que não era tão vistoso. Feito o negócio que, para além de dinheiro vivo, incluiu a transferência do relógio do Matos para o vendedor, descemos a escada para a esplanada a fim de tomar um refresco adequado ao final de tarde que se aproximava.

Sentados à mesa há poucos minutos, alguém repara que os ponteiros do relógio acabado de adquirir não tinham movimento e alertou o Matos. Este, subiu a escada num ápice à procura do vendedor para desfazer o negócio por incumprimento de uma das partes. Nunca mais o viu.

Também aqui a necessidade aguçou o engenho.

Bissau: Esplanada do Pelicano (estou de costas) e, da esquerda para a direita: o Machado da 3.ª CCAÇ, o Cibrão, o Carmo, o Caetano e o Matos (já falecido)


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26 - HÁ HOMENS QUE METEM MEDO

Em janeiro de 1974, tendo já passado por Bolama e pelo Setor de Aldeia Formosa, ter feito uma dezena de colunas a Farim e uma a Guidaje, sem ter tido confrontos e baixas, o Cardoso, 1.º Cabo, resolveu pedir para o PIFAS a passagem de um disco dedicado à Companhia cujo cognome seria, no seu entender, “Há homens que metem medo”, verso retirado de uma cantiga interpretada por um conjunto musical na altura com alguma popularidade na Metrópole e cuja passagem ele solicitava.

Continuamos a fazer colunas a Farim sem qualquer problema. Porém, sempre que éramos substituídos, e isso aconteceu por duas vezes, a coluna tinha problemas.

No final de março de 1974 fomos para Canquelifá substituir a 3.ª Companhia do nosso Batalhão, que por lá passou um mau bocado, e o grande problema que enfrentámos foi sobreviver naquele buraco onde faltava quase tudo.

Perante isto, o tal cognome arranjado pelo Cardoso pegou entre o pessoal e até parecia que era ajustado porque nos 14 meses passados na Guiné apenas tivemos dois ou três militares evacuados por doença.

O facto de termos comandante e graduados muito atentos e rigorosos na forma cuidada como as tropas se deviam movimentar no terreno, ajudou certamente a evitar alguns conflitos. De resto, foi pura sorte, ou estivemos sempre à hora certa no local certo.


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Canquelifá - © Foto de Adão Cruz

27 - CANQUELIFÁ

No final de março de 1974, fomos para Canquelifá substituir a 3.ª Companhia do nosso Batalhão, que tinha lá passado um mau bocado onde, creio, ficamos em sobreposição com a CCAÇ 3545 que ainda passou um bocado pior.

Lá fomos de LDG até ao Xime e, depois, em coluna, passando por Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche e Canquelifá.

Entre Piche e Canquelifá a coluna parou várias vezes para se proceder à desativação de minas anticarro. O pessoal deslocava-se apeado, fora dos trilhos habituais. Mesmo assim, um dos paraquedistas que fazia segurança, a quem faltavam poucos dias para terminar a comissão, acionou uma mina anticarro e ficou quase desfeito.

O cheiro dos legumes frescos em decomposição chegava ao aquartelamento muito antes da coluna.

Lá chegámos ao destino. Um buraco com condições indescritíveis ocupado por jovens cujo recente sofrimento lhes estava estampado nos rostos e que, apesar disso, ainda conseguiam dar alguma alegria tocando e cantando, nomeadamente uma adaptação do fado do estudante às vicissitudes passadas naquela terra.

Os vários poços de água ficaram incapazes pois devido às constantes flagelações continham no seu interior animais domésticos em decomposição. A captação de água ficava a algumas centenas de metros e exigia forte segurança e, mesmo assim, a água tinha que ser filtrada. Ora, não havia filtros pelo que a purificação da água era feita num latão com uma torneirita no fundo e, de baixo para cima, com diversas camadas de pedras, areia e cinza. Por este processo conseguiam-se apenas poucos litros de água por hora o que em situação de carência de outras bebidas, como cerveja e leite, que era frequente, tornava o ato de matar a sede muito complicado.

Ao nível da alimentação as coisas também estavam más por escassez de reses e as que havia tinham tal magreza que era difícil tirar delas mais do que os ossos. Aliás, as vacas que por ali andavam mais pareciam mortas que vivas.

O ambiente naquele espaço era doentio e assustador. Vivíamos em abrigos onde mal nos podíamos mexer.

Fui encarregado de receber a cantina que a CCAÇ 3545 explorava e, suprema ironia, do seu conteúdo constavam três garrafas de espumante “Fita Azul” que ainda há pouco tempo vi à venda num supermercado.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"

4 comentários:

Valdemar Silva disse...

José Domingos
Como era diferente Canquelifá em Dezembro de 1969.
Diferente, diferente não seria bem assim, também lá "embrulhamos", até foi destruída a nossa Messe, que tinha no exterior um "lago" com desenho do mapa da Guiné, ficava-mos nos abrigos até cerca das 23h depois passava-mos o resto da noite numas casas civis. De resto até era uma tabanca (pajadinca) muito interessante, com a mata sagrada, visitas de gilas senegaleses? e perto da entrada a inesquecível tabuleta 'Bem-Vindo às Termas de Canquelifá'.

Abracelos
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João Braga, ainda te lembras do título da canção (ou do nome do conjunto musical) com esse tal verso, "Há homens que metem medo", que passava no PIFAS ?... Penso que na época era um remoque ao fantasma de Salazar...

José João Braga Domingos disse...

Caro Luís

O disco era de um conjunto musical de jovens, alguns com barba, editado provavelmente entre 1970/72. O verso completo dizia, aproximadamente: "porquê, senhora, entre nós, há homens que metem medo".

Um abraço

Valdemar Silva disse...

José Domingos
Interessante, com quem o guineense vivaço teria aprendido a do conto do vigário do relógio?
Por cá, normalmente, é uma "técnica" utilizada por vendedores de étnica cigana.
Começam por 'quer comprar um Omega barato?', se a resposta for 'não que eu tenho relógio' sem se mostrar interessado tudo bem, agora se calha olhar melhor leva com 'mas este é d'ouro que endrominei a um turista e até troco com o seu mais xs' e se o interesse subir de tom com 'não qu'é muito caro' nunca mais se livra do vendedor até ao golpe final.
Vá que não houve notícias de garrafas uísque(chá) ou máquinas fotográficas canon(farinha amparo), que de fotografias ao deserto 'que toda a gente compra' sempre iam aparecendo.

Abracelos
Valdemar Queiroz