sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

1. Lembremos a mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2021:

Meus caros amigos, combatentes.

O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.

Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.



3 - O CANHANGULO

O Samba era um soldado da milícia de Mampatá. Fazia parte do grupo de três ou quatro dezenas de civis armados da povoação, cuja missão principal era a defesa da população civil, perante um eventual ataque do inimigo. Todos eles tinham as suas famílias na localidade e ocupavam-se, paralelamente, dos seus afazeres, quase sempre, na cultura do arroz e do amendoim. Recebiam uma remuneração modesta do Exército Português, por participarem no esforço daquela guerra. Algumas vezes o dinheiro não lhes chegava até ao fim do mês, por isso, era frequente pedirem algum emprestado com a promessa de o devolverem, logo que voltassem a receber.

O Samba era um dos que me batiam à porta sempre que o mês se tornava mais longo que o dinheiro. Quando a importância era de valor muito residual fazia de conta que me esquecia, coisa que lhe agradava.
Da última vez tinha-me pedido setenta pesos, com a promessa de mos devolver, logo que recebesse, no fim desse mesmo mês. Passaram-se dias, semanas e até meses, e o Samba, sempre que o interpelava, respondia-me com aquela ingenuidade de quem acha que os prazos só são de cumprir quando se pode:
- Não pode ainda, eu tem filho doente, mulher está mal, espera mais.

Não tinha eu outro remédio, senão esperar.

Quase a acabar a minha comissão, já convencido que aquela dívida não seria mais cobrável, numa das minhas digressões pela tabanca, passei pela morança do Samba. Conversávamos do meu regresso a Lisboa, do fim da guerra, da revolução do 25 de Abril, abrigados pela sombra da cobertura de capim daquela casinha construída da forma mais primitiva que se possa imaginar, quando uma espingarda de fabrico artesanal, encostada a um canto me despertou a atenção. Pelo seu aspeto, coberta de poeira e um pouco desconchavada, não me pareceu que lhe merecesse muito apreço nem que lhe servisse de alguma coisa.
Para mim, aquele objeto ferrugento teria algum valor, se o mandasse restaurar por mãos habilitadas, quando regressasse às Medas. Mas era preciso que ele mo vendesse, coisa que me parecia muito provável quer pela amizade que havia entre nós quer por já não lhe servir de nada. Tomando-a nas mãos, como a mostrar-lhe o meu interesse por aquela arma inerte, perguntei-lhe se ma queria vender. Admirado pelo meu interesse numa arma que já não fazia fogo, agradado por me fazer feliz, como se me quisesse manifestar gratidão, recusou vender-ma, como se isso manchasse a nossa amizade.
- Se tu quer essa arma, leva ela pro Lisboa, eu não vendo, eu dá para ti.

Não tendo que lha pagar, sempre achei oportuno, declarar-lhe que, no mínimo, considerasse que já não me devia os setenta pesos, amortizados por aquele ato generoso e desprendido de sua parte. Só então, perante o seu ar de espanto, percebi que teria sido melhor não fazer referência à sua dívida, porque ele tinha-se desligado dela e só me pagaria num qualquer dia, se eu precisasse daquele dinheiro e a ele não fizesse falta.

Obrigado, amigo Samba, por me teres ensinado, que existem no mundo, outros paradigmas culturais, para além dos nossos conceitos ou preconceitos judaico-cristãos.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Uma história bonita com... "mural ao fundo". (Não confundir mural com moral.) LG

António Pimentel disse...

Mais uma bela história, simples e bonita, como deviam ser todas.
Cá fico à espera de mais.
Um forte abraço.
António Pimentel

JD disse...

Umm! Não sei se o Sr Comandante vai em histórias, logo ele que anunciou o fim da bandalheira entre os bandalhos. Para teres a certeza, pede-lhe setenta aéreos, e deixa que o tempo passe. Á cautela, coloca uma guilhotina à porta de casa.