sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21890: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (39): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Numa viagem de autocarro de Santarém para Lisboa, depois de cinco horas de aulas, e havendo que responder a várias questões postas por Annette, relacionada com episódios do quotidiano, praticamente silenciados a documentação que ele lhe envia, Paulo deu consigo a rememorar e simultaneamente a descobrir riquezas que a memória da guerra lhe tinha subtraído, era uma memória onde predominavam episódios bélicos, o torvelinho dos patrulhamentos, o interminável processo de reconstrução de Missirá e as melhorias de Finete.

 Afinal, em que termos ele fizera uma consistente relação de afeto e confiança com a gente da sua tropa? Fez um esforço, naquela viagem noturna de autocarro, uma luz se acendeu. As refeições tinham lugar na messe, naturalmente os arranchados eram os europeus. E deu-se o clique, a vigilância noturna nos postos de sentinela, podia ser antes do jantar ou na alta madrugada, sentava-se ao lado do vigilante em serviço, permutavam-se currículos, o que se tinha feito antes de andar para ali de armas na mão, o que se sonhava fazer depois, silencioso exercício em que se aprofundou a intimidade, antes de mais a confiança nesse alguém que os procurava como seres humanos, na sua identidade, na sua cultura e nesse aspeto assombroso que se desenvolveu depois da independência, a afabilidade.
 
Aqui se dá conta dessa memória recôndita que veio ao de cima na dita viagem de autocarro, e não só, também se fala nas vicissitudes do abastecimento, por pudor não se conta o muito que se ouviu em 
desabafos de arremedo de confessionário.
 
Aproximava-se a Páscoa, Paulo dá carta branca a Annette para organizar as delícias do reencontro. Tem sido sempre assim, ao longo de todo este amor à distância, e mal será se não foi assim, para estes dois sujeitos que estão permanentemente em palco e de quem nem suspeitamos como será o seu futuro.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (39): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon adorée Annette, escrevo-te um tanto à pressa, como bem sabes às segundas-feiras dou cinco horas de aulas em Santarém, vou praticamente a correr para a estação rodoviária, apanho o último autocarro para Lisboa, chego num afogadilho, tiro as coisas do frigorífico, meto no micro-ondas, janto cheio de apetite, pois almocei a correr num centro comercial ali perto, cerca de meia hora antes de começar a jornada da tarde. Aproveitei a viagem para ruminar o primeiro ano de comissão, já que tu concluíste todo o período de agosto de 1968 a agosto do ano seguinte. 

E súbito me ocorreu que nunca te falei num elemento importante que foi selando a minha amizade com as praças de Missirá e até com as milícias de Finete. Vejamos como. Vezes sem conta, pela noite fora, subia aos postos de vigia e conversava com quem estava de sentinela. Nunca me cansei deste tipo de comunicação. Explico porquê. Imagina um ponto alto, uma forma de guarita, telhada às três pancadas, suportada por fasquias de palmeira, constituída por bidons, um pequeno espaço que dá, quanto muito, para duas pessoas; para ali se sobe por uma escada tosca. Dava sinal da minha presença, subia e sentava-me ao lado da sentinela, a uma certa distância um petromax, um candeeiro que iluminava um ângulo da paisagem, sempre que subia ao posto ali ficava a contemplar a escuridão da mata, sempre à espera de ouvir uma hiena, e depois, conversava a ciciar, para dar proximidade ao meu interlocutor, contava-lhe o que fazia em Lisboa, falava-lhe da família, e com o passar do tempo a sentinela ia ganhando confiança, também me falava da sua família, do que ia fazer quando acabasse a guerra, foi nestes postos de sentinela que me ensinaram o que se planta na horta; quando se ceifa o capim para preparar o colmo das moranças; que Uam Sambu, mandinga do Oio, me descreveu a região altamente arborizada, e como era fácil ali se instalar a guerrilha, e como aquelas populações possuíam um elevado grau de espírito independente, nem Abdul Indjai, um mercenário que foi determinante nos êxitos do capitão Teixeira Pinto, os conseguiu fazer curvar; que Mamadu Baldé, o 86 da milícia, exprimindo-se num português próximo do imaculado, que passara quase dois anos nos hospitais de Lisboa a tratar braços e perna triturados à bala, me contava os seus passeios pela capital, não esquecera a Torre de Belém e visitara mesmo o Jardim Botânico Tropical, onde se lhe depararam bustos de guineenses; que Cibo Indjai, o mais indómito dos caçadores de porco do mato e de gazela, explicava que um caçador cheira o que o comum dos mortais não cheira na mata e lê na terra e no arvoredo o que o mais arguto e destemido guerrilheiro não sabe ler. Foi nestas vigilâncias, meu adorado amor, que se desenvolveu uma comunhão e confiança impossível de alcançar nas rotinas dos destacamentos, nos patrulhamentos que exigem uma severa concentração e absoluto silêncio, foi nesses postos de sentinela que procurei ler convicções, fidelidades, razões para lutar e para confiar em quem vinha de Portugal. Abençoadas noites de conversa, se pusesse em papel tudo quanto ouvi e quanto fui aprendendo, digo-te sem empáfia, tínhamos enciclopédia, um cacharolete da antropologia, etnologia, etnografia, história e algo mais. Há também o consultório sentimental, o ajudar a escrever aerogramas, ouvir desabafos… E, confesso-te, a prática de negligências que custaram caro. Tens aí o relato de um estimado furriel, um quase braço direito, fui descurando a sua exaustão, o seu definhamento. 

Um dia, imprevisivelmente, pegou numa espingarda, numa gritaria tresloucada, ameaçou abater quem não cumprisse as suas ordens, estava no meu abrigo a ver as contas da cantina e a preparar a escala do serviço noturno, saí na fornalha do sol, não eram mais do que três da tarde, e passei uma angustiante meia hora a avançar cautelosamente para ele, aquele homem vociferava, estridente ameaçava se eu desse mais um passo me abatia, procurei falar-lhe ao coração, e diante dele, num repelão, peguei-lhe na arma pela tapa-chamas, e no mesmo instante ele fletiu os joelhos e caiu redondo no chão. Foi evacuado, esteve em tratamento neuropsiquiátrico, demorou a recompor-se. E ainda hoje não sei qual foi a minha quota-parte de responsabilidade em não ter visto que ele se ia esgotando diante dos meus olhos.

E há episódios mil sobre a nossa alimentação. Lembras-te de te ter dito que os nossos abastecimentos eram altamente problemáticos, sobretudo na época das chuvas, mesmo dificultados quando as duas viaturas avariavam e fazíamos colunas de reabastecimento com sacos à cabeça, vasilhame nas mãos, pacotes de esparguete nos bolsos? Estive anos sem poder comer pé de porco, e temos uma receita em Portugal que eu tanto aprecio (é receita alentejana, pezinhos de coentrada), mas estivemos 47 dias confinados a barricas de pé de porco, acompanhado de feijão-verde enlatado, e quanto a bebidas havia leite achocolatado holandês e água Perrier ou de Evian, deu para não morrer de fome; foi na Guiné que comi o melhor bacalhau graúdo da Noruega, diga-se em abono da verdade. Quando acabávamos de comer, muitas vezes eu ficava deliciado a ver as crianças que auxiliavam na cozinha os nossos dois cozinheiros, Quebá Sissé e Umaru Baldé (este estudara no Senegal, insistia em servir-me com luva branca e ia-me chamar à morança em bom francês, que requinte!); comiam avidamente as sobras e uma vez fiquei assombrado a ver um dos miúdos a passar as mãos por dentro de um tacho e a dar as mãos a cheirar a outro, perguntei o que acontecera, e em toda a sua inocência a criança disse-me que gostava muito do cheiro do esparguete que não conheciam antes de chegar os brancos… 

As histórias multiplicam-se, meu adorado amor, desde as conversas em alta tensão com o chefe da tabanca que quase todos os dias me pedia uma coluna de reabastecimento ou me vinha informar existir uma caterva de doentes, as reuniões com o professor para avaliar a sua dedicação e que matérias estava a dar aos miúdos, que faziam uma parte dos seus estudos com o padre na escola corânica e a outra em regime estritamente secular, português, aritmética, umas ciências naturais aplicadas ao que as crianças viam no seu próprio meio, e o mesmo se passava com a geografia.

É uma questão de lembrança, estes temas aparecem avulsamente na minha correspondência e até nalgumas fotografias, entendi que esta obra de ficção não devia ser sobrecarregada com um tal tipo de impressões pessoais, os coletivos de Missirá e Finete parecem-me mais empolgantes. Até como tu podes ver, de julho a novembro sofremos flagelações, algumas delas muito estranhas, simples morteiradas, um bate-foge de quem parece limitar-se a fazer prova de vida e a demonstrar que ali vem quando lhe apetece, foram esses muito desgastantes, fui baixando a vigilância naquele rodopio de continuar as obras, mantendo a terrível cadência das idas a Mato de Cão, e assistindo impávido, impotente, à redução dos meus efetivos. 

Quando cheguei ao Cuor em agosto de 1968 era responsável por um pelotão de caçadores nativos e dois pelotões de milícias e mais alguns adventícios, cerca de 143 homens; um ano depois perdera quase 20% do efetivo inicial, iam-me tirando secções para novos destacamentos, sobretudo no Cossé. É provável que eu esteja a aliviar a minha consciência para decisões imprudentes que tomei, a mais grave delas foi a de, contrariando o apelo do motorista, ter-me posto na picada ao anoitecer naquele malfadado dia de outubro de 1969, de que em breve falaremos.

Estou completamente ensonado, prometo telefonar-te amanhã à hora do jantar, sei que estás em Bruxelas toda esta semana. Aproxima-se a Páscoa, o que significa que vou estar contigo, aproveitar as férias, amanhã já saberei o meu horário e vou imediatamente comprar o bilhete de ida e volta, se demoro custa-me os olhos da cara. Vivo sempre saudoso de ti, o que me vale é andar embalado de atividade em atividade, mas tal como tu já me começo a sentir desconfortado nesta casa onde tu não estás, mesmo que te dedique a minha escrita, a minha voz, o meu afeto, numa iluminação e num calor que iludem a nossa forçada distância. Bien à toi, Paulo
Rostos que Mamadu Baldé, o 86, nunca esqueceu, visitou-os no Jardim Botânico Tropical
Lavadeiras em Tombali, fotografia de João Sacôto, fico-lhe grato pela cedência
Estação liminigráfica de Ponta Varela, antes e durante a guerra
As ruínas da estação liminigráfica de Ponta Varela, em 2010
Caminhando num lamaçal, imagem retirada do blogue Guiné 1968/69, Recordações da Guerra, com a devida vénia
O bendito helicóptero, imagem retirada da Deutsche Welle, com a devida vénia
Uma pausa, mas a operação continua, imagem retirada de Roinesxxi, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21854: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (38): A funda que arremessa para o fundo da memória

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