quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21883: Historiografia da presença portuguesa em África (251): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Terá sido a grande polémica travada entre dois historiadores de gabarito a propósito do importantíssimo estudo feito por Teixeira da Mota sobre o descobrimento da Guiné, ele é um jovem que se entusiasma e mesmo deslumbra pela Guiné, procedeu a um estudo afincado com base em trabalhos historiográficos fidedignos, pondo termo a muita fantasia e esoterismo à volta dos empreendimentos henriquinos naquele ponto da costa ocidental africana, fazendo jus ao trabalho de Duarte Leite que pegou na cartografia, do seu cotejo se chegou ao conhecimento de que Nuno Tristão jamais pusera os pés na Guiné Portuguesa.
Não era só a reposição da verdade que estava em causa, a historiografia da Guiné dava um salto, o futuro colaborador de Sarmento Rodrigues lançará as bases do Museu da Guiné, do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e do Boletim Cultural. Graças a ele e à vontade política de Sarmento Rodrigues, a colónia, em termos culturais, era motivo de estudo, chegaram à Guiné jornalistas de mérito como Norberto Lopes, o grande geógrafo Orlando Ribeiro e outros. Abria-se a Guiné ao conhecimento científico, incluindo as potencialidades agrícolas. E tudo começara por umas comemorações onde a Ciê0cia foi deitando para o caixote do lixo as epopeias delirantes.

Um abraço do
Mário


A descoberta da Guiné, polémica violenta:
Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (2)

Mário Beja Santos

Após louvar a investigação de Teixeira da Mota e evidenciar o rigor usado para desmistificar a chegada de Nuno Tristão à Guiné, segue-se, com a maior contundência e com o maior número de bengaladas, as severas críticas de Vitorino Magalhães Godinho a certas apreciações e análises de Teixeira da Mota. Este escreveu que “As controvérsias henriquinas, que ameaçam perpetuar-se, acabarão, se continuarem no mesmo espírito que até aqui, por destroçar o mais glorioso período na nossa história, deixando no seu lugar o caos”. É a perfeita negação do cuidado até agora posto na análise de críticos que, comprovadamente, tinham posto termo a versões fantasiosas da descoberta da Guiné, caso de Duarte Leite, Armando Cortesão, Damião Peres, Jaime Cortesão, Veiga Simões e Magalhães Godinho. A que propósito é que as apreciações destes estavam a criar o caos? E dirige-se-lhe com verrina: “Teixeira da Mota acha bem discutir criticamente a data de uma viagem, o nome do descobridor de um cabo ou rio, os locais visitados pelo navegador. Mas o enquadramento destes factos, sem o qual de nada interessam, de nada valem, a sua integração em todas as condições da época e da evolução histórica, a sua compreensão como amplo movimento, devem ficar ao nível dos contos de fadas. Pois não se vê que não estamos de forma alguma em perigo de cair em confusão? Que, ao invés, se têm realizado progressos sólidos? Passou-se do simplista ao complexo, do material bruto à discriminação fina, trilharam-se com firmeza caminhos reveladores. É claro, já não há só o príncipe encantado, varinha de condão das navegações e conquistas: há também João Afonso e D. João I, D. Duarte e D. Pedro, e muitos outros; há as correntes de opinião (o Sr. Teixeira da Mota deve ser dos que anseiam por que nunca haja correntes de opinião), interesses de grupos, classes e indivíduos, há condições técnicas e condições financeiras; há, numa palavra, a realidade, multiforme e não esquemática, viva e não lendária. Mostrar que o Infante D. Henrique não é um príncipe lendário de influência omnipotente, mas sim um homem de carne e osso, cuja ação no seu tempo se define, não é rebaixá-lo, é, antes, pelo contrário, reconhecê-lo a sua verdadeira glória”.

E enumera os atos do Infante desde a tomada de Ceuta em 1415 até ao seu papel na colonização dos Açores. E depois dirige as suas tagantadas para a discussão do antagonismo de D. Pedro com D. Henrique, que Teixeira da Mota considerava uma diminuição de D. Henrique, e procede à análise das fontes que ajudam a compreender o comportamento de D. Pedro, que era manifestamente hostil ao cruzadismo no Norte de África, e foi um forte empreendedor dos Descobrimentos, e escreve: “Não temos quaisquer provas da vasta cultura científica de D. Henrique, nem de que tenha impulsionado os estudos científicos em Portugal, nem de que fosse animado de espírito científico; D. Pedro é o infante que percorreu a Flandres e a Itália e que escreveu "A Virtuosa Benfeitoria", e sob a sua regência e governo (oito anos) exploraram-se 198 léguas da costa africana, ao passo que nos doze anos seguintes se descobriram tão-só 94 léguas”. Magalhães Godinho, di-lo frontalmente que era absurda a tese de fazer de D. Henrique a causa única dos Descobrimentos, remete Teixeira da Mota para os trabalhos que ele desenvolvera nas suas investigações e chama-lhe leviano, deturpador do que ele escrevera: “Não há em meus escritos uma única frase onde eu pretenda apresentar o Infante D. Henrique dominado exclusivamente pelo espírito de Cruzada, pela mentalidade guerreira; muito ao invés, procurei sempre apresentá-lo como mais equilibrado do que aqueles que o apresentam só como cruzado ou só como sábio ou só como traficante". E era evidente a existência de uma mentalidade mercantil. “Em 1444 começaram as tentativas para firmar resgate pacífico no Rio do Ouro, e isto devido à iniciativa de Gomes Pires e de D. Pedro. Em 1447 tenta-se abrir trato à boa paz no Suz, por iniciativa de D. Henrique, mais ainda durante o governo de D. Pedro; neste mesmo ano, Valarte e Fernando Afonso são incumbidos por D. Pedro de estabelecer paz e comércio com o Bor-Mali e os Jalofos, Sereres e Barbacins; Diogo Gomes data o triunfo da política pacífica-mercantil de 1445 ou 1446”. Estes eventos escolhidos por Godinho revelam que o Infante D. Pedro em caso algum se opôs a trato comercial na costa ocidental africana.

A polémica muda de rumo, nestas discussões do confronto entre D. Pedro e D. Henrique, Teixeira da Mota teria sido levado a supor que existira um comprovado humanismo de D. Henrique, atendendo ao que escreveu Zurara, o Infante não queria ser defraudado no seu cunhão de escravos, e era uma treta completa dizer-se que havia uma grande preocupação com o tratamento dos escravos. Magalhães Godinho faz questão de destacar alguns autores que referem claramente os maus-tratos a que eram sujeitos os escravos no cativeiro, e mordazmente volta a criticar Teixeira da Mota: “Insurge-se contra o facto de os ingleses transportarem 50 mil escravos por ano de 1750 a 1780 e acha bem que os portugueses conseguissem mil anualmente de 1510 a 1520. É lamentável que ignore que os ingleses o faziam para salvar as almas dos pobres negros, portanto com a mesma boa intenção que animou os portugueses. Deveria lastimar, sim, que não fossem os portugueses a salvar tão numerosas almas… E quanto aos grilhões da Gorea, também os portugueses serviram deste processo tão cristão: Zurara diz que, posto que os corpos fiquem em prisão, as almas conquistarão eternal soltura e nas cartas de quitação do reinado de D. Manuel, há referência explícita às cadeias de prender escravos; o sofrimento na Terra é o melhor meio de alcançar o Céu. Teixeira da Mota não viu o bondoso papel que desempenharam holandeses e franceses, impondo grilhões para os indígenas conquistarem a bem-aventurança”.

Segue-se outro tipo de bengalada, a essência da historiografia moderna, Godinho é professoral: “A historiografia de base sociológica, porque científica, exclui o arbitrário da generalização, não a generalização nem as hipóteses de trabalho. Um conselho, bem modesto, ao Sr. Teixeira da Mota: estude primeiro Sociologia; estude a História como a constroem os mestres. Depois, fale de historiografia sociológica. Em suma: Teixeira da Mota encontra-se numa encruzilhada. Um dos caminhos, é o da História séria; o outro é o do delírio, da retórica, da mistificação. No primeiro, seguirá Herculano, Oliveira Martins, Alberto de Sampaio, o Conde de Ficalho, Gama Barros, Pedro de Azevedo, Costa Lobo, Duarte Leite, Jaime Cortesão, Armando Cortesão; no segundo, acompanhará… nem vale a pena dizer os nomes”.
Convém recordar ao leitor que a historiografia neste ano de 1945 dava passos importantíssimos para repor o estudo da Guiné, e do seu descobrimento em bases rigorosas. Como aqui já se deixou referido, o Padre Dias Dinis produzira prosa que Vitorino Magalhães Godinho aproveita a oportunidade desta coça dada por Teixeira da Mota para pôr a nu erros graves da apreciação que Dias Dinis faz da documentação, e momentos há que não se coíbe da mordacidade para reduzir os argumentos de Dias Dinis à completa insignificância, deste modo:
“Dias Dinis convida os pretos a associarem-se às comemorações, admoestando-os: ‘Os indígenas redimem assim pecados velhos. O Portugal de sempre, ancião venerando, amigo e indulgente, lança-lhe gostosamente a absolvição neste Ano Jubilar’. Os pecados velhos dos negros da Guiné são a morte de Nuno Tristão e de outros portugueses! Mas então não foram os portugueses que os foram inquietar a suas casas e assaltar? E que culpa têm os pretos de hoje pelo que fizeram seus antepassados, para necessitarem de absolvição? Então a responsabilidade criminal é hereditária? A morte de Nuno Tristão constitui novo pecado original para os guineenses?”

De pena acerada, Magalhães Godinho veio polemizar com Teixeira da Mota, facto é que estes dois historiadores de grande envergadura souberam conviver e partilhar da admiração mútua, como se justificava.

Como é evidente, em próxima oportunidade aqui se irá recapitular a tese inovadora de Teixeira da Mota sobre a descoberta da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21845: Historiografia da presença portuguesa em África (250): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)

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