quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21845: Historiografia da presença portuguesa em África (250): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Em torno das Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, em 1946, a historiografia deu um importante salto com o estudo publicado por Teixeira da Mota desmontando ingenuidades e fantasias.
Aquele que terá sido o mais influente historiador português do século XX, Vitorino Magalhães Godinho, veio a público para o aplaudir e zurzir com inusitada violência. Foi polémica que não ficou nos anéis, até por serem dois historiadores que faziam da probidade ofício não fizeram como os medíocres, nestas coisas e noutras entram na hostilidade persecutória. Aqui se usam, para dar contexto, referências de um estudioso Teixeira da Mota, o oficial da Armada Carlos Valentim e a introdução de Vitorino Magalhães Godinho, que contextualiza admiravelmente os saltos gigantescos que deu a historiografia dos Descobrimentos depois de séculos de mitologia e ignorância das fontes.

Um abraço do
Mário


A descoberta da Guiné, polémica violenta:
Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1)


Mário Beja Santos

Escrito em 1946, ano das Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, o ensaio altamente contundente do historiador Magalhães Godinho a propósito do trabalho ainda não completamente publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e assinado por Teixeira da Mota, foi mais uma das peças de grande importância na renovada historiografia portuguesa do período dos Descobrimentos henriquinos. Segundo Carlos Valentim, oficial da Armada que publicou a bibliografia de Teixeira da Mota, "O Trabalho de Uma Vida", Edições Culturais da Marinha, 2007, há quatro obras relevantes de Teixeira da Mota que contribuíram para essa renovação historiográfica: "A Descoberta da Guiné", com a data de 1946; "A Arte de Navegar no Mediterrâneo nos Séculos XIII-XVII e a criação da Navegação Astronómica no Atlântico e Índico, em 1957"; "A Viagem de Bartolomeu Dias e as Ideias Geopolíticas de D. João II", em 1958; "A Escola de Sagres", em 1960. Teixeira da Mota fez parte do escasso número de historiadores que contribuiu para imprimir ciência no estudo dos Descobrimentos Portugueses, pondo termo a fantasias, mitologias bacocas, puras conjeturas. Não foi o primeiro, mas pertenceu ao naipe engrossado por Jaime e Armando Cortesão, Damião Peres, Duarte Leite e Vitorino Magalhães Godinho.
Vitorino Magalhães Godinho

A descoberta da Guiné correspondeu à primeira comemoração depois da II Guerra Mundial. Numa nota de caráter pessoal expedida por Teixeira da Mota para o Governador da Guiné, e que esteve inédita até 1972, ano em que se publicou o seu importante "Mar, Além Mar", edição da Junta de Investigações do Ultramar, ele faz questão de desmontar um sem-número de fantasias acerca das expedições henriquinas e desvela da impossibilidade de Nuno Tristão ter chegado a território da então Guiné Portuguesa, a sua morte teria ocorrido no rio Gâmbia. Um estudioso, mas pouco dotado para a investigação rigorosa, o Pe. Dias Dinis, defendia intransigentemente as comemorações do centenário guineense naquele ano de 1946, socorria-se como fonte principal da "Crónica dos Feitos da Guiné", de Zurara, da Ásia de João de Barros e de alguns estudos de Armando Cortesão. Este padre missionário criticava os trabalhos de Duarte Leite e Damião Peres que contestavam fortemente a tese que atribuía a Nuno Tristão o descobrimento da Guiné em 1446. E Carlos Valentim observa: “Duarte Leite valia-se da cartografia e dissecava as fontes, uma a uma, utilizando a análise crítica como fulcro da sua metodologia. As conclusões eram dramáticas. De repente, todo o edifício de propaganda do Estado Novo ficava em perigo de ruir, por se ter verificado um anacronismo na descoberta da Guiné Portuguesa. Seria possível festejar acontecimentos com duvidosa cronologia?”. O ensaio de espírito completamente inovador de Teixeira da Mota introduzia esclarecimentos ainda hoje incontestados. A este trabalho iremos posteriormente fazer a competente referência.

Avelino Teixeira da Mota
Em jeito de síntese, Teixeira da Mota analisa os elementos de caráter náutico-geográfico, na linha das propostas de Jaime Cortesão e corteja-os com a cartografia e toma sempre como referência os elementos etnográficos. Devolve-se de novo a palavra a Carlos Valentim: “No espaço de um século, a Guiné Portuguesa encontra-se no centro de fatores que desencadeiam o progresso historiográfico, em duas situações muito idênticas, em dois momentos muito próprios, onde se mistura política e memória, ideologia e identidade. Primeiro, em 1841, com o Visconde de Santarém, o fundador dos estudos de cartografia antiga, que edita a Crónica da Guiné, de Zurara, descoberto em 1837, na Biblioteca Nacional de França. O segundo momento de inovação, situando-se novamente a Guiné no centro do debate historiográfico, surge um século depois, com Teixeira da Mota, numa época de forte combate ideológico e político”. E vamos à polémica de Magalhães Godinho. Ele enceta o seu trabalho observando a pobreza de fontes históricas sobre os Descobrimentos henriquinos, na generalidade construções tardias. E numa lenta caminhada, começaram as revelações, primeiro o Visconde de Carreira e o Visconde de Santarém que publicaram em 1841 a Crónica da Guiné, de Zurara; em 1845-47, Schmeller dava a conhecer a narrativa das viagens redigida por Martin von Behaim sobre conversas com o navegador Diogo Gomes. Diferentes autores ingleses interessaram-se pelos Descobrimentos, mas limitando-se quase a contar por palavras suas o que parecia ser verdade axiomática. Surgiu depois o Esmeraldo de Duarte Pacheco; em 1924, Jaime Cortesão apresentava um estudo sobre a política de sigilo nos Descobrimentos, fantasiou hipóteses, aventando que as fontes escritas ocultavam grande parte da obra de D. Henrique. O cartógrafo Armando Cortesão publicou em 1931 a cronologia das viagens até 1462 fazendo identificações do rio Grande com o Geba, por exemplo. Aquilo que eram certezas, com base nestes trabalhos recentes, merecia um novo olhar. A figura-chave será Duarte Leite, que criticará as hipóteses de Jaime Cortesão sobre a política de sigilo e sacudiu de cima a baixo a obra de Zurara. Como escreve Vitorino Magalhães Godinho: “Zurara, até aí unanimemente considerado fiel e bem informado cronista das navegações, é reduzido à sua verdadeira craveira de literato de saber restrito e de segunda mão, de pouco cuidadoso relator, de homem com fraca curiosidade geográfica e náutica; a sua crónica deixa de ser indiscutível evangelho, para nela se notarem erros, contradições e outros defeitos”. Segue-se Damião Peres, o próprio Magalhães Godinho e Teixeira da Mota.

Godinho ridiculariza os esforços para consagrar Nuno Tristão como o primeiro a chegar à Guiné Portuguesa. Elogia Teixeira da Mota e o seu trabalho: “Foi-lhe de grande proveito o conhecimento direto do litoral e das gentes da Guiné, bem como a possibilidade de obter informações complementares de outros conhecedores das línguas indígenas e da região. Conseguiu Teixeira da Mota confirmar algumas das conclusões da investigação anterior e corrigir outras (…) Note-se que o autor não discute qualquer questão de cronologia, aceita, como Peres e nós fizemos, a estabelecida por Armando Cortesão e Duarte Leite. Seguiu Teixeira da Mota o modelo por nós lançado em Documentos sobre a Expansão. A longa e minuciosa discussão do problema por Teixeira da Mota confirma La Roncière e Duarte Leite: Nuno Tristão não ultrapassou a Gâmbia para o Sul, a sua morte não ocorreu no rio Geba, muito menos no rio de Nuno”. E adita os argumentos expendidos por Teixeira da Mota, de irrefutável clarividência. Fala-se da viagem de Álvaro Fernandes, também em 1446, havia acordo que o navegador visitou o rio Casamansa, tendo chegado à enseada que começa no Cabo Roxo. Mais adiante, falando da viagem de Valarte e de Fernando Afonso em 1447, Godinho apoia a hipótese da captura de Valarte no rio Gâmbia, estabelece-se aqui uma discussão de pormenor sobre os reis na região de Cabo Verde (não esquecer que estamos a falar de território continental), e apoia igualmente dados expendidos por Teixeira da Mota acerca da localização da povoação dos Bambaras. Termina os seus comentários elogiosos e inflete para uma tremenda zurzidela de Teixeira da Mota, vale a pena ver com cuidado a argumentação expendida, é por vezes de uma violência extraordinária a adjetivação usada. E talvez o ponto mais importante seja registar que após toda esta sessão de bengaladas, a admiração mútua jamais esmoreceu. É assim entre gente que cuida com estrénuo rigor a verdade dos factos.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21815: Historiografia da presença portuguesa em África (249): Da Senegâmbia à Serra Leoa, pela mão de Suzanne Daveau (Mário Beja Santos)

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