Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.
Memórias, saudades, alegrias e tristezas
Adão Cruz
Este é o meu velho consultório de há quase cinquenta anos, fechado desde o início da pandemia. Entro lá de vez em quando, sento-me no sofá, e os meus olhos enchem-se de vazio. Não admira. Por aqui passaram milhares de pacientes, de Vale de Cambra, S. João da Madeira, Santa Maria da Feira, Oliveira de Azeméis, Sever do Vouga, Arouca, Alvarenga, Castelo de Paiva, Castro Daire, Cinfães do Douro, Amarante, Gondomar, Porto, Matosinhos, Espinho, Ovar, Estarreja, Aveiro, Albergaria e mesmo de mais longe, como S. Pedro do Sul, Viseu, Carregal do Sal, Guarda e até de Lisboa. Por aqui passaram também neste meio século muitos emigrantes, sobretudo em tempo de férias, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Suíça, do Luxemburgo, da Venezuela, do Brasil e até dos Estados Unidos.
A quarta fotografia mostra dois aparelhos, ecocardiógrafos. O mais pequeno, do lado esquerdo, um Alloka SSD 110 S (peça de museu), foi o primeiro ecocardiógrafo bidimensional que entrou no país, importado directamente do Japão. O da segunda foto foi o último que adquiri e que funciona correctamente. Tive ao todo oito ecocardiógrafos, três neste consultório e mais cinco no Gabinete de Ecocardiografia, em colaboração com os meus grandes e inesquecíveis amigos Dr. Duarte Correia e Professor Cassiano Abreu Lima. Entre eles, o primeiro Eco-Doppler a cor. Havia apenas dois laboratórios de Ecocardiografia no Porto que serviam todo o norte de Portugal.
A quinta foto a contar do fim mostra a velha secretária da minha empregada Aldina, mulher carinhosa e simpática que os doentes adoravam, conhecida por todas as redondezas e que sempre me acompanhou em quase sessenta anos, desde o início da clínica geral em Vale de Cambra, antes e depois da guerra da Guiné.
A quarta fotografia a contar do fim mostra o soneto que dediquei ao meu pai e que ainda se encontra na parede da primitiva sala de espera. As três seguintes são algumas das minhas primeiras pinturas que ainda por lá se encontram penduradas.
A despeito da idade, tudo poderia acabar de forma menos dura e menos triste, se não fosse a maldita pandemia. Mas a vida é assim e não há volta a dar-lhe.
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Nota do editor
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4 comentários:
O soneto, de grande qualidade afectiva, verbal e poética, homenagem ao seu PAI, entra por dentro da alma de todos nós.
Abraço,
António Graça de Abreu
Meu caro, Adão Cruz. como eu te entendeo!... Mas a guerra não está perdida!...Vamos mobilizar o resto das nossas capacidades de resiliência e resistência... Haveremos de sair desta, como saimos da guerra, com mossas no corpo e na alma... Mas haveremos de sair, mais ou menos inteiros e sobretudo vivos!...
E por favor, camarada, esse belo consuktório, um dia, daqui a muitos anos, ainda há de ser musealizado... Vendido para o ferro velho, não vale um punhado de euros... É uma pena tantos equipamentos de saúde terem desaparecido no nosso país, nas nossas terras, sem que houvesse um técnico superior de cultura e patrim´´onio, nas nossas autarquias, a dizer alto e bom som, ao camartelo camarário: "Stop, não cometeas mais crimes de lesa-património e lesa-memória"!...
Parabéns também pelo soneto ao pai!... Fiquei muito sensibilizado!... Nós, os poetas, os artistas, os pintores, os escritores, os múaicos... temnos de saber emprestar a nossa voz, o nosso talento, àqueles que têm os mesmos sentimentso de amor filial, mas têm mais dificukldade de os pôr no papel, numa tela, num poema, numa pauta de música...
Um alfabravo fraterno, Luís Graça
Caro amigo Adão Cruz
Por norma vejo sempre os "post" com a tua contribuição.
Por norma, também, não tenho feito comentários. Que me recorde talvez umas aí umas duas ou três vezes.
Igualmente, por norma, ao apreciar uma pintura, a minha reação será primária, impulsiva, e nesse caso ou gosto ou não gosto ou, simplesmente, não "mexe" comigo.
Mas hoje tenho que comentar.
O relato que acompanha as fotos é revelador de algum desencanto, com a perceção do "fim de vida". Dos equipamentos, da atividade, da "utilidade".
Não se pode pedir que não seja assim. Pode-se pedir, isso sim, que se erga a cabeça e se valorize o "inventário" das coias boas.
Se se fizer o balanço da atividade, mais do que relembrar a listagem da origem dos "clientes", será muito mais gratificante relembrar os sucessos ocorridos com eles. E aí sim, tenho a certeza de que o meu amigo poderá dizer sem falsas modéstias de que "valeu a pena, fiz a diferença para imensos deles".
Quanto ao poema, também sem me sentir capaz de o apreciar do ponto de vista formal, mas apenas do leitor que se sente tocado, ou não, por ele, não posso deixar de dizer me me impressionou. Que, na minha faceta de sensibilidade estética (para além da de "conciliador"....) não deixei de "entrar" no conteúdo sentimental do poema/homenagem e me impressionar pelo mesmo.
Hélder Sousa
Ó Sr. Dr. Adão Cruz, gabo a sorte dos seus doentes.
Nós ficamos com as suas palavras, os seus poemas e o visionamento das suas pinturas, termos estado na guerra da Guiné e pedir para nos tratar da saudinha já era demais.
Abracelos
Valdemar Queiroz
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