quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)



Guiné > Região de Tombali > CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) > Nhacobá > s/d > Furriéis Azambuja Martins e [Joaquim]Costa

Foto (e legenda): © Vasco da Gama (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã"  (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):



Date: segunda, 1/02/2021 à(s) 15:50
Subject: O meu primeiro poste

Meu caro Luís, camaradas e amigos, protegidos por este enorme "Poilão", que é este (nosso ) Blogue de Luís Graça & Camaradas da Guiné (*):

Com a devida permissão, dada pelo Luís, para me encostar a todos vós debaixo deste magnífico poilão, aqui estou, pronto para acrescentar mais uma pequena gota neste oceano de gente "grande" e boa, que por força inexorável da lei da vida vai minguando dia após dia.

Já agora, permitam que me faça acompanhar pelo meu irmão Manuel (infelizmente já falecido), mobilizado para Guiné no início dos anos 60 e também do meu filho Tiago, engenheiro civil, que esteve dois anos na zona do Cacheu na construção de uma ponte sobre o rio com o mesmo nome mais precisamente em S. Vicente (ponte Europa, mais conhecida por Ponte de S. Vicente).

O meu filho e mais 4 colegas da empresa viveram momentos dramáticos enquanto jantavam num restaurante (A Padeira) junto ao local onde foi assassinado Nino Vieira (na altura presidente da da Guiné-Bissau) sentido muito perto o cantar contínuo das Kalachnikov e o rebentar das granadas dos RPG. Foi uma fuga (sem pagar a conta) com a tensão nos limites conduzidos por um trabalhador local, subornando todas as barreiras de militares até chegar aos estaleiros da empresa em S. Vicente. Ou seja: nada mudou desde o meu tempo de Guiné…

O Camarada da nossa tabanca, Hélder Sousa, que amavelmente fez um comentário na minha apresentação (*), que muito agradeço, já fez aqui referência a uma página de internete construída pelo Engenheiro Geógrafo Pedro Moço, amigo e colega de trabalho do meu filho, que conta ao pormenor toda a história da construção da ponte. Dada a qualidade da mesma, sugiro que a revisitem (**).

A seu tempo utilizarei um poste sobre a construção desta ponte.

Aproveito também para agradecer o comentário do meu vizinho, Gil Moutinho, e proprietário do excelente restaurante, Choupal dos Melros, onde já várias vezes jantei muito bem e comemorei com amigos os meus anos.

Embora as nossas casas não distem mais de 500 metros, só o Blogue nos deu a conhecer. Já tive a oportunidade de ver parte do Museu da Tabanca dos Melros, ainda no início, num jantar onde perguntei por ti mas nesse dia não estavas. Obrigado pelo convite e obviamente que responderei à chamada.

Um abraço ao autarca e amigo de Mampatá [, o António Carvalho, o Carvalho de Mampatá], que muitas vezes me convidou para os almoços da Tabanca, creio que de Matosinhos, mas que por vários motivos não pude aceitar.

Aos dois um grande abraço

Como já referi na minha apresentação (*), fiz parte da companhia de intervenção, a CCAV 8351 (Os Tigres do Cumbijã), formada no Regimento de Cavalaria n.º 3 de Estremoz, com comissão na Guiné em Aldeia Formosa e, mais particularmente, e proficuamente, em Cumbijã.

Com a minha passagem à aposentação, na tentativa de me manter ativo, para além de ler parte dos livros amontoadas e da bricolage, comecei a rabiscar um conjunto de histórias, do meu tempo de infância e da vida militar.

Tendo em conta os interesses e objeto do blogue, vou partilhar convosco (se os editores do blogue assim lhe reconhecerem qualidade bastante para aqui ser editado), para já, as minhas vivências desde o dia conturbado da chegada às Caldas da Rainha até ao regresso sui generis da Guiné.

Grande parte da história da companhia já aqui foi superiormente dada a conhecer a todos vós pelo ex capitão da companhia Vasco da Gama (a quem aproveito para mandar um abraço – não cotoveladas,  como agora é uso – assim como aos meus camaradas e amigos da companhia).

A minha narrativa sobre os acontecimentos, embora os factos sejam os mesmos, será obviamente diferente já que as vivi, naturalmente, de forma diferente.

Meu caro Luís, envio para ti este meu primeiro poste, contudo, se outra forma ou meio estiver instituído, agradecia que me desses a conhecer,

Bem hajam e saúde para todos.


2. Comecemos então pelo princípio: Caldas da Rainha e Tavira [, seguindo o índice do livro, em preparação, "Paz e Guerra: de pequeno ao furriel Pequenina"]


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte I
 

[9] Caldas da Rainha: A chegada às portas da tropa – um fardo pesado

Depois de ter ido às sortes e não me ter safado, o meu irmão Manuel, o primeiro a ir para a tropa na família com uma mobilização atribulada para a Guiné (1) (o segundo foi o João com comissão em Angola) (2), passou o tempo a dar-me conselhos sobre como me devia comportar nas lides dos quartéis, não obstante o tempo da chamada para a incorporação ainda vir longe.

Com a chegada da guia de marcha para as Caldas da Rainha os conselhos passaram a ser diários: "Respeita os graduados, o cabelo sempre curto, as botas sempre bem engraxadas, atenção aos amarelos... E a mais importante: nunca te ofereças como voluntário para nada". (Mais tarde constatei que este último conselho me livrou de algumas tarefas complicadas, nomeadamente descascar batatas toda a noite ou despejar fossas.)

Chegado o dia da partida, já devidamente preparado pelo Manel para enfrentar a vida militar, de mala feita e já fechada, chega à minha beira, o meu "padrinho de guerra", com 4 garrafas de vinho verde branco da casta Alvarinho e diz-me: "Abre lá o saco e leva estas quatro garrafinhas de vinho verde que te vão aligeirar a dureza da instrução".... "Como assim?",  digo eu. "Isto é assim", diz ele: "Logo no primeiro dia, com algum recato, ofereces 2 garrafinhas ao alferes e uma a cada cabo miliciano: funcionou comigo, contigo também não vai falhar!"...

O que logo me passou pela cabeça é que nunca teria a coragem de fazer tal coisa, para além de achar aquilo um absurdo, mas vi-o tão entusiasmado que pensei: "Ok, levo o material e encontrarei alguns momentos para confraternizar com os novos amigos de armas".

O meu "padrinho de guerra" foi comigo até ao comboio e ajudou-me a aconchegar a mala de modo a proteger as quatro "granadas".

Em Campanhã, arrastei a mala para fora do comboio e apercebo-me de um razoável grupo de mancebos com o cabelo rapado e com o mesmo ar assustado como o meu. Ao entrar para o novo comboio tive de pedir ajuda e logo surgiram as primeiras "bocas": "Já levas aí material de guerra?".. "São só quatro granadas" disse eu.

Em Alfarelos, onde a linha do Oeste desagua na linha do Norte, a estação ficou completamente inundada de mancebos vindos do Norte e do Centro do país,  mais parecendo um grande grupo de jovens em Interrail

A tarefa mais complicada foi carregar a mala da estação até ao quartel, mas com a ajuda dos amigos da ocasião lá se venceu o caminho.

Chegados à porta do quartel, deparo-me com uma enorme fila de pessoal para entrar. Pelos vistos, e para mal dos meus pecados, havia soldados a revistar minuciosamente todas as malas. Comecei a ver a minha vida a andar para trás. A primeira coisa que me ocorreu foi livrar-me daquele material perigoso, mas com tanta gente ao meu lado tal não era possível, pelo que tentei trazer a roupa toda para a parte de cima da mala tentando camuflar as "botijas" e seja o que Deus quiser.

Chegada a minha vez, com as mãos a tremer e já a transpirar, não obstante o frio que se fazia sentir, o nosso "pronto" começa a fazer a sua minuciosa revista, ficando estupefacto quando se depara com as quatro "granadas". 

Manda-me entrar para a guarita e com um ar sério vai dizendo que estou metido num grande sarilho: é crime levar bebidas alcoólicas para a caserna. Manda-me aguardar um pouco afirmando com algum dramatismo: "Vou chamar o nosso cabo já que só ele pode tratar deste caso". 

Chamou o cabo, mostrando um semblante de quem está a tentar salvar alguém da forca e disse-lhe: "Vê lá o que podes fazer pelo rapaz, não queremos que vá, logo no primeiro dia, dormir na cadeia do quartel!"... 

O nosso cabo olha para mim, fita as garrafas enquanto palita os dentes com a língua e "bota" a sua sentença: 

 "Se o oficial dia encontra aqui estas garrafas estamos todos tramados. Vou ficar com o seu nome, tentar esconder este material e, se tudo correr bem, está safo, se isto for descoberto está com um grande problema". 

A minha chegada às portas da tropa não podia ter começado melhor! Mais parecia a chegada às portas da guerra do Raul Solnado. Já me estava a sentir a pão e água na prisão do quartel!

Com as pernas a cederem e cheio de suores frios lá disse ao homem com a voz embargada: "Obrigado nosso cabo, ficar-lhe-ei eternamente agradecido"... mas receando o pior.

Passados uns dias (vividos com alguma ansiedade pelo desfecho do incidente das garrafas) tenho em cima da minha cama, depois de um dia duro de instrução, uma caixa com as quatro garrafas vazias e com a seguinte mensagem: 

"Podes ficar descansado. Assunto encerrado. Aqui estão as quatro 'granadas' já sem espoleta" (espoleta é um mecanismo que provoca a explosão da granada sem a qual a mesma é praticamente inofensiva)... "Sempre às ordens. Aguardamos, impacientes, a nova remessa"…
 
 _________

Notas do autor:

(1) Chegou a Bissau com uma grande pneumonia contraída durante a viagem, tendo quase de seguida regressado ao continente, com passagem à reserva, sem nunca ter visto Bissau.

(2) A sua comissão em Angola, como Furriel Miliciano, foram 2 anos de férias, numa zona junto a Luanda, onde nunca se sentiu a guerra e onde comprou carro e alugou casa…

No regresso embarcou ele (juntamente com a sua companhia) e o seu carro, um Ford Taunos, uma grande e espetacular "limousine" à americana dos anos 50 (a circular ainda hoje nas ruas de Havana), que fez parar a aldeia à sua chegada vencendo os caminhos, só frequentados até então por carros de bois, para chegar a casa...



Tavira > CISMI > Julho de 1968 > A chegada ao quartel da Atalaia dos novos instruendos do 1º Ciclo do CSM, vindos de todo o país. Fila do pessoal para receber fardamento, Foto do Fernando Hipólito, gentilmente cedida ao César Dias e ao nosso blogue.

Esta cena podia passar-se também à porta do RI 5, nas Caldas da Rainha. Esta rapaziada, chamada pela Pátria para cumprir o serviço militar obrigatório (, em tempo de guerra...), em finais da década de 1960 já tem um outro "look", a começar pelo vestuário... Tem outras habilitações literárias, outra  postura...

Presume-se que as belas cabeleiras, à moda dos "Beatles", já tinham ficado ingloriamente no chão do barbearia lá da terra ou de Tavira... Muitos fotam tosquiados à máquina zero, suprema humilhação para um jovem da época!... Não, já não é a mesma malta que parte, de caqui amarelo e mauser, para defender as Índias & as Angolas, uns anos antes ... O velho Portugal onde tínhamos nascido, estava a mudar, lenta mas inexoravelmente. E a nossa geração já não estava disposta a suportar os mesmos sacrifícios dos seus pais.

Foto (e legenda). © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: logue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[10] Tavira: com amor, ódio… e trampa


Já na altura, a tropa estava muito à frente! – eram distribuídas as especialidades de uma forma cientificamente infalível, através de testes ditos psicotécnicos que na altura, creio eu, só o exército utilizava.

Era recorrente ouvirmos que escriturários iam para mecânicos, mecânicos para escriturários, enfermeiros para transmissões e técnicos de rádio para enfermeiros...

Dado este rigor científico, tinha a expectativa, dada a frequência do 3.º ano em engenharia eletromecânica (Curso de Eletrotecnia e máquinas), que me sairia em sortes, no mínimo, a especialidade de transmissões!

Enfim: Armas Pesadas!... e "ala" para Tavira.

Só mais tarde, depois de uma análise mais fina aos psicotécnicos e ao constatar que a maioria dos meus camaradas do pelotão de armas pesadas tinham, alguma, formação em engenharia mecânica e eram todos "roda 26", (todos com pouco mais que metro e meio de altura), compreendi a justeza e o valor científico dos mesmos. Montar e desmontar os canhões sem recuo e as metralhadoras pesadas só alguém com alguns conhecimentos de mecânica.

Já a "roda 26" era muito importante (como é que eu não pensei nisso?) para se poder operar dentro do espaldão, de pé,  continuando protegidos já que não atingíamos a altura dos bidões de proteção! A tropa estava mesmo muito à frente!

Gostei, e gosto, muito da cidade, das praias, das igrejas, das gentes, das esplanadas, das chaminés. Detestei a instrução de "mata cavalo", não pela dureza, nem pelo rigor da disciplina militar, mas pela brutalidade gratuita de alguns graduados já com várias comissões no então ultramar.

Gostei do espírito de grupo e camaradagem do pessoal daquela incorporação.

Estes 3 meses em Tavira escancararam-me a porta para o novo mundo, já ligeiramente entreaberta no ano do curso antes da incorporação (tinha o "Canto e as Armas" de Manuel Alegre e uma cassete com os Vampiros e o Menino do Bairro Negro do Zeca Afonso e já me sentia um revolucionário!), fazendo de mim um cidadão mais informado e consequentemente (e conscientemente) mais disponível para abraçar causas, que no contexto da altura só podiam ser as da liberdade.

Foi uma verdadeira escola de vida. Não pela instrução, contraproducente, mas pela densidade cultural e política de alguns dos intervenientes nas tertúlias e reuniões, supostamente, clandestinas.

Discutia-se e questionava-se a guerra, a ditadura, o embrutecimento da instrução militar, as péssimas condições das casernas e a péssima alimentação e também... futebol (aqui as divergências eram claras)… e as lindas algarvias (aqui havia mais consenso), etc.

Nesses três meses fizeram-se dois levantamentos de rancho (decididas em reuniões clandestinas restritas e com a informação a circular de boca em boca). Nenhum instruendo cedeu. A todos estes acontecimentos não é alheio o facto de fazerem parte desta incorporação dois filhos de altos dirigentes do MDP/CDE, que obviamente eram os líderes e promotores das tertúlias e reuniões clandestinas e de quem perdemos o rasto dias antes do fim da especialidade...

Na altura o então capitão Raúl Folques (militar altamente prestigiado) comandava, se a memória não me falha, uma das companhias de atiradores. A sua presença impunha respeito (na altura mais medo). Militar irascível, mas com comportamentos fora dos cânones militares ao terminar um levantamento de rancho, dando voz aos instruendos, deitando para o lixo toda uma refeição e ter mandado preparar uma nova, de qualidade aceitável, voltando, contudo, tudo ao normal nas refeições seguintes.

Toda a instrução era estúpida, contraproducente e desajustada tendo em vista o objetivo principal que era a criação de um corpo de militares preparados física, psíquica e tecnicamente para uma guerra de guerrilha num ambiente hostil e completamente desconhecido.

O objetivo principal da instrução foi sempre e só a humilhação pessoal:

  • Rastejar do quartel até ao local de instrução, com paragens para ler o RDM (Regulamento de Disciplina Militar) com um pé do instrutor em cima das nossas costas;
  • "Chafurdar" nas salinas abandonadas, de águas podres, pelo simples prazer de humilhar;
  • Fazer a entrega da correspondência, em formatura na parada, fazendo comentários brejeiros e mesmo obscenos sobre o que seria o conteúdos das mesmas enxovalhando todo aquele que recebia uma carta perfumada ou com "coraçõezinhos"...

Chegou-se ao ponto de se abrir uma carta (com muitos coraçõezinhos) e ler o conteúdo da mesma para todo o pelotão. Tal só aconteceu uma vez dado a ameaça, levada muito a sério, que se voltasse a fazer o mesmo o autor levaria um tiro.

Bastou uma semana passada em Tavira para compreender porque toda a gente chamava Hotel das Caldas ao quartel das Caldas da Rainha...

Tendo em conta as experiências do dia a dia e as histórias contadas por militares que por ali tinham passado, a semana mais temida era a da "nomadização". Éramos lançados, em pequenos grupos, na serra do Caldeirão, com ração de combate apenas para um dia, com um conjunto de pontos onde éramos obrigados a passar, regressando ao pondo de partido, no 4.º dia, onde éramos recolhidos.

Contra todas as expectativas foram os melhores dias que passei em Tavira. Tinha eu a ideia que estando nós no Algarve, supostamente uma das regiões mais desenvolvidas do país por força do turismo, ali já massificado, e o contacto com grande número de estrangeiros, que todo o conforto aqui seria possível.

Eu que vinha duma pequena aldeia do Minho, fiquei boquiaberto com o isolamento daqueles pequenos povoados, dispersos, sem luz elétrica, sem vias de comunicação, só trilhos por onde passavam, com dificuldade, animais.

A nossa chegada a estes locais era como a chegada de extras terrestres. Fomos recebidos por estas gentes como família e como familiares comemos à sua mesa. Nos quatro dias sempre jantamos à mesa, em casas diferentes, e dormimos: uma noite num curral dos animais, outra num silo e a terceira noite numa destilação de aguardente de medronho onde acordamos completamente tontos (embriagados) dado a quantidade de vapores etílicos no ar.

Numa das casas uma mulher, já nos seus 60 anos, confidenciou-nos que não obstante ser Algarvia, ainda não tinha visto o mar.

Contudo havia uma pequena escola primária, com meia dúzia de crianças, onde falamos com a professora, ainda jovem, com o namorado na tropa nas Caldas da Rainha, pelo que, não só, mas também, pensando nele, fez questão de partilhar connosco o seu lanche que os habitantes todos os dias lhe preparavam.

Durante a agradável conversa, com os alunos maravilhados com o generoso intervalo, contou-nos a sua aventura diária para chegar à escola. Utilizava 3 meios de transporte: autocarro, bicicleta e um burro nos últimos metros mais acidentados. Despedimo-nos com votos para que o seu namorado jamais viesse parar a Tavira...

Mas, o momento marcante da instrução (para além do tradicional mergulho nas velhas salinas de água podre, a semana de campo e a semana de nomadização) era o dia do fogo real, feito para a ilha de Tavira.

Com a especialidade de armas pesadas tínhamos de manobrar, de olhos fechados, as seguintes armas:

  • canhões sem recuo (cujo disparo tinha de ser feito com o cotovelo, com as mãos a tapar os ouvidos e a boca bem aberta para não darmos cabo dos tímpanos);
  • morteiro 120,
  • metralhadoras pesadas Browning e Breda.

Tudo isto a disparar para a ilha de Tavira metia medo ao susto. E assim foi...

O responsável pela carreira de tiro era um Tenente que tinha chegado recentemente da Guiné (um dos homens mais temidos no quartel a par do capitão Folques), completamente "cacimbado".

No meu pelotão tinhamos um excelente rapaz, grande melómano (moldou os meus gostos musicais que perduram até hoje), que de todo, não atinava com esta "coisa" da tropa. Começado o "fogachame" em simultâneo para a ilha de Tavira com a Breda, a Browning,  o morteiro 120 e o canhão sem recuo (o fogo de artifício das festas da Senhora da Agonia, comparado com isto é uma brincadeira de criança), logo o nosso melómano começou a fugir aos gritos impressionado com todo aquele aparato, convencido que o mundo estava a desabar.

O Tenente obriga-o deitar-se no chão e diz-lhe: "Se levantares a cabeça, um milímetro que seja, és um homem morto"... E começa a disparar com a Breda por cima do rapaz

A todos nós, que estávamos a assistir aquilo, não nos cabia um feijão no "dito", não obstante constatarmos que, pese embora o "cacimbo" da Guiné, o homem apontava as rajadas para uma altura de segurança, nunca pondo em perigo a vida do nosso camarada.

Terminado o filme de terror, fomos a correr ver como estava o nosso homem: branco, branco. Levantamo-lo, com todo o cuidado, e foi então que começamos a sentir um cheiro insuportável e algo a escorrer pelas botas a sair das calças do melómano... e assim passou de melómano a "merdalómano" (um mal nunca vem só…)

Nota: Nessa noite a caserna parecia a "aldeia da roupa branca (neste caso verde)" com toda a gente a estender as suas calças a secar penduradas na cabeceira da cama, ao qual me associei, contudo não tenho memória que tivesse chovido nesse dia!...

(Continua...)

____________

Notas do editor:

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...



Joaquim: deixa-me dizer que entraste bem, com os dois pés, o esquerdo e o direito... Adorei a reconstituição da tua passagem pelas Caldas da Rainha e por Tavira, o mesmo percurso que o meu... E o mesmo destino: armas pesadas de infantaria, trocadas pela G3 na Guiné...

Tens sentido de humor, que é uma coisa que nos faz muita falta, sobretudo agora que estamos agora na "terceira infância", e em risco de sermos "covidados"...

Fiz a necessária revisão e fixação do texto para publicação no blogue... Tinhas demasiados itálicos que, aqui, não ficam bem, dificultando a leitura... Diz-me se está tudo bem, para ti, se queres corrigir ou acrescentar alguma coisa... Vê se concordas com o título da série... Podemos sempre corrigir, em qualquer altura...

Vejo que não tens muitas fotos, vamos ter que nos socorrer da nossa vasta "fotogaleria" (devemos ter mais de 100 mil imagens).

Dou conhecimento (, tratando-se de um "periquitpo",) aos nossos editores e colaboradores permanentes bem como a alguns camaradas que passaram as mesmas "passas do Algarve" (nas Caldas e/ou em Tavira), e de quem me lembro assim de repente...

Procura dividir o texto em partes publicáveis...Os postes não podem ser muito extensos, tornam-se "ilegíveis"... Para já estás a seguir o índice do teu livro em preparação (,não quis "roubar-te" o título...), mas não é obrigatório...

Nem tens que ser "fiel" ao manuscrito... Mas estás à vontade para seguires a tua ideia...Já vi que o teu livro pode ter vários públicos-alvo... Podes também falar da tua infância, antes por exemplo de entrares na guerra... Como sabes, o nosso blogue não vive só da guerra: afinal, fizemos a guerra e a paz... E um dos editores é sociólogo, e adora "histórias de vida".

Um alfabravo, Luís

PS - Mantenhas também para o teu filho que esteve na construção da ponte de São Vicente, com os seus colegas da Soares da Costa. Diz-lhe, se não te importas,que "os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são". Ele também pode partilhar connosco, aqui, as suas boas e recordações da Guiné-Bissau.

Anónimo disse...

Joaquim Costa (by email)
3 fev 2021 12:33


Obrigado Luís pelas tuas simpáticas e sábias palavras.

Estamos sempre num processo de aprendizagem. Com o tempo vamos lá, Luís.

Isto de lançar periquitos para o mato sem o IAO dá nisto

Tinha umas fotografias associadas ao poste que infelizmente me esqueci de enviar

Seguirão no próximo poste

Como bem dizes, o meu público-alvo não se resume aos camaradas da Guiné, mas tendo em conta que estamos em família farei chegar, também, a parte da minha infância e Juventude.

Obrigado Luís pelos teus cuidados e um grande abraço.

Anónimo disse...

Força, Costinha.

Grande abraço para ti e para o Blogue Luis Graça.



Vasco A. R. da Gama