terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21872: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (5): "A carreira para Brá"; "Ilondé" e "Desenrascanço"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


13 - A CARREIRA PARA BRÁ

Enquanto estivemos nos Adidos, a aguardar colocação, deslocávamo-nos com alguma frequência ao centro de Bissau, fosse para ir telefonar ao Correio, comer ostras frente ao Mussá, na rua da Polícia, beber um café no Bento, no Império ou na Ronda, tomar ao fim da tarde um gin tónico na esplanada do Pelicano ou jantar no Solar dos Dez.

Havia transporte do Exército mas, por conveniência, de vez em quando fazíamos a viagem de autocarro, com a população local, e, para mim, era uma viagem deliciosa não obstante os odores e a gritaria que tinha de suportar.

Um belo dia, durante o trajeto, o autocarro, com portas automáticas, apinhado, parou para entradas e saídas. Empurrão daqui, empurrão dali, o pessoal lá se foi ajustando no espaço disponível. Contudo, no arranque, um guineense ficou com o corpo de fora e as pernas para dentro da porta traseira do autocarro o que gerou alarme imediato com a pronta imobilização da viatura. Tornou a tentar entrar no autocarro e, quando ia a subir, a porta fechou-se novamente e, no arranque, logo abortado, ficou com a cabeça dentro do autocarro e as pernas de fora. Finalmente lá conseguiu entrar totalmente dentro do autocarro e, com toda a gente a rir incluindo o próprio, lá seguimos viagem.

Uma situação que, na Metrópole, daria ensejo a forte discussão foi ali um momento de boa disposição.

Adidos: momento de descontração

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14 - ILONDÉ

Após alguns dias passados nos Adidos fomos para o Ilondé, aquartelamento situado entre Bissalanca e Quinhamel, que apenas possuía dois edifícios que serviam para a instalação do comando do Batalhão e das Companhias, secretarias, depósito de géneros e de armamento e um pequeno bar que servia à porta. Aliás, naquele local ia ser construído um novo aquartelamento cuja obra teve início mas duvido que tenha sido terminada.

O pessoal ficou instalado em tendas de campanha. Não havia latrinas nem banho. Para obviar ao problema foram cavados alguns metros de trincheira para onde a rapaziada defecava diretamente. A questão dos banhos era solucionada no rio que passava próximo, com grande dificuldade para os que não queriam tomar banho diretamente no rio, pois era preciso esperar que o latão enterrado na margem enchesse e, depois, com meia cabaça proceder à molha, ensaboamento e retirada do sabonete (Lifebuoy), situação semelhante à vivida em Colibuia só que agora com mais gente. As nativas que lavavam a roupa em local próximo passavam o tempo do nosso banho na risota, fazendo entre si comentários em crioulo que não percebíamos mas facilmente adivinhávamos.

Mas, o pior sucedeu após alguns dias naquela situação pelo facto de, com o vento, o papel higiénico utilizado andar a voar por todo o acampamento, situação que deu lugar à formação na parada das forças acampadas perante as quais foi feito um discurso tardio sobre a forma de resolver o problema, que passava pela utilização de uma pá de areia de cada vez que se usava a latrina improvisada. Não sei se saiu à ordem qualquer orientação sobre o assunto mas, se saiu, gostaria de saber os termos em que foi feita.
Ilondé: a minha tabanca (e de mais 7). O Caetano e eu (em pé)

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15 - DESENRASCANÇO

Com o pessoal instalado em tendas de campanha começou, logo no primeiro dia, a procura por melhores condições de vida dentro das circunstâncias que incluiam a inexistência de latrinas e banhos.

As tendas foram sendo abertas na parte de tràs, junto ao arame, e com ajuda da vegetação existente formava-se um acrescento significativo (atrasado) da tenda que servia de sala de estar e de comer (não havia refeitório).

Com madeira aproveitada faziam-se mesas e pequenos armários para guardar os utensílios de necessidade constante.

O pessoal mais apto para a área comercial construiu uma pequena estrutura coberta com capim, onde era servido café instantâneo e se lia o jornal com alguns dias de atraso.

Alguns dias passados, apareceu um jogo de matraquilhos, instalado ao ar livre, que constituia receita da Companhia e cujo montante foi progressivamente minguando, embora o pessoal jogasse mais ou menos o mesmo.

Entretanto, com a resolução do problema das latrinas e dos banhos, o pessoal partiu para um estádio superior de conforto tendo-se dedicado afanosamente a melhorar as suas condições de vida das formas mais diversas.

Porém, a cereja no topo do bolo era a cadeira de baloiço feita de um barril de vinho.

Ilondé: a minha tabanca (e de mais 7), a mesa exterior e as cadeiras de baloiço. Da esquerda para a direita: o Pinto, o Chaves, o Caetano, o Mendes e o Domingos (à civil)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21858: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (4): "O Machado"; "O Tiago e a pena" e "Viagem para Bissau"

3 comentários:

Valdemar Silva disse...

José Domingos
Como pormenores interessantes, verifico utilização das tábuas dos barris do vinho para fazer os mais diversos modelos de cadeiras e em 1969/70 não me recordar, ou não havia ao certo, dos autocarros de transporte público, em Bissau.

Abracelos
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Experiências dessas, "em tempo de paz", não fariam mal agora aos nossos filhos e netos...

Também vivi em tendas, cerca de mês e meio, no Centro de Instrução Militar de Contuboel, entre 2 de junho de 1969 e 18 de julho de 1969. Eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12)... Contuboel era, como eu escrevi, um "oásis de paz"... naquela altura.

E agora pergunto ao Valdemar Queiroz: onde é que estavam alojados os nossos instruendos africanos, que eram mais de 200 ? 100 da minha cpmpanhia, 100 da tua, mais um peleotão da CCAÇ 2592 (futura CCAÇ 14) ?

Valdemar Silva disse...

Luís, boa pergunta mas também não me lembro muito bem.
Vamo-nos situar no tempo, que bom seria recuar no tempo, e entrar no Quartel de Contuboel.
Entrando no portão de arame-farpado havia à esq. uma tenda do sentinela e outra tropa de serviço e à dta. havia um grande número de tendas de campanha. Depois havia a parada com o poste da Bandeira enfiado num bidão de gasolina com areia, no lado esq. as instalações de alguma tropa da CCAÇ. do CIM de Bolama, Secretaria, Refeitório Oficiais/Sargentos, Posto Médico e Balneários, ao fundo o grande Refeitório Geral e no lado drt., completando um "U", a nossa caserna de Sargentos.
Visto isto, sei que o nosso Capitão morava na rua principal da Tabanca não sei se os outros Oficiais também e quanto ao resto do pessoal, condutores e especialistas, da nossa CART 2479 não me recordo onde ficavam. Talvez o Abílio Duarte se lembre e explique melhor.
Mas quanto aos nossos instruendos africanos, no P3199, do Renato Monteiro, aparece uma fotografia do grande acampamento com a legenda '...ao fundo, debaixo dos poilões frondosos, as tendas de campanha onde dormiam tanto os instrutores como os instruendos...'.
Pese, embora, estivesse-mos no "oásis de paz", realmente para um total mais de 300 militares havia poucas instalações edificadas.
Bons tempos, vinte e poucos anos, num oásis de paz, sem confinamento que se lixasse o viver em tendas de campanha.

Abracelos
Valdemar Queiroz