quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21886: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (6): "A reunião", "Os incêndios" e "O prostíbulo"

1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


16 - A REUNIÃO

Instalados em tendas de campanha, com doze moradores em cada uma, péssima comida servida ao ar livre, ausência de latrinas e de chuveiros, fizeram com que o comandante da Companhia reunisse o pessoal nas imediações do aquartelamento, a pretexto de um exercício, procurando saber quais as maiores carências sentidas para de alguma forma as poder minorar.

Várias intervenções apontaram para as reais dificuldades que os militares sentiam mas a maioria dos problemas apontados não colheram grande adesão. Com maior insistência por parte do comandante na identificação dos problemas houve quem apontasse problemas que nem existiam. Contudo, uma das questões levantadas que concitou a quase unanimidade dos presentes foi a escassez de vinho às refeições, problema que o comandante prometeu resolver de imediato.

Assim, na refeição seguinte, apareceu vinho com abundância. Claro que a quantidade era praticamente a mesma, continha era mais gelo.

Aliás, a distribuição do vinho tinha momentos caricatos. Quando algum soldado menos dado à bebida abdicava da sua ração de vinho logo o imediatamente a seguir, ou o anterior, propunham-se recebê-la. Contudo, ressaltava um problema logístico que era a inexistência de segundo copo. Sem problemas, o soldado beneficiado ingeria logo ali a ração do camarada e transportava depois a sua para acompanhar o repasto.

Esta reunião marcou-me bastante pois a uma boa intenção, rara naquele meio, correspondeu uma insensibilidade total daqueles que dela podiam tirar benefício e que nem disso se aperceberam. Aliás, e por mim falo, grande parte dos militares participantes naquela guerra nem tinham bem consciência do sarilho em que estavam metidos.

Ilondé: hora de pôr a escrita e a leitura em dia. Da esquerda para a direita: eu, o Silva, o Cibrão e o Costa (de costas). Em pé está o Chaves

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17 - OS INCÊNDIOS

No sentido de melhorar a instalação do pessoal, até que o aquartelamento fosse construído, foram erguidas duas instalações de capim que pretendiam ser o refeitório e a messe.

Creio que o refeitório nunca foi equipado com mesas e bancos e, portanto, nunca foi utilizado como tal.

A messe era dividida ao meio por uma cerca de pequenos troncos em X, para que não se misturassem oficiais e sargentos, embora estivessem todos à vista, e a conversa tinha que ser comedida pois o nosso comandante de Batalhão jogava bridge com outros oficiais e precisava de concentração. Ao fundo, tinha um balcão de atendimento também separado pela mesma cerca com um frigorífico alimentado a petróleo. Era possível comer uma sandes e beber uma cerveja sempre que o rancho não era apelativo. E havia fiado.

Um dia, talvez por avaria do frigorífico, em horário de serviço, a parede de capim incendiou-se e a messe ardeu e, com ela, arderam as existências, as notas em caixa e …o livro de fiados, cuja regularização ficou logo feita.

Porém, antes, um grupo de soldados, cuja tenda era contígua à que eu habitava, tinham no intervalo entre ambas instalado um pequeno bar, feito de capim, onde vendiam café instântaneo e que para atrair clientela dispunha do jornal “A Bola”, que um deles assinava.

Um domingo, resolveram fazer um almoço de bacalhau cozido para o qual tinham convidado dois ou três amigos de outras unidades. Por mau funcionamento da máquina a petróleo, ou por qualquer outro motivo, o bar incendiou-se tendo o fogo alastrado por acção do vento para a tenda contígua (que não a minha), onde viviam os proprietários do bar, e consumido tudo o que lá se encontrava, incluindo cerca de uma dezena de G3 e respetivas munições e algumas granadas.

A situação estava complicada e só por acaso não fez vítimas graves devido ao rebentamento das munições e granadas. Para dominar o fogo veio o carro da água e um soldado mais solidário saltou para a porta do pendura com o carro em andamento para ajudar a combater o fogo, mas, por infelicidade, estatelou-se no chão e deslocou um ombro.

Pagou cara a solidariedade, pois estava prestes a vir de férias e, com o tempo de recuperação e a resolução do respetivo auto, estas esfumaram-se.

Ilondé: o incêndio no café

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18 - O PROSTÍBULO

O desenrascanço dos portugueses, em geral, e dos soldados em condições difíceis de sobrevivência, em particular, dariam um bom livro, filme ou exposição (se isso já não foi feito).

No Ilondé, em péssimas condições de instalação já antes descritas, com doze soldados a viver em cada tenda, com todos os apetrechos militares e civis, a convivência por vezes era complicada. Mas, o pessoal era capaz de fazer milagres para melhorar essas condições e, havia um caso, logo na primeira tenda do lado da estrada, a um canto do arame farpado, onde essa convivência era exemplar.

Num dia de pré, ao cair da noite, comecei a ver algum movimento nesse canto do aquartelamento com a presença de várias raparigas do lado de fora, em amena cavaqueira com alguns soldados, e um africano, com ar cabo-verdiano, que, soube depois, se fazia transportar numa carrinha de caixa aberta. Pensei que fosse pessoal da população e não liguei mais ao assunto. Contudo, no mês seguinte, reparei no mesmo cenário, também em dia de pré, o que me levou a concluir que ali havia gato.

Até que, em conversa com um dos soldados, fiquei a par da situação. Nos dias de pré, previamente conhecidos, havia alguém que contactava com o tal cabo-verdiano que, ao cair da noite, trazia as moças para o local previamente combinado. Para que a função não fosse feita em condições desconfortáveis, as raparigas entravam para a retaguarda da tenda e aí, num colchão militar, devolviam aos usuários a calma necessária para enfrentar as agruras da vida até ao mês seguinte. Antes de iniciar a função procedia-se ao pagamento, cujo montante não apurei, e, satisfeitas as necessidades, o militar ia à vida que a moça tinha ainda clientes para atender.

Contudo, havia que proceder ainda a um pagamento adicional ao soldado que tinha cedido o colchão para o efeito, pois não era prático andar cada um com o seu colchão às costas, entre tendas, que estas coisas fazem-se de forma discreta. Normalmente, o cedente do colchão fazia rendimento suficiente para ter o mesmo benefício sem avançar com o seu dinheiro.


Ilondé: passeio domingueiro ao Biombo. À frente o P. Costa; 2ª linha: o Carmo, o Domingos, o Silva, o Martins e o Alves; 3ª linha: o Chaves, o Pinto e o Cibrão
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21872: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (5): "A carreira para Brá"; "Ilondé" e "Desenrascanço"

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Deliciosa, a história do prostíbulo!...Temos sempre algum pudor em abordar o tema do "sexo em tempo de guerra"...Mas nunca é tarde... Em Gamapará, no 3º trimestre de 1972, a 38ª CCmds tinha "direito" a um carregamento de moças que vinham de Bissau, em LDM...Em Dien Bien Phu, no Vietname, as únicas mulheres que assistiram, em 1954, ao colapso militar dos franceses, foi uma heróica enfermeira e um pequeno grupo de prostitutas vietnamitas...

Sempre foi assim em todas as guerras...LG

Valdemar Silva disse...

Domingos
Estas três cenas: A reunião, Os incêndios e O prostíbulo, davam grandes programas de televisão.
A cena do vinho, altamente discutida na "A reunião", é dos mais fascinantes "problemas" que tínhamos de enfrentar na guerra. O problema do vinho já vem de longe, aconteceu o mesmo com os soldados franceses na grande guerra 1914-1918. Então cá entre nós, que até 'matava a fome a milhões de portugueses', sem o vinho nada feito, mas com o vinho tudo feito.
A cena do prostíbulo, que cena pá, também tem semelhanças com o que se passou na grande guerra 1914-1918, com a deliciosa diferença da utilização do colchão e vamos pensar por cá já ser proibido as "casas das meninas" senão também haveria o negócio colchão, lençol, bidé e toalhinha.

Abracelos
Valdemar Queiroz

João Silva disse...

Gelo no vinho foi coisa que não vi,era ouro.
Um frigorífico a petróleo, na messe mista de Cabuca em 1972 mal dava para os oficiais e sargentos. Uma basuca fresca era o paraíso. Meio choca, para os eleitos, marchava em duas tragos.
Vinho batizado, com água da bolanha, era o pão nosso de cada dia.
Os Vagomestre e cozinheiros não eram conhecidos pela qualidade e variedade do rancho.
Em Bolama, início de 1974, quando os batalhões iam realizar o IAO e me aparecia um conterrâneo a prenda que apreciavam era uma basuca bem gelada.
Mas mesmo em CIM, na messe dos sargentos, liderada por um ajudante, gelo era OURO.

João Silva furriel At. Inf