segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21870: Antropologia (40): Conto iniciático da etnia Fula, contado aos mais novos (Cherno Baldé, colaborador permanente em assuntos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau)

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > A festa do fanado... mandinga

Foto (e legenda): © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, ("Chico de Fajonquito", colaborador permanente em assuntos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau), com data de 1 de Fevereiro de 2021:

Caros amigos,

Na sequência das ultimas publicações sobre cerimónias e ritos tradicionais de fanados e outros, junto envio um conto iniciático dos fulas, contado aos mais novos nessas ocasiões. Trata-se de uma amostra quando se fala das bases sociológicas em que se assentava a educação tradicional africana nas suas diversas facetas.

Todos aqueles que foram educados na base da matriz cultural da tradição africana saberão reconhecer os alicerces e suas derivações e aqueles que não o sendo tem acompanhado seus contornos poderão experimentar o prazer de navegar em águas já conhecidas e apreciadas ao longo dos últimos anos.

Se for de algum interesse, de momento, podem publicar no Blogue da TG.

Com os meus respeitosos cmpts,
Cherno Baldé


CONTO INICIÁTICO DA ETNIA FULA CONTADO AOS MAIS NOVOS

Um homem que vivia numa aldeia tinha um filho de quem gostava muito e a quem queria dar uma boa educação conforme usos e costumes da época. Depois de uma vida de criança livre de brincadeiras até à idade dos sete anos, o pai decidiu enviá-lo para uma escola corânica a fim de aprender os fundamentos da religião que orientava a vida espiritual da sua comunidade. 

Depois de muitos anos de aprendizagem e de duros trabalhos junto do seu mestre, concluiu os estudos e voltou para casa familiar.

Após o contentamento e euforia dos primeiros dias e quando o jovem se preparava para construir sua casa e ampliar a família com a constituição de sua própria família, o pai chamou-o outra vez e disse-lhe:

- Meu filho, estamos muito orgulhosos da tua dedicação ao trabalho e o teu desempenho escolar, mas acontece que na vida a escola é importante mas não é tudo. Agora vais ter que aprender na escola maior que é vida, o conhecimento sobre o mundo, suas infindáveis maravilhas, contradições e desafios, por isso queremos que partas para uma viagem de volta ao mundo, tomando a direcção que te convier - Norte-Sul-Este-Oeste - e durante o percurso vais encontrar e viver muitas situações e observar fenómenos que nunca tinhas visto e experimentado na tua vida. Em tudo deverás tirar lições que te poderão servir na vida futura, pelo que tudo que não for da tua compreensão, deverás observar direito e tomar boa nota até ao seu regresso.

No dia seguinte, o filho despediu-se da sua mãe e de toda a família, pegou na sua flecha e no chapéu de abas largas com que protegia a cabeça do ardor do sol africano e outras poucas coisas que poderia precisar durante a sua viagem e partiu rumo ao desconhecido.

Depois de muito caminhar, encontrou uma abelha que estava morta no caminho e decidiu dar-lhe sepultura, mas para sua surpresa, à medida que a enterrava e se preparava para continuar a sua caminhada a abelha emergia da terra e voltava ao mesmo sitio donde a tinha retirado antes.

 Percebendo estar diante de um fenómeno que não compreendia, lembrou-se dos conselhos do pai que lhe dissera para tomar nota de tudo que visse e lhe parecesse estranho, tomou nota e continuou a sua caminhada.

Mais à frente viu no caminho um objecto redondo que brilhava parecendo ouro, mas quando se preparava para pegá-lo o objecto transformava-se numa cobra e quando se afastava, o objecto voltava a assumir, de novo, o mesmo brilho. Percebeu estar diante de um fenómeno estranho, tomou nota e continuou. 

Prosseguindo seu caminho, viu um macaco em cima de uma árvore que, sistematicamente, metia a mão no sexo e de seguida punha na boca como se de alimento tratasse, pareceram-lhe muito estranhos e pouco higiénicos estes gestos, todavia lembrando-se dos conselhos do pai, tomou nota e prosseguiu.

Passou à frente e viu um grupo de vacas num terreno de ervas verdes e água ao redor, mas os animais eram bem magros e de aspecto triste. Não conseguiu entender o que se passava com aqueles animais, havia muita erva e água em abundância, mas mesmo assim estavam tão magros e tristes. 

Mais à frente vislumbrou um outro grupo de vacas num terreno desta vez sem ervas nem água, curiosamente, desta vez, os animais eram gordos e bem dispostos. Pareceu-lhe mais um fenómeno incompreensível, tomou nota e prosseguiu.

Continuando a sua caminhada viu, mais à frente, um porco vestido de batina, uma larga e comprida camisa que lhe ia da cabeça aos pés como se vestem os nossos almames (padres), nas mãos tinha um rosário cumprido recitando versículos corânicos. Ele que conhecia o Alcorão de cor, nunca na sua vida imaginara ver um porco religioso e eis que encontra um porco que recitava versículos. Era tudo muito estranho. 

Mais a frente viu uma outra imagem, onde o mesmo porco estava, desta vez, mais descontraído e rodeado de mulheres em ambiente que parecia de uma grande festa. O jovem ficou confuso diante deste fenómeno bizarro, lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e continuou seu caminho. 

Cada vez mais perplexo com o que estava observando pelo caminho, prosseguiu a sua caminhada e desta vez ele viu um enorme elefante parado numa bolanha (planície) enquanto outros pequenos animais, répteis, insectos e pássaros subiam ou pousavam no seu dorso picando e alimentando-se da sua carne e bebendo do seu sangue, mas o elefante, incompreensivelmente, mantinha-se quieto e imóvel. O jovem não compreendeu porque um animal tão possante estava parado e quieto enquanto animais insignificantes o molestavam. Lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e continuou sua viagem.

Mais à frente viu uma gazela que só tinha três pés e dum lado e doutro do corpo tinha brilho de ouro e de prata. O jovem correu atrás da gazela tentando agarrá-la ja que só tinha três pés, no entanto sempre que se aproximava da mesma esta parecia que voava e se distanciava para bem longe da sua vista. Pareceu-lhe estar diante de um novo fenómeno que não compreendia, lembrou-se do pai, tomou nota e prosseguiu. 

Continuando a sua caminhada de aprendizagem sobre a vida e o mundo e já o sol se escondia no horizonte e a noite estendia o seu manto de escuridão sobre a terra, quando o jovem resolveu entrar numa aldeia situada à beira do caminho para passar a noite a fim de prosseguir no dia seguinte. Quando entrou na primeira morança, encontrou um homem muito velho e abatido pelo peso da idade que estava sentado junto a uma fogueira, cumprimentou-o com todo o respeito e pediu asilo para uma noite pois tinha caminhado muito e estava cansado. 

O velho respondeu-lhe numa voz acabada e quase inaudível que a morança não era dele, mas do seu pai que, de momento estava ausente. O jovem ficara, mais uma vez, pensativo com a ideia de saber, se o filho estava assim naquele estado como não seria o pai. No mesmo momento surgiu a entrada da morança um homem mais novo e robusto que trazia lenha a cabeça para sua morança. O homem cumprimentou-o e confirmou que, de facto, era o pai do velho sentado junto a fogueira. Deu asilo e mandou trazer água e comida ao jovem, que, mais uma vez ficou intrigado com o fenómeno diante dos seus olhos, lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e foi dormir para descansar, enquanto passava em revista todas as cenas de que tinha sido testemunha em tão pouco tempo de viagem.

Após alguns anos de viagem pelo mundo, o jovem decidiu regressar a casa dos pais e contar ao pai e família tudo aquilo por que tinha passado e tinha observado ao longo dos últimos anos. Enquanto ele descrevia as cenas do filme das experiências da sua viagem, o seu pai dava o significado dos diversos comportamentos e fenómenos daquilo que ele tinha visto no caminho, com que tomamos a liberdade de partilhar com os nossos estimados leitores.

Assim:

1. A abelha que ele não conseguia enterrar, é o homem de bem, homem puro, solidário e desprovido de inveja, a este homem imaculado ninguém consegue denegrir a sua imagem por mais que tentem. É o homem próximo do Deus.

2. O objecto brilhante que se transforma em cobra, é a mentira embelezada para parecer verdade, ao longe tem o brilho de ouro, mas é brilho de pouca dura, pois se a mentira pode ser o início numa relação, só a verdade a manterá.

3. O macaco que metia a mão no sexo e de seguida a levava a boca, são os nossos tempos actuais “Afri-djamanu” (África moderna), tempos em que homens e mulheres vendem seu corpo, ganham autonomia financeira vivendo por sua conta graças à prostituição, alimentando famílias inteiras.

4. O cabrito que subia o tronco da árvore com espinhos em vez dos seus semelhantes fêmeas, é o jovem que vai atrás de mulheres idosas e do sexo duvidoso e infrutífero, ele perde seu tempo, sua força e saúde, mas nunca terá progenitura.

5. O pássaro que, quando se pousava numa árvore esta perdia suas folhas, é o homem irresponsável que em sua casa não assume suas responsabilidades, mas lá fora é o homem-valentão de mãos largas e bondoso que alimenta as mulheres e filhos alheios.

6. O grupo de vacas muito magras num terreno fértil e água em abundância, são as mulheres eternamente insatisfeitas, que passam a vida a bisbilhotar na vida dos outros e levantar a vista para a casa dos vizinhos. Estas mulheres, inconformadas com as possibilidades dos seus maridos e família,  nunca se contentarão com aquilo que têm, em consequência nunca serão felizes da vida. As vacas gordas num terreno seco sem ervas nem água, pelo contrário, são as mulheres de bem, conformadas com o pouco que têm em casa e não se embirram com seus maridos.

7. O porco vestido de batina com um rosário nas mãos recitando versículos, é o rei despojado do seu trono que está a fazer figura de grande religioso. Devolvam-lhe o poder e verão que ele continua tão descrente como todos os reis e homens de poder do mundo.

8. O elefante gigante parado na bolanha e servindo de pasto aos pequenos animais, é o velho e chefe da morança (família) que com paciência, benevolência e muita resignação trabalha todos os dias para o sustento e bem estar da sua família sem esperar qualquer retribuição em troca. Em África, o mais velho é o centro do mundo, o abrigo e a lixeira onde se deita o lixo da humanidade.

9. A visão da gazela de três pés que tinha brilhos de ouro e de prata de um lado e doutro, é a visão utópica e efémera do mundo que perseguimos todos os dias, sem nunca a alcançar na sua plenitude. Significa que no mundo, ninguém deve esperar ser completamente satisfeito e que devemo-nos conformar com a nossa pequena estrela e que é o nosso destino, para a sanidade do nosso espírito e da nossa mente numa luta de permanentes (des)equilíbrios e rupturas.

10. E, por fim, o velho encontrado junto da fogueira e que era filho do outro homem, aparentemente, mais novo que ele, é a visão metafórica da inutilidade de alguns jovens da nossa sociedade actual que vivem do ócio e da futilidade, onde o corpo e a alma, rapidamente, envelhecem triste e precocemente.

Estas sessões iniciáticas em forma de lições de vida para os mais novos, eram feitas nos fanados e outros fóruns de ritual tradicional africano com o objectivo de prepará-los para a vida adulta de modo a poderem assumir plenamente suas responsabilidades como homens e futuros chefes de família.

Bissau, 1 de Fevereiro de 2021
In Conto tradicional fula, de autor(res) desconhecido(s)_apenas um exemplo.
Tradução de Cherno Baldé
Bissau-Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20773: Antropologia (39): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (3) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, irnãozinho, pela tua generosa partilha deste magnífico conto da tradição oral fula, e que faz parte desse "rito de passagem" que é o "fanado", ainda tão mal compreendido por todos nós...

Obrigado pelo tempo despendido em traduzi-lo para português e divulgá-lo, através do nosso blogue.

É uma joia da sabedoria guineense, e mais especificamente fula. Todos os povos, que evoluiram em sociedades camponesas, sem escrita, têm um grande património oral, imaterial, da música aos contos, dos provérbios à codificação dos "usos e costumes", que, infelizmente, está-se a perder, de modo irreversível.

O lado "predador" da gliobalização, não é apenas a destruição da biodiversidade e as alterações climáticas, é a destruição também da diversidade étnica, linguística e cultural da humanidade...

Os filhos do nosso querido Cherno ainda não capazes de ler, na língua materna, este conto... Mas muitos outros, tal comos os netos dos portugueses da diáspora, já perderam o domínio da língia dos seus pais e avós...

É um património que passa de geração em geração. E, durante séculos, apenas pela via oral... Como se costuma dizer, por cada velho que morre (, em Portugal e na Guiné-Bissau), perde-se um livro. Daí o nosso dever de memória em relação aos nossos mais velhos.

No sítio "Conta África" encontrei mais contos, da tradição oral, dos nossos países irmãos, lusófonos, incluindo a Guiné-Bissau (em crioulo, fula, mandinga, bijagó, manjaco e cassanga).

Vd. aqui http://contafrica.org/pt/

http://contafrica.org/pt/contes/origine/guinee-bissau

Tabanca Grande Luís Graça disse...

fanado
fanado | adj. | s. m.
masc. sing. part. pass. de fanar

fa·na·do
adjectivo
1. Murcho; estreito, esguio.

2. Que não tem toda a roda que devia ter.

3. [Figurado] Miserável, escasso, mesquinho; pobre, mísero; maltratado.

4. Amputado, mutilado.

5. Circuncidado.

nome masculino
6. [Guiné-Bissau] Processo de iniciação dos jovens na vida social adulta, que inclui rituais como a circuncisão ou a excisão e a transmissão de conhecimentos.


"fanado", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/fanado [consultado em 09-02-2021].

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Sobre os "ritos de passagem", vd. aqui entrada na Wikipedia:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Rito_de_passagem

Ritos de passagem são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade. Os ritos de passagem podem ter caráter social, comunitário ou religioso.

Ritos de passagem são aqueles que marcam momentos importantes na vida das pessoas. Os mais comuns são os ligados a nascimentos, mortes, casamentos e formaturas. Em nossa sociedade, os ritos ligados a nascimentos, mortes e casamentos são praticamente monopolizados pelas religiões. Já as formaturas não costumam ser, em si, religiosas, mas frequentemente têm importantes momentos religiosos. O termo foi popularizado pelo antropólogo alemão Arnold van Gennep no início do século XX. Outras teorias foram desenvolvidas por Mary Douglas e Victor Turner na década de 1960.

Valdemar Silva disse...

Como sempre, Cherno Baldé a explicar aquilo, calhando, não passava pela cabeça de milhares de soldados metropolitanos pudesse existir na filosofia de vida da gente da Guiné.
Provavelmente se alguma mulher ler este Conto, formulará em relação à explicação do ponto 6:
-Então os homens nunca eram bisbilhoteiros? Ou o interesse deles saber o que se passava era diferente do das mulheres?

Abracelos
Valdemar Queiroz