1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Agosto de 2020:
Queridos amigos,
Remexer no passado, é por todos sabido, suscita memórias, sentimentos ambivalentes entre ganhos e perdas. No fundo de uma gaveta apareceram quatro aerogramas, sabe-se lá se escaparam a muitos outros que foram para o lixo, fotografias inesperadas.
Foi um encontro benfazejo para mim, guardo uma recordação muito forte da minha sogra, por tudo o que ela fez pela família, a dedicação extrema pelas minhas filhas. Não me surpreendeu a franqueza com que eu descrevia o meu dia-a-dia, nunca escondi a ninguém o fragor da guerra, a extrema penúria, os perigos constantes. Deve ter havido gente que julgou que eu tinha ensandecido quando contava como Missirá saía das cinzas, entre abril e julho de 1969, foi um repto que me preparou para saber cuidar ou lidar com as intempéries. Gostei tanto de voltar a ler estes aerogramas que aqui vos dou notícia, e não escondo o júbilo, a despeito de muita desta gente querida ter desaparecido, guardo-os carinhosamente nas fotografias que me rodeiam, o seu papel é o de um farol que nos lembra os riscos de perder o dever de memória.
Um abraço do
Mário
Recordações da casa dos espetros
Mário Beja Santos
Vivi nesta casa em dois períodos distintos: de 8 de março de 1952 a 11 de abril de 1967, aqui fiz a escola primária, o liceu e entrei na faculdade, empreguei-me como ajudante de mecanógrafo, nesse 11 de abril de 1967 veio almoçar com a minha mãe e comigo um dileto amigo, Carlos de Sampaio, que me acompanhou ao Rossio; de 13 de maio de 1982 a 30 de dezembro de 1994, após o falecimento da minha mãe candidatei-me à casa, comprei-a mais tarde, aqui vivi com mulher e filhas até 30 de dezembro de 1994, parti então para o Bairro das Ilhas, relativamente perto do Saldanha. Nesta casa faleceram a minha avó materna, a minha mãe, a minha filha mais nova, se aqui regresso é para ajudar a minha filha a pôr uma certa ordem depois da saída inopinada para um lar, devido a graves problemas de saúde, da sua mãe. Conheço ao milímetro todo este espaço, numa primeira fase houve que ir libertando traquitana inútil, removendo lixos, identificando objetos. É numa dessas arrumações, no fundo de uma gaveta, entre dois cartões, que encontro quatro aerogramas que enviei à mãe da minha noiva e mais tarde minha sogra, Celeste Brito Camacho Robalo Revez, e duas inesperadas fotografias.
A minha sogra foi filha, mulher e mãe exemplar. Tratou-me sempre com a maior das dedicações e não tem preço o carinho e o desvelo com que tratou as minhas filhas. Daí a grande satisfação que tenho em partilhar convosco as notícias que lhe enviei, houve muitíssimo mais do que quatro aerogramas, estou absolutamente seguro, oxalá que em próxima “escavação” encontre mais, garanto que então darei notícia.
O primeiro aerograma de 13 de agosto de 1969. Peço desculpa à minha sogra por uma estranhíssima troca de correio. Enviei para Moçambique, para um querido amigo, José Braga Chaves, a quem dei instrução em Ponta Delgada, uma carta em que o trato por Sr. Dona Celeste, não sei se este meu antigo instruendo aceitou que eu já estava avariado do miolo. E a Sr. Dona Celeste recebeu uma carta dirigida ao José Braga Chaves… Toda a minha correspondência acaba por ser um relato fiel do meu quotidiano, falo calmamente em insignificâncias, em problemas de abastecimento, findara há pouco o período de reconstrução de Missirá, e com orgulho vou repertoriando as casas reconstruidas, os abrigos levantados, agradecido às muitas ajudas recebidas, e assim me despeço: “No meio de algumas agruras nada se compara com esta vida que vai crescendo e esta bênção em receber a misericórdia de Deus”.
O segundo aerograma data de 29 de agosto, justifico sempre o envio de aerogramas natalícios à falta de outro papel. “Missirá está há dois dias debaixo de chuva, nem uma nesga de sol, são rios de lama e largos charcos de água barrenta, soldados e civis adoecem. Entretanto os melhoramentos trouxeram-me muita alegria, onde havia um tosco barracão há agora uma sala de convívio, as paredes ainda frescas da tinta de água, há cadeiras confortáveis, o café é servido em chávenas decentes, os móveis faiscam de verniz e temos nas prateleiras uma loiça nova que veio substituir os embaciados pratos de alumínio. As aulas de instrução primária estão a dar os seus êxitos. Vou a caminho de 18 meses de Guiné e são estas obras de paz e esta dedicação à melhoria das condições de vida que me tonifica a alma”.
O terceiro aerograma data de 28 de setembro, é um dia de calma em Missirá, houvera um período contínuo de dez dias de patrulhamentos a Mato de Cão, dificílimas colunas de abastecimento, nas condições mais precárias, sem poder utilizar viaturas em picadas transformadas em lago, para que não subsistisse qualquer dúvida de que a vida era difícil para todos, eu punha uma rodilha na cabeça e segurava com a mão esquerda uma caixa de esparguete. Registo em tom muito confessional que os meus soldados protestam pela vida violenta que levam no Cuor, sonham em ser transferidos para Bambadinca, mal sabem a vida agitada que nos espera a partir de novembro de 1969. Desejo vivamente as melhoras da minha sogra, soubera que estava a viver alguns problemas de saúde, procuro amenizar o ambiente, falo-lhe das minhas leituras, novamente das aulas dos miúdos e dos graúdos e que o mau tempo vai passar em breve, e com esta alegoria me despeço.
O quarto e último aerograma, datado de 17 de outubro, relata um dos episódios mais dramáticos da minha vida, a mina anticarro que explodiu em Canturé, na véspera, não escondo que tenho o coração enlutado, resumo a tragédia à explosão, aos tiros da emboscada, aos destroços fumegantes, ao ferido muito grave e aos sete feridos ligeiros, entreguei o comando a Mamadu Djau e retirei com as crianças para Finete, parecia-me que tinha perdido o olho esquerdo, não via rigorosamente nada, em Finete lavei o rosto e descobri que havia somente queimaduras e poeiras. Omito que coxeio penosamente, o joelho direito inchou, os óculos desapareceram, termino dizendo que a vida vai continuar e logo que acabar este aerograma vou escrever uma carta arrancada a ferros para um lugar do concelho de Ourique, informando um pai que perdeu um filho em combate.
Em resumo, a grata surpresa de rever a minha escrita para a minha sogra, de encontrar uma fotografia em que andei mascarado de guarda-redes num jogo entre oficiais e sargentos em Bambadinca e a fotografia que tirei com a minha noiva em julho de 1968, dias antes de embarcar no Uíge.
São fragmentos que valem por si, não adianta estar a expor mais razões diante de um achado que só pode ser precioso para mim.
Junto igualmente uma fotografia tirada no Bairro das Ilhas, com a minha sogra e as minhas filhas. A minha sogra insistiu que queria trazer para o jantar um lombo de porco e um bolo de gila e amêndoa, natural de Aljustrel era uma cozinheira emérita, graças a ela aprendi a cozinhar quase tudo com coentros, a gostar de gaspacho, pezinhos de coentrada e sopa de toucinho.
Deixo perguntas a mim próprio: a letra, por exemplo, como é que ela se vai manter tão certinha em tempos tão atribulados, quando o tempo escasseava, escrevia estes aerogramas de jato, havia a noiva, toda a família, os queridos amigos, uma hora de escrita era tempo a mais, logo a seguir ao jantar, com o furriel Pires a bater à porta para tratarmos do expediente, e podia muito bem acontecer que aí pela meia-noite se partia para Mato de Cão, bastava que a tabela das marés previsse maré cheia ao alvorecer. Foi assim a minha vida e dou-me muito bem com estes sinais do destino, estes aerogramas imprevistos que me recordam que foi ali, no Cuor, que se forjou o homem que hoje partilha convosco a alegria de viver.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 12 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21638: Os nossos seres, saberes e lazeres (428): Em Belmonte, na companhia de Vitorino Nemésio, e não esquecendo Pedro Álvares Cabral (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário