quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21681: Historiografia da presença portuguesa em África (244): "Fernão Gomes e o monopólio do resgate da Guiné", no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa de Maio e Junho de 1938 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
No tempo em que se iniciou a presença portuguesa na costa ocidental africana, ganhou acuidade a consolidação de redes comerciais. Aquilo que se chama Senegâmbia, teve uma presença sui generis, os lançados ou tangomaus, os entrepostos onde os mercadores, nomeadamente da ilha de Santiago, tinham um papel determinante. O contrato de arrendamento que D. Afonso V estabeleceu com Fernão Gomes trouxe benefícios recíprocos, avançou-se muito a partir da Serra Leoa, Fernão Gomes enriqueceu e reverteu muitos milhares de reais nos cofres do rei, bem como deu bastante dinheiro ao Príncipe D. João, que tinha a feitoria de Arguim.
A literatura de viagens exprime claramente a natureza do comércio que se fazia com os diferentes reinos desta costa africana, basta ler Cadamosto, Lemos Coelho, André Donelha, entre outros. Estes reinos africanos tinham uma prática multisecular de vender escravos e por isso vamos encontrando nestes relatos a descrição do valor de um cavalo por um número de escravos (podia ir de 7 a 14).
As explorações de Fernão Gomes foram utilíssimas nos planos de D. João II, avançava-se paulatinamente pela costa de África, está em marcha o plano e chegar às Índias.

Um abraço do
Mário


Fernão Gomes e o monopólio do resgate da Guiné

Mário Beja Santos

No Boletim da Sociedade de Geografia de maio e junho de 1938, o insigne historiador comandante A. Fontoura da Costa publicou um curioso artigo sobre Fernão Gomes e o papel que desempenhou nas viagens pela costa africana. A Guiné, ou rios da Guiné de Cabo Verde, ou Senegâmbia, entrou em meados do século XV numa teia de rotas comerciais que obedeciam, no caso português, a uma política comercial de monopólio régio. A política afonsina, com expedições a Marrocos e guerras com Castela, vai exaurindo os cofres públicos, daí ter-se adotado contratos de exploração da costa africana, foi o que aconteceu com o contrato celebrado com Fernão Gomes. Enquanto a colonização, sempre ténue e muitas vezes fora da alçada da Coroa, fica entregue aos lançados, a ilha de Santiago passa a ter um papel preponderante já que os seus navios e mercadorias navegam desde o Cabo Verde até à Serra Leoa. Estes comerciantes tinham poderes limitados: apenas lhes era permitido movimentar os produtos do arquipélago, algodão e cavalos. Os moradores da Ilha do Fogo ocupavam-se quase exclusivamente da produção de algodão e na tecelagem de roupas, produtos transportados para a Ilha de Santiago e daí à costa da Guiné, eram utilizados para o resgate de escravos.

Observe-se que os lançados também se ocupavam do comércio de troca entre mercadorias europeias e produtos africanos. Nessas trocas, os europeus compravam couros, marfim, cera, goma, âmbar, anil, ébano, escravos e algum ouro. Está documentada a presença destes lançados, inclusive fora do território da atual Guiné-Bissau, estavam presentes nas regiões do Senegal e do rio Gâmbia.

Os comerciantes estavam proibidos de ir à feitoria de Arguim. Em 12 de junho de 1466, D. Afonso V concedera aos moradores de Santiago o privilégio de comerciarem em toda a costa da Guiné, com exceção de Arguim. As mercadorias que trouxessem, após o pagamento dos impostos régios, poderiam ser vendidas a quem os comerciantes entendessem. Esta carta de privilégio visava, em grande medida, incrementar a colonização do arquipélago. No entanto, embora o povoamento de Santiago fosse de reconhecida necessidade, a exploração da costa, para além dos limites até então atingidos, não era menos. Em 1469, D. Afonso V arrendou a Fernão Gomes, por 200 mil reais por ano, os tratos e resgates da Guiné, com a condição de que em cada um destes cinco anos fosse obrigado a descobrir cem léguas para Sul, mas “com limitação que não resgatasse em a terra firme defronte das ilhas de Cabo Verde por ficar para os moradores delas” (João de Barros, Ásia, 1, parte II, capítulo II). Será um contrato que irá provocar atritos mas que trará resultados práticos na exploração da costa africana. É neste contexto que se deve ler o artigo de Fontoura da Costa:
“Fernão Gomes, poderoso negociante de Lisboa, foi um dos maiores aventureiros quatrocentistas, desses que sempre aparecem quando estão vazios os cofres de Estado – então confundidos com os do rei. O arrendamento a Fernão Gomes constituiu um dos mais lucrativos monopólios que a nossa História regista.
1 – O comércio da Guiné: consistia ele principalmente em ouro, marfim, escravos, gatos de algália (almíscar), malagueta e quaisquer especiarias;
2 – Contrato de 1469: não foi ainda encontrada a carta régia do contrato com Fernão Gomes, cujas principais cláusulas são citadas por alguns cronistas, entre os quais João de Barros. O clausulado preceituava a dita rende de 200 mil reais, em cada um dos cinco anos de vigência do contrato, ficava excluído o comércio na costa da Guiné, fronteira às ilhas de Cabo Verde e no Castelo de Arguim, o comércio de marfim ficava reservado para o rei e havia a obrigação do arrendatário em mandar descobrir anualmente cem léguas de costa, desde a Serra Leoa”
.

Examinando o contrato, Fontoura da Costa observa que os economistas divergem muito quanto à equivalência do real afonsino (1469) em moeda atual, não é possível encontrar correspondência em escudos. O comércio no castelo de Arguim pertencia ao príncipe D. João, o qual depois o cedeu a Fernão Lopes por cem mil reais anuais. A fortaleza de Arguim, na ilha do mesmo nome, começada a edificar por D. Henrique, só foi concluída depois da morte do infante. Quanto ao descobrimento anual de cem léguas da costa desde a Serra Leoa, o historiador recorda que os Descobrimentos, com D. Henrique, haviam terminado na Serra Leoa em viagem de Pêro de Sintra. Mas este navegador, já com D. Afonso V, ainda chegara até pouco além do Cabo Mesurado, a cerca de 44 léguas da Serra Leoa. Marcando esta cláusula o início dos novos descobrimentos na Serra Leoa, parece querer indicar que ainda era pouco conhecida a costa que Pêro de Sintra descobrira. E escreve:
“Fernão Gomes escolheu os melhores mareantes de então para o cumprimento desta importante e perigosa cláusula, a qual permitiria estender o conhecimento de toda a costa até ao Cabo de Catarina, indo até às ilhas do Golfo de Biafra. Foi Soeiro da Costa o primeiro navegador que logo em 1470, por mandado de Fernão Gomes, encetou os novos descobrimentos; foi ele até ao Cabo das Três Pontas, descobrindo portanto toda a Costa da Malagueta, que vai desde o Cabo Mesurado até ao Cabo das Palmas. O seu nome ficou ligado ao rio do Soeiro, a cuja barra os ingleses ainda chamam Soeiro bar. Soeiro da Costa deve ter regressado ao reino ainda em 1470, trazendo no seu navio grande porção de malagueta”.

Temos depois o aditamento ao contrato de 1469, por ele ficou também Fernão Gomes com o monopólio do resgate da malagueta, pagando mais cem mil reais anuais de renda. E operaram-se novos descobrimentos, até 1473. João de Santarém e Pêro Escobar, com os pilotos Martins Esteves e o afamado Álvaro Esteves, de 1471 a 1472, vão até ao Cabo Formoso, descobrindo também as ilhas de São Tomé, de Santo Antão (depois Príncipe) e do Ano Bom. A seguir, em 1472-1473, Fernando Pó começou os descobrimentos para além do Cabo Formoso.

O artigo de Fontoura da Costa publica a carta de prorrogação do contrato com Fernão Gomes do arrendamento do resgate da Guiné, refere ainda a continuação dos Descobrimentos até à descoberta do rio do Gabão, 1473-1474.

Este comércio da Guiné era extremamente próspero, o que levou D. Afonso V a conceder a Fernão Gomes honras de nobreza de novas armas. O fim dos Descobrimentos à responsabilidade de Fernão Gomes datam de 1475, chegara-se a mais de 600 léguas da Serra Leoa. E diz Fontoura da Costa que estando hoje esquecido o nome de Fernão Gomes, os descobridores ao seu serviço têm os seus nomes bem lembrados:
Soeiro da Costa, Fernando Pó, Loupo Gonçalves, João de Santarém, Escobar. Fernão Gomes era riquíssimo, nobre, considerado com respeito pela sociedade lisboeta, conselheiro régio nomeado em 1478. E termina o autor dizendo que “foi ele um dos raros a quem honras com proveito não fazem mal ao peito”
Carta da Ilha de Santiago, da autoria de Joannes van Keulen, datada de 1635
“A Mina", detalhe de mapa do século XVI
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21651: Historiografia da presença portuguesa em África (243): Revista Estudos Ultramarinos, 1959 - n.º 2 - Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (2) (Mário Beja Santos)

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