"Neste mesmo dia, em 1959, era aprovada a Declaração Universal dos Direitos da Criança e, em 1989, a Convenção dos Direitos da Criança. Mas temos ainda um longo caminho a percorrer para que todas as meninas e meninos possam efetivamente ver os seus direitos reconhecidos, cabendo a cada um de nós um papel decisivo nesse processo. Para que esta seja realmente uma data de celebração para todas as Crianças."
(Com a devida vénia, página do Facebook da Afectos com Letras, ONGD., com sede em Pombal)
1. Com a devida véniaa autora, Joana Benzinho, e ao editor, Bird Magazine:
Um dia conheci uma menina numa instituição da Guiné-Bissau com um ar demasiado frágil para os seus 14 anos e com quem me sentei a conversar. Contou-me que um dia, há alguns meses atrás, tinha fugido da aldeia onde vivia com os pais e irmãos para não acabar na cama e na vida de um homem muito mais velho.
Os seus pais tinham acertado o dote e o casamento à revelia da sua menoridade e da sua vontade e era questão de horas ou dias acontecer aquela violação consentida e para a vida, por parte de quem a devia proteger. A menina encheu-se de toda a coragem que nunca pensou concentrar na sua breve juventude e saiu de casa sem nada, quando a noite caiu e todos dormiam.
Talvez não tenha tido noção da amplitude do seu gesto naquele instante mas ele veio mudar toda a sua vida de uma forma dura e definitiva. A partir daquele momento a menina deixou de ter família, de ter aldeia, de ter amigos, de ter escola, de ter amparo. A corajosa decisão que tomou fez os pais, familiares e vizinhos cortar definitivamente relações com ela. É sempre assim.
Aos 14 anos partiu para o mundo sozinha. Procurou ajuda ao cabo de muitos quilómetros a errar pela noite escura e encontrou-a, mesmo que de forma temporária. Quando a conheci, a precariedade da sua situação ainda se mantinha e o medo de ser procurada fazia-a tremer a cada chegada de um carro ou ao cruzar um rosto desconhecido.
Estas meninas feitas mulheres pela crueldade da família ou casam ou ficam sozinhas no mundo. Não há meio termo. E quando ficam sozinhas nem sempre conseguem encontrar a ajuda adequada ao drama que estão a viver. Umas acabam violentadas, outras violadas, outras enganadas por quem é suposto protegê-las, algumas na prostituição. Outras fogem para o colo de quem as devia defender dos casamentos forçados e onde acabam precisamente pela sua mão.
São meninas a quem foi roubada de repente a vida na sua plenitude, quando este conceito por si já é tão limitado na Guiné-Bissau. Algumas infelizmente não aguentam a pressão da fuga e voltam para os braços dos carrascos que as agridem e as casam de imediato.
São estas meninas feitas mulheres que vivem no anonimato na Guiné-Bissau mas que engrossam estatísticas dos casamentos forçados e precisam de quem as proteja. De quem as acolha e lhes proporcione apoio emocional, depois de se verem despojadas de qualquer afecto filial e traídas pelas pessoas em quem mais confiavam. De quem lhes dê apoio pedagógico para que não engrossem os números da ileteracia da Guiné-Bissau. De quem lhe dê ferramentas formativas para abraçarem a vida de forma activa e com independência financeira quando atingirem a maioridade.
Como esta menina com quem conversei, há muitas outras na Guiné-Bissau e pelo mundo fora. E com a pandemia, os estados de emergência e os confinamentos os casos tornaram-se aparentemente mais numerosos, mais incógnitos e com consequências mais graves pois muitas meninas não conseguem fugir deste drama que lhes vai cortar a infância e destruir a vida.
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CRIANÇAS TORNADAS MULHERES À FORÇA
19Out 2020
por Joana Benzinho (**)
Um dia conheci uma menina numa instituição da Guiné-Bissau com um ar demasiado frágil para os seus 14 anos e com quem me sentei a conversar. Contou-me que um dia, há alguns meses atrás, tinha fugido da aldeia onde vivia com os pais e irmãos para não acabar na cama e na vida de um homem muito mais velho.
Os seus pais tinham acertado o dote e o casamento à revelia da sua menoridade e da sua vontade e era questão de horas ou dias acontecer aquela violação consentida e para a vida, por parte de quem a devia proteger. A menina encheu-se de toda a coragem que nunca pensou concentrar na sua breve juventude e saiu de casa sem nada, quando a noite caiu e todos dormiam.
Talvez não tenha tido noção da amplitude do seu gesto naquele instante mas ele veio mudar toda a sua vida de uma forma dura e definitiva. A partir daquele momento a menina deixou de ter família, de ter aldeia, de ter amigos, de ter escola, de ter amparo. A corajosa decisão que tomou fez os pais, familiares e vizinhos cortar definitivamente relações com ela. É sempre assim.
Aos 14 anos partiu para o mundo sozinha. Procurou ajuda ao cabo de muitos quilómetros a errar pela noite escura e encontrou-a, mesmo que de forma temporária. Quando a conheci, a precariedade da sua situação ainda se mantinha e o medo de ser procurada fazia-a tremer a cada chegada de um carro ou ao cruzar um rosto desconhecido.
Estas meninas feitas mulheres pela crueldade da família ou casam ou ficam sozinhas no mundo. Não há meio termo. E quando ficam sozinhas nem sempre conseguem encontrar a ajuda adequada ao drama que estão a viver. Umas acabam violentadas, outras violadas, outras enganadas por quem é suposto protegê-las, algumas na prostituição. Outras fogem para o colo de quem as devia defender dos casamentos forçados e onde acabam precisamente pela sua mão.
São meninas a quem foi roubada de repente a vida na sua plenitude, quando este conceito por si já é tão limitado na Guiné-Bissau. Algumas infelizmente não aguentam a pressão da fuga e voltam para os braços dos carrascos que as agridem e as casam de imediato.
São estas meninas feitas mulheres que vivem no anonimato na Guiné-Bissau mas que engrossam estatísticas dos casamentos forçados e precisam de quem as proteja. De quem as acolha e lhes proporcione apoio emocional, depois de se verem despojadas de qualquer afecto filial e traídas pelas pessoas em quem mais confiavam. De quem lhes dê apoio pedagógico para que não engrossem os números da ileteracia da Guiné-Bissau. De quem lhe dê ferramentas formativas para abraçarem a vida de forma activa e com independência financeira quando atingirem a maioridade.
Como esta menina com quem conversei, há muitas outras na Guiné-Bissau e pelo mundo fora. E com a pandemia, os estados de emergência e os confinamentos os casos tornaram-se aparentemente mais numerosos, mais incógnitos e com consequências mais graves pois muitas meninas não conseguem fugir deste drama que lhes vai cortar a infância e destruir a vida.
Nunca esquecerei o seu rosto e a fragilidade da figura que encobriam a força hercúlea daquela menina criança e penso ainda hoje, ao recordá-la, que me ensinou que coragem não vive de aparências nem de estádios de maturidade. Aprendi com ela que a coragem ali foi um grito de desespero, um Enorme ato de amor à vida que neste caso não aceitou que lhe violassem o direito à infância e à sua integridade fisica e psicológica.
Uma menina frágil transformada à pressa pela família numa mulher fortaleza mas que no fundo ainda precisa da ajuda, ainda precisa de colo.
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(*) A BIRD Magazine é uma revista online nascida em 2013. A BIRD Magazine é um meio independente, plural e equilibrado, orientado pela ética e deontologia jornalística. A BIRD Magazine procura a verdade, o rigor, a isenção e promove um espaço público de debate através dos seus cronistas residentes.
Nota do editor:
Último poste da série > 4 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21222: Recortes de imprensa (112): entrevista ao antropólogo Vasco Gil Calado sobre droga e álcool na guerra colonial, "Público", 2 de agosto de 2020 (Carlos Pinheiro)
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(*) A BIRD Magazine é uma revista online nascida em 2013. A BIRD Magazine é um meio independente, plural e equilibrado, orientado pela ética e deontologia jornalística. A BIRD Magazine procura a verdade, o rigor, a isenção e promove um espaço público de debate através dos seus cronistas residentes.
(**) Joana Benzinho > Assessora Parlamentar no Parlamento Europeu desde 1999 | Fundadora e presidente da ONGD Afectos com Letras, criada em 2009, com sede em Pombal | Tem página no Facebook | É uma grande amiga da Guiné-Bissau e das suas gentes] Tem 7 referências no nosso blogue.
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Nota do editor:
Último poste da série > 4 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21222: Recortes de imprensa (112): entrevista ao antropólogo Vasco Gil Calado sobre droga e álcool na guerra colonial, "Público", 2 de agosto de 2020 (Carlos Pinheiro)
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