1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2018:
Queridos amigos,
É tempo de reconhecer o labor investigativo de Philip Havik nas coisas da Guiné. Este ensaio que o investigador publicou na Revista Internacional de Estudos Africanos fazia parte de um estudo de maior amplitude abrangendo a atividade política na Guiné tanto no período pré-colonial como no período colonial e na fase da Independência. Desconheço, por hora, se tal publicação já existe. A importância do ensaio é um modo singular como o investigador aborda e articula espaços sociais e movimentos políticos no período colonial e pós-colonial, entrelaça uma gama de diversidades que vão desde a religião às atitudes culturais de certas etnias, as mudanças económicas operadas pelas novas culturas e a confrontação entre as populações nativas e os representantes das empresas. E assim chegamos à génese dos nacionalismos, às mudanças que nessa fase o PAIGC prometia operar e tudo o mais que veio a acontecer até à sua influência política empalidecer, uma longa história que é de conhecimento obrigatório para quem quer saber porque é que a Guiné continua a viver em impasse.
Um abraço do
Mário
Mundasson i Kambansa:
Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994) (1)
Beja Santos
Mundasson, termo crioulo para mudança ou transformação; kambansa, termo crioulo para travessia ou passagem.
Philip Havik |
O autor recorda que a Guiné com as suas fronteiras traçadas na consequência da Conferência de Berlim vivia mergulhada numa guerra renhida pelo controlo dos “chãos”, espaços geográficos e sociais geridos por linhagens, intervinham nesses episódios bélicos sociedades nativas que se opunham a tropas auxiliares africanas e portuguesas, todos os pretextos eram bons para procurar sacudir o jogo colonial, tanto podiam ser o imposto de palhota como a política comercial da administração portuguesa. Philip Havik considera que no processo de criação de movimentos de caráter político se podem identificar três fases, o período entre 1910-1915, o período de 1955-1965 e de 1986 até às primeiras eleições multipartidárias de 1994.
A ocupação militar saldou-se na perda de controlo por parte dos povos do Litoral sobre os seus próprios “chãos” e a penetração progressiva do Litoral “animista” pelo Leste islamizado. Grupos crioulófonos oriundos dos antigos entrepostos como Cacheu ou Geba foram abrindo espaço em novos centros comerciais no Interior, assim se deu a abertura dos “chãos” e o crioulo tornou-se na língua franca. Os últimos 50 anos foram marcados pela luta anticolonial e o estabelecimento de um regime independente.
Uma lufada de ar fresco foi trazida pela constituição da Liga Guineense (1911), os seus membros iriam assumir um papel de mediadores em diferentes conflitos económicos e sociais no seio do pequeno e restrito meio administrativo e mercantil de Bissau e Bolama. Os estatutos eram claros: fazer propaganda da instrução, estabelecer escolas e empenhar-se no progresso e desenvolvimento da Guiné professando o ideal republicano. À sua testa, a Liga era dirigida por comerciantes das pequenas comunidades crioulófonas, em muitos casos com laços de parentesco em Cabo Verde, tinham também ligações aos deportados políticos, havia grumetes contratados por comerciantes e casas de comércio como intérpretes, pilotos e caixeiros. Cedo começaram a reivindicar a redução de impostos, a nacionalização do comércio para restringir o acesso de comerciantes estrangeiros, a denunciar casos de corrupção no aparelho administrativo e os excessos no plano militar. A Liga foi-se progressivamente politizando, denunciando o papel dos mercenários recrutados por Teixeira Pinto e as suas prepotências nas campanhas militares. Quando foi proibida em 1915 e a sua direção encarcerada, a Liga era uma organização autónoma reunindo pela primeira vez degredados políticos, comerciantes e diferentes estratos profissionais. Falhara a tentativa de reconciliação do projeto português de “nacionalização” da Guiné com o ideário republicano e liberal. O investigador observa que os grupos sociais ditos “civilizados” constituíram um nó de alianças entre comerciantes e proprietários (ponteiros) e trabalhadores dos portos e funcionários públicos. A repressão destes movimentos de contestação criou uma diáspora dos seus associados. Observa igualmente a importância do grande fluxo de imigrantes cabo-verdianos na Guiné, portugueses perante a lei, tal fluxo teve implicações para a vida política e associativa do território.
Os movimentos independentistas irão surgir em finais nos anos 1940, registam-se diferenças entre caminhos nacionalistas guineenses e posições pan-africanas. O grupo de civilizados tinha-se ampliado, recorde-se que era pelo comércio nos chamados centros comerciais mas sobretudo nas lojas de mato que se estabeleciam os contatos entre a população “civilizada” e a indígena, num contexto completamente distinto à situação vivida no tempo da Liga Guineense. Foram razões de ordem económica que ditaram mudanças, primeiro a mancarra e depois o arroz. As populações sentiram o peso desta política encetada a seguir à crise no mercado internacional das oleaginosas. As populações nativas não ficavam associadas às empresas constituídas pelos “civilizados”, exploravam as suas próprias culturas, negociavam depois os preços com os intermediários das grandes e pequenas casas, era uma economia de troca direta e sobressaiam práticas abusivas dos cipaios, agentes omnipotentes e despóticos. E cedo se desencadearam conflitos entre comerciantes e a população, a extorsão aos indígenas iria tornar-se num problema que encontrou por vezes políticos de envergadura pela frente, caso de Sarmento Rodrigues. Os movimentos independentistas atraíram sobretudo operários, artesãos e empregados do comércio, na sua maioria vindos de Bissau e de Bolama. Em 1948 surgiu o Partido Socialista da Guiné. A formação de organizações políticas de cariz nacionalista acontece em 1955 com a fundação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, por Amílcar Cabral que no ano seguinte irá apoiar a criação do PAI – Partido Africano da Independência, posteriormente PAIGC, em 1960. Este surto independentista precisa de ser situado no contexto do nacionalismo pan-africano, fortemente inspirado por Kwame N’Krumah, as coligações de forças tiveram vida precária. A FLING – Frente para a Libertação e Independência da Guiné Portuguesa é criada em 1962 por grupos oposicionistas baseados no Senegal, integrava cinco partidos. E diz o investigador que neste ambiente extremamente divisionista reivindicava-se a herança política da Liga Guineense. Um dos maiores pontos de divergência entre movimentos – além da questão da autonomia versus independência total e a melhor forma de lá chegar – revelou-se a questão da ligação entre a luta anticolonial na Guiné e nas ilhas de Cabo Verde. Esta associação estratégica dos destinos da Guiné e Cabo Verde, protagonizada pelo PAIGC, provocaria várias cisões nos vários movimentos e coligações, tudo irá desaguar na secessão do PAICV – Partido Africano da Independência de Cabo Verde a seguir ao afastamento do primeiro presidente da Guiné independente através de um golpe de Estado.
(Continua)
Kumba Yala
____________Nota do editor
Último poste da série de 21 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21670: Notas de leitura (1330): A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem (Mário Beja Santos)
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