Com votos de saúde, e de boa férias, tomo a liberdade de remeter mais um pequeno texto, que poderá ser inserido no Blogue.
Aproveito também a oportunidade para mandar ao Dr. Adão Cruz, médico do Batalhão 1887, a que pertenci, UM GRANDE ABRAÇO.
Domingos Gonçalves
MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546
O padre de Guidaje (imã)
O sacerdote da religião muçulmana é, talvez, a pessoa mais importante e mais influente de Guidage. É um homem virtuoso e bom. Para além da actividade religiosa propriamente dita, a que se dedica com muita devoção, ele é também o professor de árabe, que todos os dias vai ensinando à criançada os segredos da língua em que foi escrito o Sagrado Alcorão.
Como seria bom que existisse aqui, também, uma escola e um professor, onde estas crianças pudessem aprender, em simultâneo com o árabe, a língua portuguesa! Mas a nossa administração, infelizmente, nunca se preocupou com isso.
Mas o padre, dá gosto vê-lo, junto da sua casa humilde, rodeado de crianças que seguram nas mãos pequenas tabuinhas, onde vão escrevendo, com uma tinta preta, o alfabeto árabe, ou outros exercícios que, pacientemente, lhes vai ensinando.
Sob a capa de um homem simples, que de facto é, esconde-se uma personagem culta, conhecedora da história do seu povo. Às vezes falo com ele, sempre com muita seriedade, por forma a que das diferenças entre aquilo em que os dois acreditamos, nada surja que o possa magoar.
Recentemente ofereceu-se para me ensinar a língua árabe. Estive tentado a iniciar as lições. Todavia, porque não irei ficar por aqui o tempo suficiente para assimilar seja o que for, preferi não dar início ao estudo. Mas fica-me uma certa pena.
Em conversa recente dizia-me:
- Hoje são os portugueses que estão na Guiné e mandam nesta terra e neste povo. Mas não foi sempre assim. Tempos houve, já muito longínquos, em que foi o meu povo que mandou em Lisboa(1). Foi destas terras que partiu um conquistador poderoso que dominou pela força das armas todas as terras africanas a norte da Guiné, e chegou mesmo a mandar em Lisboa. Foi uma dominação quase que efémera, mas que aconteceu.
Ainda há pouco tempo fui convidado para ser o “padrinho” de uma menina recém nascida. E ele lá estava na cerimónia.
A dado momento, enquanto o sangue de uma galinha decepada jorrava para o chão, perguntaram-me o nome que dava à criança. E eu respondi:
- Quero que se chame Fátima. É um nome muito bonito.
E ele, o padre, respondeu-me:
- Sim! É um nome muito bonito! “Alfero” sabe. É o nome da filha do profeta. Trata-se do nome de uma grande mulher que todos veneramos e por quem temos muito respeito.
E acrescentou:
- O “Alfero”, ao escolher o nome já sabia que o povo ia gostar muito. E a menina, quando crescer, vai sentir-se orgulhosa do nome que o “alfero” lhe deu.
Em conversa recente lamentava-se:
- Quando a guerra começou a tropa dizia-nos que ao fim de três ou quatro anos tudo estaria terminado. Mas isso ainda não aconteceu. Os anos foram-se passando, e a guerra, em vez e terminar, tem continuado cada vez mais implacável e dura. E a paz não se vislumbra ainda no horizonte.
Com uma certa tristeza perguntava-me:
- “Alfero”... Esta guerra quanto tempo mais irá ainda durar? Este povo, quando voltará a ter paz? Todo este sofrimento a que o povo está sujeito, por quanto tempo ainda se prolongará?
Com alguma dificuldade respondi-lhe que esta guerra ainda vai durar muitos anos e que ninguém poderá vaticinar-lhe o fim.
Ele entende que nós, os que estamos aqui, não temos nas mãos o poder que permita decidir seja o que for nesta matéria, assim como ele, e o resto do povo, que também não têm voz activa em nada que respeite à definição do futuro desta terra e desta gente.
Ele entende, e bem, que o futuro de muitos é decidido pelo capricho de uns poucos, que indevidamente assumem e exercem um poder que ninguém lhes confiou. Quer nós, quer os turras, dizemos que é em nome do povo, e para bem do povo, que esta guerra se faz. Mas, ninguém perguntou ao povo o que de facto pretende, que futuro deseja ter. Todos pretendem falar em nome do povo. Todos pretendem actuar e fazer a guerra em nome desse mesmo povo. Todos mobilizam os filhos do povo para a guerra, colocando guinéus contra guinéus.
E o povo, esse, termina por não ter nada daquilo que precisa, destruindo-se mesmo ao lutar de um e do outro lados.
Nota:
(1) - Referia-se, penso eu, às invasões muçulmanas, dos almorávidas, provenientes do Norte de África
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15648: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil) (13): Dias 13 e 14 de Dezembro de 1967
1 comentário:
Camarada Domingos Gonçalves:
Gostei muito do teu imã e do diálogo que estabeleceste com ele. É uma história suave , fraterna, humana, em Guidage, onde a guerra se fazia sentir com mais violência.
Gostei de ouvir falar dos Almorávidas que eu não me lembrava ou desconhecia que tinham partido do Norte de àfrica, quando invadiram o sul da Peninsula Ibérica.
Um abraço. Francisco Baptista
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