sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16383: Notas de leitura (869): "Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Quando surgiram "Memória de Elefante" e "Os Cus de Judas" houve a clara perceção de que se tratava de uma nova arremetida literária. Primeiro, a autobiografia cáustica, mas também poética, os sofrimentos pelo amor perdido, a crítica acerada ao pindérico do funcionamento da instituição psiquiátrica: "A sala de consultas compunha-se de um armário em ruína roubado ao sótão de um ferro-velho desiludido, de dois ou três maples precários com o forro a surgir dos rasgões dos assentos com cabelos por buracos de boina, de uma marquesa contemporânea da época heróica e tísica do Dr. Sousa Martins".
É no seu romance de estreia que Lobo Antunes convoca recordações da sua vivência angolana e testemunha com irrecusável frontalidade o que pensa sobre guerra que travámos em África.

Um abraço do
Mário


"Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes

Beja Santos

“Memória de Elefante” é o primeiro romance de António Lobo Antunes, obra marcadamente autobiográfica, temos aqui o olhar do psiquiatra pelos seus doentes, pela instituição onde trabalha, acompanhamos o seu sofrimento no processo da sua separação conjugal. Obra por vezes dilacerante, acompanhamos uma quase via-sacra de quem anda ao abandono à procura de pistas para o futuro, e depois de muitas ínvias incursões e deambulações culminará num processo da redescoberta, numa autêntica profissão de fé, assim: “Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas”.

Será na obra seguinte “Os Cus de Judas”, também publicado no final da década de 1970, que Lobo Antunes revelará, com absoluta crueza, e com aspetos pícaros e burlescos, a sua experiência como médico em Angola. A seu tempo, procuraremos glosar o fundamental deste romance, agora é só para destacar as referências que ele faz à guerra em “Memória de Elefante”.

Tudo começa com uma conversa entre colegas, um médico pergunta-lhe se ele se vê a comer à mesa com um carpinteiro, ele responde: “Porque não?”, o que desaustina o outro, que o apoda de anarquista, de marginal, de alguém que aprova a entrega do Ultramar aos pretos. Segue-se uma tremenda catilinária de Lobo Antunes:  
“Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de 50 anos da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávias espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as rodas da camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão, do desespero? Com sempre que se recordava de Angola um roldão de lembranças em desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas: o nascimento da filha mais velha silabado pela rádio para o destacamento onde se achava, primeira maçãzinha de oiro do seu esperma, longas vigílias na enfermaria improvisada debruçado para a agonia dos feridos, saíra exausto a porta deixando o furriel acabar de coser os tecidos e encontrar cá fora uma repentina amplidão de estrelas desconhecidas, com a sua voz a repetir-lhe dentro – Este não é o meu país, este não é o meu país, este não é o meu país, a chegada às quartas-feiras do avião do correio e da comida fresca, a subtil e infinitamente sábia paciência dos luchazes, o suor do paludismo a vestir os rins de cintas de humidade pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir comestível na almofada (…) durante vinte sete meses morei na angústia do arame-farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulher a quase morrer do falciparum, assistir ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha na Malanje dos diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no topo pelos tufos de palmeiras dos túmulos dos reis Gingas, parti e regressei com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de África?”.

E o romance segue o seu curso, Angola agora está longe, a memória deambula pela infância, mas a vivência angolana, o profundo afeto reacende-se, fulminante:
“Como em África, pensou ele, exatamente como em África, aguardando a chegada miraculosa do crepúsculo do jango da Marimba, enquanto as nuvens escureciam o Cambo e a Baixa do Cassanje se povoava do eco dos trovões. A chegada do crepúsculo e a do correio que a coluna trazia, as tuas compridas cartas húmidas de amor. Tu doente em Luanda, a miúda longe de ambos, e o soldado que se suicidou em Mangando, deitou-se na camarata, encostou a arma ao queixo, disse Boa-noite e havia pedações de dentes e de osso cravados no zinco do teto, manchas de sangue, carne, cartilagens, a metade inferior da cara transformada num buraco horrível, agonizou quatro horas em sobressaltos de rã, estendido na marquesa da enfermaria, o cabo segurava o petromax que lançava nas paredes grandes sombras confusas. Mangando e os latidos dos cabíris nas trevas, cães esqueléticos de orelhas de morcego, madrugadas de estrelas desconhecidas, a soba de Dala e os seus gémeos doentes, o povo para a consulta nos degraus do posto a tiritar paludismo, picadas destruídas pela violência da chuva. Uma ocasião estávamos sentados a seguir ao almoço perto do arame, naquela espécie de lápide funerária com os escudos dos batalhões pintados, e eis que surgiu na estrada da Chiquita um espampanante carro americano coberto de pó com um senhor careca dentro, um civil sozinho, nem Pide, nem administrativo, nem caçador nem brigada da lepra, mas um fotógrafo, um fotógrafo munido dessas máquinas de tripé das praias e das feiras, inverosímil de arcaica, propondo-se tirar o retrato a todos, isolados ou em grupo, presentes para enviar carta à família, recordações da guerra, sorrisos desbotadas do exílio. Não havia comida para bebés em Malanje e a nossa filha tornou a Portugal magra e pálida, com a cor amarelada dos brancos em Angola, ferrugenta de febre, um ano a dormir em cama de bordão de palmeira junto das nossas camas de quartel, estava a fazer uma autópsia ao ar livre, por via do cheiro quando me chamaram porque desmaiaras, encontrei-te exausta numa cadeira feita de tábuas de barrica, fechei a porta, acocorei-me a chorar ao pé de ti repetindo Até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, certo da certeza de que nada nos podia separar, como uma onda para a praia na tua direção vai o meu corpo, exclamou o Neruda e era assim connosco, e é assim comigo só que não sou capaz de to dizer ou digo-to se não estás, digo-to sozinho tonto do amor que te tenho, demais nos ferimos, nos magoámos, nos tentámos matar dentro de cada um, e apesar disso, subterrânea e imensa, a onda continua e como para a praia na tua direção o trigo do meu corpo se inclina, espigas de dedos que te buscam, tentam tocar-te, se prendem na tua pele com força de unhas, as tuas pernas estreitas apertam-me a cintura, subo a escada, bato ao trinco, entro, o colchão conhece ainda o jeito do meu sonho, penduro a roupa na cadeira, como uma onda para a praia, como uma onda para a praia, como uma onda para a praia, na tua direção vai o meu corpo”.

Tratava-se de uma escrita que anunciava uma rutura em formas e conteúdos, como se veio a comprovar nas dezenas de livros que se seguiram a esta auspiciosa estreia.
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Nota do editor

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