1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2015:
Queridos amigos,
Questiono se no sistema educativo e nas regiões em que estas crianças portuguesas descendentes de guineenses se contempla a realidade de um processo cultural que ele experimentam em casa ou sabem que existe, nas terras dos seus ascendentes.
Esta terá sido uma experiência, parece-me ter sido uma boa escolha incluir Abdulai Sila e Fausto Duarte, o primeiro é indiscutivelmente o nome sonante das letras guineenses e o segundo foi alguém que prestou serviços admiráveis ao que eu hoje chamo cultura luso-guineense, foi grande publicista, deixou obra que merecia ser cuidadosamente apreciada, é um caso raro de zelo nos estudos guineenses.
Um abraço
do Mário
O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas
Beja Santos
No século passado, aí por 1996 ou 1997, o Grupo de Trabalho dos Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses organizou material de suporte sobre literaturas africanas de língua portuguesa, para os três ciclos. Eram coordenadores científicos do projeto Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas. O objetivo parece-nos óbvio: contribuir para o conhecimento de autores africanos de língua portuguesa, sugerir interpretações, apresentar leituras possíveis. No caso dos textos escolhidos para o terceiro ciclo de autores da Guiné-Bissau, os organizadores propuseram Abdulai Sila e Fausto Duarte, o primeiro com o excerto do seu livro “Eterna Paixão” e o segundo com o texto “Vamos à feira?” extraído do romance Auá, de Fausto Duarte.
O texto de Abdulai Sila foi uma escolha acertada, trata-se de uma narrativa de pendor urbano onde se apresentam conflitos entre dominador e dominado, mesmo num país que acedeu à independência. Tudo se inicia numa viagem de automóvel, alguém que regressa a casa, é um ponto de partida cinético, vigoroso: “Subitamente, sem ter reduzido a velocidade, encetou uma série de movimentos com ambos os braços, torcendo o volante do carro sem piedade. Deixou a estrada principal e meteu-se na estrada secundária que nascia logo ali, sem se anunciar. Segurou firmemente o volante enquanto os pneus gemiam ruidosamente e amaldiçoou, mais uma vez naquele dia, os que haviam decidido alterar o trajeto daquela estrada, desviando-a do circuito a que estava habituado”.
E depois o autor incute ao personagem sensações, aproxima-nos: “Durante alguns instantes sentiu-se impelido a abraçar e a puxar para mais perto de si o volante. Progressivamente, este sentimento foi-se tornando mais intenso e, subitamente, sem se dar conta disso, atingiu o seu auge, provocando uma vontade irresistível de fechar os olhos”.
Ele é cooperante, chama-se Daniel, vive numa moradia soberba, a empregada chama-se Mbubi, já entrada nos anos, fora muito bela, a sua filha mais velha era uma menina mulata, de patrão branco. Apercebemo-nos que Daniel está a viver um mau bocado, o seu entristecimento é explícito, Mbubi procura interpretá-lo. O Daniel está no seu escritório, aqui é confrontado com o processo multicultural que corresponde ao seu caráter: “Como um visitante de museu, foi apreciando as diversas obras de arte africana que apaixonadamente expusera na sala de visitas. Cada uma daquelas peças tinha um valor particular para ele: os primeiros tempos da sua estadia naquele país. Às vezes recordava com certa nostalgia aqueles tempos, que pareciam já tão remotos, que marcavam a abertura de um capítulo novo da sua vida. Recordava-se da avidez que tinha em descobrir e manifestar a sua africanidade, de explorar e valorizar tudo o que a seus olhos se apresentava como genuinamente africano. E foi precisamente nesses momentos que foi juntando os quadros, as estatuetas de madeira e outros objetos de arte que hoje enchiam as paredes e davam um aspeto museico, como dissera um dos amigos da época, à sua sala”.
Daniel e Mbubi conversam até que chega a Senhora, ressalta imediatamente a tensão existente no casal. A Senhora chama-se Ruth que asperamente recusa uma dispensa a Mbubi, esta sente-se humilhada.
Começam aqui as leituras possíveis deste trecho do romance “Eterna Paixão”: um cooperante, obviamente bem instalado naquela sociedade africana, atravessa um período de sofrimento, a empregada negra tem por ele uma grande afeição, mostra solicitude, a patroa é sobrecarregada na descrição pela autoridade intolerante, o egoísmo e o espírito de dominação. A sensibilidade de Mbubi é mais forte que a tensão no casal, ela sabe que aquela casa não voltará a ser a mesma.
Passemos agora para o trecho de Fausto Duarte, um escritor e publicista injustamente esquecido, intitulado “Vamos à feira?”. Este autor cabo-verdiano procura ir direto aos tons que são devidos a um ambiente africano:
“Gigantescos poilões, árvores de grande porte, salientam-se no mato que abraça a cidade.
Ali em baixo, num martelar incessante, artífices consertam barcos, de quilhas voltadas, impelidos para a praia lamacenta. São estaleiros improvisados em barracões imundos. No porto, apesar da chuva, entrava embarcações tripuladas por Manjacos, marinheiros habituados às inclemências do tempo, tendo por bússola o instinto.
Lá no alto, um grande núcleo confuso de palhotas: Chão dos Papéis.
Na Morcunda, bairro Fula de Bissau, havia sossego nas ruas sinuosas, enlameadas pela chuva que corria abundante. Os homens, acocorados sob os alpendres de capim, conversavam distraídos a olhar a garotada nua que se banhava ao ar livre.
No céu sombrio, cor de chumbo, abriam-se paulatinamente claridades hesitantes, manchas vagas coloridas de azul translúcido. A chuva terminara, finalmente.
- Auá, vamos à feira? – convidou Farió à Fula que tinha chegado na véspera.
As duas mulheres levando algumas cabaças na mão, desceram à cidade.
Bissau era um novo espetáculo para os olhos dessa rapariga habituada ainda à paisagem uniforme do mato e à vida de Sare-Sincham. Contemplava admirada os grandes armazéns, escassamente iluminados, sempre no mesmo estilo de igrejas provisórias, onde trabalham dezenas de indígenas, limpando mancarra, ensacando coconote para carregarem potentes camiões. Automóveis fugiam velozes, e Auá receosa de tanto bulício, agarrava-se a Farió, que lhe indicava a melhor forma de caminhar pela rua, que se tornara quase intransitável”. E chegam ao mercado, descrito primorosamente por Fausto Duarte, uma autêntica água-forte de pessoas, produtos, atmosferas.
Certamente que os autores pretenderam mostrar a Auá, vinda do interior, confrontada com o bulício de Bissau e o seu mercado, a babel étnica, os gritos e as lutas verbais, no fundo ambientes que o aluno conhece e reconhece.
Será que estas experiências de mostrar literatura africana a quem tem avós, pais e outros familiares guineenses, contribuem para ganhos de identidade e orgulho numa vivência pluricultural e de solidariedade com os ancestrais, com todos aqueles que ficaram e que sofrem a tragédia do subdesenvolvimento? Era bom que soubéssemos por onde param estas experiências e quais os seus resultados.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16361: Notas de leitura (864): “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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