terça-feira, 24 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25976: (De) Caras (310): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Esta carta do tenente Barbieri para o seu irmão, Paulo António, em Lisboa, terá a ver com uma viagem que este oficial da Armada fez a caminho de Luanda com paragem em Bissau. Não deixa de surpreender a riqueza da informação que foi prestada, certamente no Comando de Defesa Marítima da Guiné. Há, evidentemente, dados arbitrários, discutíveis, desde os 10% do domínio territorial do IN, passando pelo gasto de 80 granadas de morteiro numa operação de emboscada, até ao poderio naval do IN, nesta data o PAIGC já deslocava pela calada da noite embarcações no Sul, daí as operações com êxito efetuadas pelo comandante Alpoim Calvão, a previsão do tenente de Barbieri quanto a um poderio naval no Sul nunca se concretizou, bem como o sistema antiaéreo que ele refere na região do Quitafine acabou por ser aniquilado. Este documento, à semelhança da correspondência para Paulo Barbieri, prendendo-se sempre com o tema da guerra colonial, será posteriormente entregue no Arquivo Histórico-Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2)

Mário Beja Santos

Dei conta ao leitor que nas minhas deambulações pela Feira da Ladra conto sempre cumprimentar potenciais fornecedores, um deles dispõe em cima da sua banca álbuns fotográficos, caixas com velhos bilhetes-postais, fotografias avulsas, maços de aerogramas (infelizmente só de Angola e Moçambique), material avulso, desde programas de ópera a teatro de revista, tudo para satisfazer a clientela de colecionistas, que ali aparece em número apreciável. Bato quase sempre com o nariz na porta, mas desta feita apareceram para ali quatro cartas destinadas a Paulo António Osório de Castro Barbieri, duas escritas pelo seu irmão na Guiné, Nuno Barbieri, e outras duas escritas por um alferes na Guiné, seu amigo, Pedro Barros e Silva, SPM 0368. Já aqui se publicou a primeira carta de Nuno Barbieri para Paulo António, vejamos agora a segunda, com data de 12 de maio de 1967:

“Meu caro Paulo:

Deixei Bissau ontem à tarde sob a ameaça de um tornado, que não tardou a desabar sobre nós no canal de Geba e que veio anunciar a época das chuvas por estas paragens. No momento presente o céu está aberto e o Sol começa a escaldar e isto a umas escassas milhas da costa, pois há cerca de 1 horas passámos pelo través do Cabo Verde. Não só este regime é instável, como também estamos em presença de um microclima, o da Guiné.
Devo dizer-te que um dia antes de chegarmos à Guiné a cor do mar sofreu uma alteração sensível de azul para verde-sujo e isto seria uma amostra da cor das águas marinhas daquela costa. Quando nos levantamos verificamos com desagrado que o mar passara a cor de água de charco. Costa não se via ainda, embora pouco mais tarde nos aparecesse misteriosa, encoberta por um véu de neblina que nós atribuímos ao facto de ainda ser manhã cedo.

A nossa chegada a Bissau foi um acontecimento para as forças navais, que nos vieram esperar sob formatura, com todas as pequenas e ‘grandes’ unidades disponíveis no momento. Era uma da tarde e Bissau continuava encoberta por uma neblina agora parda e apenas nos deixava ver a orla costeira de edifícios e árvores. Sob os nossos pés a chapa de aço fazia arder os sapatos e começava a tornar-se incomodativo para quem como nós tínhamos de estar parados em formatura. Devo dizer-te também que no dia anterior à nossa chegada já a noite se apresentou húmida embora estivesse longe da costa e isso não se parecesse nada com o que nos esperava: 93% de humidade na atmosfera!

Tirando os habitantes e os arredores, Bissau parece uma cidade portuguesa de província onde a desmentir tal facto existe talvez um excesso de geometria no traçado das ruas e um elevado número de cores no tipo de moradias. No entanto, existe qualquer coisa que nos lembra imediatamente que estamos numa terra sob a nossa influência. A presença islâmica é aqui verdadeiramente notável, tendo dado ao negro não só uma aparência de dignidade como também uma mobilização humana orientada que nos pode ser útil ou difícil de suportar, conforme a soubermos manejar.

Etnicamente a Guiné compõe-se de Fulas, Futa-Fulas no Leste, Balantas na faixa central, Mandigas na zona de Como e Cantanhez, Papéis e Balantas ao pé de Bissau e Manjacos no Noroeste. Os Fulas não podem com os Balantas e vice-versa, no entanto as nossas autoridades esforçam-se para a pacificação e é nesse sentido que se procura encarar a fraternização dessas duas etnias. Se se perguntar qual a razão por que o terrorista se estabeleceu com tanta força no Sul, e se encarniça a defender essas terras, é porque essa é a zona mais rica em agricultura da Guiné, arroz, e também porque pode receber diretamente da República da Guiné o apoio de que necessita.
As vias de abastecimento do IN são nossas conhecidas e de vez em quando flageladas. Tal conhecimento não nos impede, no entanto, de permitir outras vias sob pretextos humanitários, de tratamentos médicos à população do Senegal que ‘pacificamente’ entra na Guiné para receber tratamento.

Chega-se agora à conclusão da necessidade de organizar a nossa administração sob o tipo de hierarquias paralelas, como único meio de fazer frente à forte organização IN. Este realiza um esforço triplo: de informação, de abastecimento em pessoal e material, e finalmente o de guerra. A sua informação na maioria dos casos é superior à nossa e a tal ponto que o fator surpresa não conta praticamente para o nosso lado. O seu abastecimento é bastante eficiente pois material não lhes falta, nem tão pouco munições. É vulgar o IN gastar numa operação de emboscada 80 granadas de morteiro. Como sabes, apareceu agora como novo elemento na dança o canhão sem recuo, que é transportada às costas até ao local da emboscada. Ao longo das principais do IN encontram-se peças antiaéreas duplas que tornam praticamente ‘impossível’ o voo da FAP.
Existe também um contra às nossas ações que é dado pela uniformidade de relevo da Guiné. A falta de pontos conspícuos torna difícil a navegação marítima e terrestre. Sempre que uma força é obrigada a desvia-se de estradas ou picadas por razões de surpresa ou de segurança, tem de se fazer navegação por bússola aproveitando o tipo de vegetação como elemento auxiliar na identificação da posição. A navegação costeira é feita a olho assim como a determinação dos pontos de reunião de forças desembarcadas com as unidades navais de recuperação. Tal facto apresenta o inconveniente da escolha obrigatória de pontos de desembarque e de reunião, facilmente identificados pelo IN.

Logo que os informadores de Bissau assinalam a partida de uma força anfíbia ao Sul, para o Norte, pelo Geba acima, imediatamente as posições prováveis de desembarque e de ação se tornam identificadas. Para fugir a este inconveniente, o desembarque realiza-se muitas vezes acima de um arbusto, quase arbóreo, que pela sua densidade forma uma massa impenetrável. É o tarrafo, que separa a linha de água da terra firme, numa margem de cerca de 300 m e que é necessário percorrer de ramo em ramo com o material às costas e de regresso, com feridos, prisioneiros e material apreendido. Assim consegue-se desembarcar em qualquer lugar do rio ou da costa e ganha-se segurança. Porém, o desgaste físico é violentíssimo e a operação de desembarque demora por vezes 45 minutos. Outro aspeto característico da Guiné é a quantidade de líquidos que se absorve e o facto de nunca se conseguir ter o corpo seco. Qualquer gole de água que se beba parece que nos sai logo pelos poros da pele. O calor é muito violento, embora exista sempre uma aragem do mar que no nosso suor nos dá uma sensação de frescura. É apenas uma ilusão provocada pela evaporação do suor e talvez mesmo um meio de defesa.
Tudo isto se conjuga para nos dar a ideia de que a Guiné não é para nós a não ser um divertimento ou uma escola militar. É importante salientar o facto de que as populações indígenas constituírem no interior sistemas de autodefesa bastante eficientes e que por vezes por sua iniciativa tomam parte em ações deliberadas contra o adversário. Além disso, existe na Guiné a milícia que tem feito grandes ações e dado provas de bravura muito superiores a algumas das nossas forças.

Como sabes, o terrorista esforça-se para dominar as zonas ricas de gado e agricultura, não só para debilitar a economia da província como para resolver os seus problemas. Assim, pelo domínio substitui a nossa hierarquia administrativa pela sua, que compreende técnicas especializadas em assuntos agrícolas. Aonde o seu domínio não pode ser efetivo, o terrorista em ações isoladas vai subtrair às populações pela força o arroz de que tem necessidade. Porém, isso autoriza a nossa propaganda a classificá-lo como IN. Para fugir a tal classificação, o exército popular da libertação da Guiné começa a vir às nossas zonas comprar o arroz às populações com a nossa moeda, o que significa possuírem dinheiro suficiente para nos fazer concorrência ao nosso poder de compra!
Para terminar, basta dizer que o nosso espírito é o do saudosismo pela causa abandonada na metrópole. Felizmente ainda existem casos de reação e de vontade e que com a escassez de meios ao seu dispor conseguem equilibrar e, ultimamente, obter lenta vantagem militar.

Encontrei o Pedro
(adquiri na Feira da Ladra duas cartas do alferes Pedro Barros e Silva também dirigidas a Paulo António Barbieri, delas se fará referência adiante) no Quartel-General onde trabalha numa repartição de nome estranho e pouca importância. Persiste no bigode, embora mais curto para substituir as penosas operações militares dedica-se por vezes a pequenos distúrbios. Basta dizer-te que apanhou com uma garrafa na cabeça, mas segundo ele o adversário ficou pior! Saudoso de casa, isto é, da Europa e certos alimentos, o Pedro espera ardentemente livrar-se da Guiné. Faz projetos de férias que, suponho, te vai participar na próxima carta. Quanto ao seu aspeto físico achei-o bom embora com aquela cor um pouco verde da gente que aqui vive. As suas taras mantêm-se vivas e julgo que contraria outras bem mais numerosas. Jantei com ele no batalhão de engenharia por convite do coronel Branquinho e esposa. O comandante situa-se perplexo durante a guerra e diz-nos que a nossa ação será difícil. Esquece, porém, uma coisa, que estamos perante um teatro de operações que é do tamanho das nossas terras a Sul do Tejo e que de todo esse teatro só 10% está nas mãos do IN. Embora o terreno seja realmente difícil de atuar, as suas dimensões são, por outro lado, um auxílio nosso. A 20 km de Bissau as tropas estão em guerra o que mostra da parte do adversário o conhecimento que as dimensões estão contra ele. Obrigado por razões de economia a estabelecer-se em força no Sul, espalha-se pelo resto do território para evitar que esses 10% de espaço ocupado e de ação se situem numa zona delimitada, fácil de cercar e estrangular pelas suas pequenas dimensões.
Tudo isto é razão de sobra para a nossa atitude de boca aberta. Enquanto os comandos militares sofrerem de admirações e indecisões deste tipo, julgo que a supremacia será deles.

De todos os seus problemas talvez o das vias de comunicações seja o maior. Este traz problemas de atraso de abastecimentos e das informações e ordens, ao mesmo tempo que só são verdadeiramente possíveis deslocações no sentido Oeste-Leste. Norte-Sul implica o atravessar de numerosas vias de água, esta é a menor dimensão da Guiné logo para azar dos turras. Imposição por virtude de necessidades, de atravessar vias de água obriga os turras a lançarem mão de construção naval: pirogas, porém, uma vez obrigados a aceitar água, o turra serve-se dela para acelerar o abastecimento e a informação no sentido longitudinal, reduzindo assim uma combinação de deslocamentos terra-água o comprimento da Guiné para efeitos de tempo.
Parece-me nunca ser possível ao IN a utilização de outro tipo de embarcação, a não ser que a consolidação das suas posições no Como e no Cantanhez permita a instalação de artilharia de costa e assim estabelecer águas territoriais independentes ao Sul.

Essas águas independentes serão a porta de entrada de embarcações de guerra bem equipadas que a República da Guiné lhes queira fornecer. Primeiro como base naval, depois como irradiação do poderio naval para o interior, o Sul apresenta-se hoje como uma pedra-chave ao poderio do IN. A nossa fiscalização, embora dificultada pela ação das margens, não tem encontrado reação pelo próprio meio. Esta inicia-se agora por meio de minas nos rios, já tendo sido danificada uma lancha de desembarque, a ação no próprio meio a longo prazo e depois em ação direta do poderio naval. Isto obrigará da nossa parte a um aumento do custo da guerra, o qual deixará de ser compensado pelo nosso fraco objetivo ideológico.

Julgo ter-te dito tudo quanto consegui concluir no prazo de 2 dias em que aqui permaneci. Dá à família os carinhos devidos e insiste no estado perfeito da minha saúde, Nuno".


(continua)

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Nota do editor

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