sábado, 16 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Carta de Piche (1957) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de PIche, a meio da estrada entre Piche e Canquelifá, como rio Caium a sudeste.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > Dunane >  Temos uma dúzia de referências a Dunane, um lugar perdido no Leste, um dos muitos Bu...rakos da nossa geografia de guerra,. E este topónimo remete ora para  o Cristóvão de Aguiar (CCAÇ 800, 1965/67) ora para o Zé Ferreira  da Silva (CART 1689/BART 1913, 1967/69), dois dos nossos escritores de talento. A diferença entre eles é que o Zé Ferreira, um "assumido bandalho", tem carradas de humor, que é coisa que falta (va) nos escritos do açoriano. 
 E foi ele, o Zé  Ferreira, quem celebrizou, na guerra da Guiné, o nome de Dunane, com o Bife à Dunane, criado por um cozinheiro madeirense, o "Senhor Badalhoco" (, texto que já faz parte do... Plano Nacional de Leitura).(*)

Foto (e legenda): © José Ferreira da Silva (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (**). 

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (***)


Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)

Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

(Continuação)

Contuboel, 12 de Outubro de 1965

O meu Grupo de Combate vai dentro em breve para o destacamento de Dunane, quartel de campanha rodeado de arame farpado, sem qualquer tabanca (a que aí existia foi incendiada pelas nossas tropas, e a população que não morreu, fugiu para outros chãos) - fica então Dunane entre Piche e Can­quelifá, onde existem duas companhias, uma em cada uma dessas localidades, que por aquelas bandas a guerra é mesmo a doer. 

Vamos então render um outro Grupo de Combate, o do João Cortesão Casimiro, da nossa companhia, que, por estes dias mais próximos, conclui um mês de estada naquele que é considerado um dos piores desta­camentos daquela zona, sem as mínimas condições para se viver como gente: água bi­chenta, instalações em abrigos feitos de bidões de gasolina cheios de pedregulhos, o tecto coberto de troncos e por um oleado, e tudo isto rodeado de mata e de silêncio e guerrilheiros. 

Esta zona militar abrange, além das unidades já mencionadas, Nova La­mego, Bruntuma e Madina do Boé, onde, aí, nem se atre­vem as nossas tropas a meter o nariz fora dos abrigos de cimento armado, recebendo os ví­veres e o correio através de helicóptero, que lança os sacos das alturas e desapega-se logo para lugar mais se­guro... 

Em Dunane não há população, só meia dúzia de milícias indígenas. Com cerca de trinta homens, ao fim de pouco tempo não há solidão que re­sista. Só é preciso é que não falte vinho nem correio, porque assim o soldado acomoda-se com mais facili­dade...


Contuboel, 15 de Outubro de 1965

Recebi um rádio do comandante do batalhão acantonado em Bafatá, ao qual pertencemos, anunciando a rendição do pelotão de Dunane para o dia 18. Temos de sair às primeiras horas da manhã. E vinham também várias instruções sobre o mate­rial a levar, não esquecendo os sacos de areia nas cabi­nas dos Unimogs por causa de surpresas de­sagradáveis, que vamos atravessar zonas perigosas e algumas quase terra-de-ninguém, além das rações de combate para a via­gem, que deve demorar as suas quatro horas, com paragem em Nova Lamego e Pi­che... 

Reuni os homens do meu pelotão e transmiti-lhes todas as ordens que achei con­venientes quando à nossa futura partida (só não lhes revelei nem o dia nem a hora), or­dens que são para se cumprir à risca, sem a mínima discussão. E avisei-os que come­cem, desde já, a preparar os seus sacos de campanha, porque nunca se sabia quando largávamos para Dunane, a fim de render os nossos camaradas.

Dunane, 19 de Outubro de 1965

Após uma viagem atribulada e cansativa, chegá­mos por fim ao nosso destino. E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma forna­lha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. 

Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. 

Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de car­dos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim...


Dunane, 21 de Outubro de 1965

CRISTAIS DE DOR

Cristais de dor na noite tenebrosa,
Ferindo o silêncio duro e magnético;
Nenhum gesto de luz, leve, carinhosa,
Calando na noite o grito profético.

Em bandos descem pássaros estranhos,
Trazem recados no bico agoirento;
Muito ao longe nos currais os rebanhos
Tremem e choram lágrimas de vento.

Nas palhotas sem luz sonhos vencidos,
Crianças sem estrelas nos olhos caídos,
E pão de tristeza em bocas de fome.

Silêncio, dor, tristeza, solidão,
Tudo o que tem quem vive nesta prisão,
E um número no lugar do próprio nome.



Dunane, 3 de Novembro de 1965

MORTOS-VIVOS

Somos os mortos-vivos duma geração
Tran­cada nos aposentos do medo.
Se ousamos outra voz no coro duma canção,
Dão-nos nova alma e este degredo.

Se puderes olha em frente de olhos repousados,
Ar­reda o medo da mente ferida.
E teus dias serão plenos, serenados
E a vida será um salmo de vida...



Dunane, 6 de Novembro de 1965

ANSIEDADE

Conto os dias pelos dedos
Um a um sem fa­lhar.
Triste de quem tem segredos
E não tem a quem contar...

Parti triste e triste estou
Longe de ti nesta terra,
Onde o Sol se apagou
Sob negras nuvens de guerra.

Se a dor que no peito sinto
Tivesse boca e contasse
Tudo o que peno (não minto)
Talvez ninguém acreditasse...



Dunane, 10 de Novembro de 1965

PRIMEIRA CANÇÃO DO MAR

A minha voz vem do mar,
Meus cabelos de espuma são,
É no cais que vou cantar
As penas do cora­ção.

As coitas do coração
Ai, coimas de amargura.
Diz-me lá tu, ó canção,
Que é da velha ternura
Do mar da minha infância
E porquê vida tão dura,
Este viver sempre em ânsia?

Tatuaram-me no braço
Uma âncora de esperança...
Ai, e no peito um cansaço
Já do tempo de criança...

O mar embalou meu berço
- Velha canção de embalar
E assim rimei meu verso
Com a triste voz do mar.

O mar indicou-me o mundo
Nas rotas das caravelas...
Foram-se os sonhos ao fundo,
Rotas ficaram as velas.


Dunane, 15 de Novembro de 1965

SEGUNDA CANÇÃO DO MAR

Nas ondas do mar salgado
Escrevi o meu destino
Assim tracei o meu fado
Desde o tempo de me­nino.

Fez-se o mar meu amigo
Desde os tempos de outra idade:
- Quando não está comigo,
Chora triste de saudade...

Tantas vezes boiei morto
Na crista das ondas bravas,
Mesmo à vista dum porto
Onde, amor, me esperavas...


Dunane, 18 de Novembro de 1965

UM BARCO NA NOITE

Na noite subversiva havia um barco
Anco­rado no cais.
O céu era o reflexo de um charco
E de outras sombras mais

Súbito acordou uma luz
Nos olhos adormecidos...
Uma candeia que conduz
A vitória aos vencidos.

Todo o Universo se encheu de asas
E de itinerários...
Trancámos as portas de nossas casas
Nós, os revolucionários...

Tudo por fim rolou na lem­brança
Na noite subversiva
O barco ancorado partia para França
E nós ali à deriva...

Só nos ficou o sonho e a esperança,
E o barco ancorado partiu para França...


Dunane, 23 de Novembro de 1965

Estou com o meu pelotão há mais de um mês neste destacamento de Piche. Antiga tabanca balanta, destruída pelas nossas tropas há já al­gum tempo, é agora um aquartelamento destinado a um pelotão das nossas tropas e a uma secção de milícias indígenas. 

Estamos em solidão absoluta e com falta de víve­res. À noite, entretém-se o pes­soal com o espectáculo deslum­brante dos incêndios das tabancas atacadas pelos guerrilheiros e cujas chamas se vêem ao longe lam­bendo o horizonte cir­cular que deste cabeço onde se situa o aquartelamento se abarca. Nem dentro do perímetro do arame far­pado se pode an­dar à von­tade.

Contuboel, 1 de Dezembro de 1965

Chegou o novo capitão para comandar a com­panhia. O primeiro, o que foi ferido na tal operação simulada, com o intui­to de trei­nar os homens para a dureza da guerra, nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima. In­formou-me há dias o nosso primeiro Mota que ele tinha sido transferido para uma re­parti­ção do Quar­tel General, em Bissau, após ter estado em prolongada con­vales­cença na metrópole. O guarda-costas, esse, foi para a Alemanha para lhe porem uma prótese nos cotos das pernas. Nesta vida da tropa são tão efémeros os senti­mentos.

Contuboel, 25 de Dezembro de 1965

OUTRO TEMPO

Tempo loiro, maduro,
Nas mãos o Universo.
Sentia-me seguro
Como a rima num verso...

Depois veio o frio
Das noites de Inverno.
E pensava (agora sorrio)
Nas penas do inferno.

- Já rezaste, rica cara?
Perguntava uma velha tia.
Dizia que já terminara
E tinha a alma em dia...



(Continua)

___________

Notas do editor:

7 comentários:

Manuel Luís Lomba disse...

Um reparo.
A tropa não foi a incendiária daquelas (e outras) tabancas no Gabu, foi o PAIGC e o seu comandante Vitorino Costa, tirocinado em Pequim, nas quais praticou atrocidades e recrutou pela força dezenas de homens para a "reeducação" e guerra no sul.
Amílcar Cabral decidira-se pelo terrorismo no Leste, o resultado foi o seu contrário, serviu para fortalecer a oposição dos Fulas, os recrutados desertaram todos, substituiu-o pelo comandante Domingos Ramos, nosso ex-camarada, colocou-o em Quinara, no sul, morrerá no assalto à tabanca de S. João, em combate com a CCav 153, deplorável foi o acto de passear o seu cadáver pelas tabancas de Quinara.
Abr.

Valdemar Silva disse...

Como estive por aquelas paragens, estou sempre à espera de ler neste, quase tele, "Diário de Guerra", de Cristóvão de Aguiar, pormenores/descrições mais concretas sobre as localidades/tabancas Contuboel, Nova Lamego, Piche mas não aparecem, como de Dunane essas descrições.
Passei por várias vezes por Dunane nos finais de 1969 e era exatamente assim como nos descreve Cristóvão de Aguiar.
A tabanca/quartel ficava colada à berma da estrada (meio caminho Piche-Canquelifá), com um cavalo-de-frisa de porta d'armas a abrigos à prova de bombardeamento. Contavam-nos que se defendiam como nos filmes de western contra os índios.
Recordo-me de uma das vezes ter sido o meu Pelotão ir de Canquelifá ao Xime (!!!) fazer a segurança a uma coluna de reabastecimento para Piche, Dunane e Canquelifá, e no regresso ao passarmos por Dunane eles protestarem com a chegada dos "frescos" por 15 dias antes (Natal) terem sofrido de grandes caganeiras devido camarão fresco do reabastecimento.
Também foi perto de Dunane que a minha CART11 teve a primeira baixa sold. Santoné Colubali e ferimento grave do 1º.Cabo trans. Custódio Marques, devido a minas na estrada para Canquelifá.
Sabia que Dunane não tinha população civil, mas não sabia ter sido uma tabanca de balantas (?) no leste, em terra de fulas e pajadincas, e que tinham sido expulsos pela tropa, mas o nosso Luís Lomba, qual Larousse nestas coisas, diz terem sido escolhidos em Pequim para serem reeducados, provavelmente comiam com as mãos, e servirem de educadinhos no sul.

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Da "má fama" o então capitão de infantaria José Curto, o carrasco de Vitorino Costa, não se livrou. Provavelmente ainda hoje, na região de Quínara,o seu nome (pelo terror que inspirava) é recordado pelos mais velhos. Pelo menos, era assim em 2008...quando eu lá estive, na Guiné-Bissau, e visitei a região de Tombali. Deve ser caso único, de entre os "tugas", tirando o nome de Spínola e poucos mais...

Continuamos a saber pouco de Dunane, se era originalmente uma tabanca fula, mandinga, pajadinca ou até balanta. Talvez o Cherno Baldé nos possa elucidar. DE qualquer modo, estou grato pelos contributos do Valdemar de Queiroz (que conheceu a região) e do Manuel Luís Lomba, a par do CRitsóvão de Aguiar e do Zé Ferreira...

No subsector, o L1 (Bambadinca), que me calgou em sorte, havia, isso, sim, tabancas balantas, junto ao rio Geba e ao Corubal, que forma riscadasd do mapa... Infelizmente, a sua história é aqui pouco falada, tirando talvez Samba Silate...

José Ferreira disse...

Caros Camaradas

Para melhor caracterizar a minha estadia no chamado "Hotel Dunane", naqueles tempos difíceis, lembro/junto ao "Bife à Dunane", "A guerra em Dunane" e "O Alferes Maluco".

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2012/01/guine-6374-p9331-memorias-boas-da-minha.html

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2011/07/guine-6374-p8529-memorias-boas-da-minha.html

NOTA: As histórias são verdadeiras.

Abraço do
Silva da Cart 1689

Valdemar Silva disse...

Ferreira, aquele P8529 é uma delícia.
Em 1968, Dunane e a descrição do que por lá se passava até parecia uma estância balnear da "La France d'outre-mer". Em 1969/70, Dunane já era um osso duro de roer.
Além destas tuas fotografias, é pena, por eu gostar de ver, não haver no blogue fotografias de Dunane para se conhecer como era a tabanca/quartel. E seriam umas imagens para dar mais uma ideia de como foi a guerra na Guiné.
Aquela fotografia na tabanca, vestido como quem vai jantar a um Restaurante da Vila, é das boas fotos do nosso blogue e que pena não ser o zoom de um grande plano de Dunane.
Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

p.s. pelos vistos eram frequentes as diarreias em Dunane.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Todas as histórias de guerra são verdadeiras, mesmo com o traço grosso da caricatura ou o ácido corrosivo do humor negro. Por isso até havia alferes malucos e generais de opereta, na nossa "Guinesinha" (como lhe chamava a Cilinha)...

José Emídio Marques disse...

José Emídio Marques
Camaradas. Foi com muita atenção que li e tomei conhecimento das atividades históricas e lúdicas do José Ferreira na escola primária, penso no Porto, e dos textos do nosso camarada Cristóvão Aguiar , relatos e poesia de lamento por se ter vida e não se poder viver.
A todos que da lei da morte se vão libertando, um grande "bem Haja".
Manter a história viva na primeira pessoa é o mais importante.
Como todos nós sabemos não havia informação na "metrópole " do que se passava nos teatros de guerra.
Eu quando escrevia para os meus pais ou para a namorada, tinha medo do que escrevia, amigos e conhecidos meus tinham sido presos pela PIDE.
Foram muitas gerações que sofreram as agruras da guerra a qual deixou marcas muito profundas em quem a viveu intensa e longamente. Eu acabei por ter o privilégio de estar somente sete meses.Mas, quando cheguei aos ADIDOS em Bissau deram-me logo a notícia que a minha cia.já tinha um morto.--Fiquei gelado!
Numa diligencia da minha actividade profissional, em que consistia na citação de penhora de pensão de reforma, o executado exaltou-se contra a sua mulher e contra mim , porque era uma dívida à NOS, ao ponto de querer agredi-la. A mulher desabafou comigo que o se marido era traumatizado de guerra. De imediato perguntei onde tinha estado e a resposta não se fez esperar. Piche na Guiné.
Quando comecei a falar da Guiné o semblante e a atitude do homem mudou totalmente e ainda estive um bom bocado a conversar com ele.
A fraternidade e a solidariedade de guerra representam muito.
Embora não tivesse conhecido o nosso camarada Cristóvão Aguiar, quero manifestar as minhas condolências à sua família.
Um grande abraço.