segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22621: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVII: a minha "bigodaça”... que tanto incomodou os senhores da guerra


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > 1973 >  A "grande... bigodaça" que, em Bissau, no Depósito de Adidos tanto incomodou os senhores da guerra.

Fot (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 






O ex- furriel mil Joaquim Costa, Natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem quase pronto o seu livro de memórias, 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)

Parte XVII: O “Cantiflas”...  do  Cumbijã (ou a  "bigodaça”  que  tanto incomodou os senhores da guerra)

Estava eu em Bissau, regressado de férias a Portugal, quando, ao entrar no quartel dos Adidos, completamente alheado de tudo (ainda estava a digerir/moer a notícia que um camarada da companhia tinha morrido atingido por uma granada num ataque ao Cumbijã) (*), sinto um soldado a correr atrás de mim, já esbaforido por muito me chamar,  e me informa que o comandante do quartel queria falar comigo.

Fiquei atónito. Pensei: "fAinal, devo ser muito importante neste teatro de guerra. Com centenas de militares a passarem diariamente aquela porta e logo havia de me chamar a mim! Queres ver que me vai oferecer um lugar nos altos comandos?"

Lá vou eu, meio entusiasmado e a tremer como varas verdes, falar com o “homem grande” do quartel dos Adidos. O altíssimo graduado (altíssimo, já que o amarelo ocupava quase na totalidade os seus ombros) ainda antes de me mandar entrar, sem perguntar quem eu era, de onde vinha e para onde ia, atira-me à cara: "Você já se viu ao espelho?"

Eu, a gaguejar, lá fui dizendo: "Meu comandante, no nosso destacamento não há espelhos"… 

Seguiu-se a ordem: "Vá imediatamente ao barbeiro e rape-me essas excrescências dependuradas nesse lábio superior".

Não obstante a “tremideira”, ainda pensei: com toda a região a ferro e fogo, com a guerra praticamente perdida e a preocupação deste altíssimo graduado é o bigode (ou quase bigode) do Furriel Costa?… Pensaria o homem que, cortando o bigode do furriel Costa, a situação dramática que se vivia no terreno ia dar a volta? Enganou-se. Não deu! Em abono da verdade talvez porque eu, não respeitando a ordem superior, não cortei o bigode!… (Foto nº 1)

Analisando hoje mais friamente a situação, constato que o homem (em abono da verdade não sei se era o comandante ou alguém do seu “staff”) teve muita sorte na pessoa que escolheu para alimentar o seu ego. Alguém que ansiava, mais que tudo, que o tempo passasse para regressar a casa para junto da família e amigos, pelo que, disposto a cumprir, até ao limite da dignidade, todos os ensinamentos e conselhos do seu irmão e “padrinho de guerra”: "Respeita os teus superiores"!!!

Acabado de chegar de férias, a caminho de uma zona a ferro e fogo, com a notícia da morte de um camarada (o terceiro), no dia anterior num ataque ao destacamento, e ser confrontado por um alto graduado do ar condicionado de Bissau, com sofá de veludo (pelo menos parecia) e cristaleira com garrafas de uísque e copos de cristal (pelo menos pareciam já que não tinham pó – coisa rara na Guiné), embirrando, com a arrogância dos fracos, com o seu bigode,!... fosse alguém com o sangue mais quente e uma tragédia teria acontecido…

Este altíssimo graduado precisava de passar um dia no Cumbijã, fazendo revista às tropas em parada no dia da operação “Balanço final” (assalto a Nhacobá). O mais provável era não haver operação já que, analisando a fotografia do meu pelotão, ninguém estava em condições (de ir de fim de semana) de sair do destacamento (Foto nº 2)…
 

Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) > 
O meu pelotão, em mais uma saída para o mato, “devidamente fardado” e armado “até aos dentes” para o que der e vier…

Foto (e legenda): ©  Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem  complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Veja-se, a propósito, o comentário (que me foi enviado por mail),  feito pelo meu camarada e grande amigo Machado, ex-furriel mil da minha companhia,  ao meu post sobre o regresso de férias:

Amigo Costa

Já li o teu último post e gostei muito,  apesar de teres levado o terceiro murro no estômago quando chegaste de férias em 1973. Eu estava no Cumbijã e o ataque foi de noite no meio duma grande trovoada que não nos deixava distinguir as saídas do canhão ou rampa de lançamento.

Só tive tempo de sair do bar e abrigar-me atrás do embondeiro 
 [, talvez poiolão] que estava perto da saída, embondeiro esse que foi furado dum lado ao outro por uma das granadas. Apanhei um susto que até perdi o meu isqueiro Ronson mas encontrei-o no dia seguinte. 

O pessoal de noite com lanternas na mão procurou rapidamente abrigo nas valas pois a iluminação elétrica do Cumbijã tinha sido cortada por falta de pagamento, mas o Fausto Costa que era do meu pelotão e um excelente camarada foi atingido por uma granada que lhe caiu nos pés. 

São os horrores da guerra que daí para a frente iria ficar mais complicada. Eu, no início de 1974, vim de férias e só consegui sair de Aldeia Formosa numa avioneta militar que foi fazer uma evacuação dum soldado do Batalhão com uma perna partida, havia 5 ou 6 dias. O sargento que conduzia a avioneta ofereceu-se como voluntário para a evacuação. Não havia aviões privados para alugar, já não levantavam voo por causa dos misseis. Estava em Aldeia a ver se aparecia algum meio de transporte para Bissau e estava a ver as minhas férias a ir ao ar, já com o bilhete TAP marcado tinha 2 dias para chegar a Bissau. 

Quando vi a avioneta militar a pousar na pista fui a correr falar com o piloto pedir para me levar. Ele acedeu ao meu pedido, mas obrigou-me a fazer uma declaração de responsabilidade assinada pelo comandante do batalhão de Aldeia Formosa. Corri tanto para um lado e outro lá encontrei  Tenente-Coronel que me disse: "Você sabe como está o espaço aéreo", eu disse que sim e que me responsabilizava , ele assinou a minha declaração e lá vim eu com e doente da perna partida a gemer. A avioneta levanto voo e esteve a ganhar altura a fazer círculos durante meia hora por causa dos misseis. O piloto depois mostrou-me que estava a ser escoltado por dois T6 que voavam muito alto e que nos acompanharam até Bissau.

Com tantas voltas cheguei a Bissau enjoado. Quando a avioneta parou e abriu a porta, eu saí a fugir e só ouvia piloto a dizer "Não atravesse a pista". Quando li este teu post, pensei que até para virmos de férias era uma aventura de grande risco.

Um grande abraço …. e continua a escrever. Machado.


Em abono da verdade (e para descanso do meu irmão Manuel), não desrespeitei a ordem do superior, mas, tal como dizia o meu irmão Avelino “finúria” para quem se arma em fino:  antecipando a viagem para o Cumbijã, embarcando nesse mesmo dia num Nordatlas, não sobrou tempo para o corte…


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) >  Foto do pelotão do furriel Machado (o primeiro da esquerda de pé) e do furriel Aleixo (o segundo da direita de pé e de óculos escuros)... As bigodaças do Machado e do Aleixo, bem como de um ou outro soldado, ao contrário da minha, sempre passaram na vistoria da “ASAE” de Bissau...  Á foto é do Machado.

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem  complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 

(Continua)
___________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 22 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22561: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVI: O regresso de férias e o terceiro murro no estômago

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sinais dos tempos: os senhores oficiais superiores que estavam em Bissau, não se aperceberam que as coisas estavam a chegar ao fim, que havia um tremendo desgaste físico e psicológico nas NT, em especial as que estavam no mato... e que já ninguém estava disposto a morrer por nada e para nada...A não ser talvez os nossos camaradas guineenses, os fulas...

Preocupavam-se, os senhores oficiais superiores,com o detalhe, o ataviolino, a disciplina, o RMD, o sexo dos anjos, mas não com a essência da guerra e do seu impasse: depois da saída de Spínola, há um doença grave que mina o moral das NT, a anomia...Foram incapazes de perceber que raio de doença era essa...

Anónimo disse...

Novamente li estas tuas boas memórias, que tão bem tens descrito e sempre com uns bons salpicos irónicos, que me deixam bem disposto, apesar de nos recordarem tempos amargos.
Nesta então foi bem melhor, pela referência que fazes ao camarada Machado, para mim duplo camarada, por ser ex-combatente da Guiné e ex-companheiro da vida profissional, de quem perdi o contacto. Folgo muito por saber que ainda resiste, mas pelo que vi só te comunicou a ti e não me apercebi que comentou no Blog. Continua a não querer dar-se a conhecer. É pena. Transmite-lhe tu esta minha prova de vida.

Abraço
Jorge Picado

Valdemar Silva disse...

Costa, mais uma bela história muito bem contada.
Nas fotos Cumbição ou Cumbijã? Comissão em Cumbijã seria uma Cumbissão.
Então na fotografia do Pelotão estão preparados para sair numa Operação. Sim senhor, em 1972/74 parece que os camuflados não chegavam para todos e aqueles barretes à guerrilhas deviam ser bem quentes de aguentar. E o relógio de pulso, no último em pé à dta,, sempre servia para saber as horas de regresso, não fosse o prato do morteiro 60 pesar demasiado às costas do apontador, coisa que o da bazuca não estava preocupado e queria lá saber ninguém levar das suas granadazinhas.
Quanto ao bigode chegado da Metrópole, vá lá que o superior não disse 'ainda se fosse um bigode que se visse'. Mas o estranho foi ser notado no regresso de férias e pronto seguir para o teatro da guerra, não fosse o IN reparar, caramba.
Mas comigo passou-se algo parecido, mas com as patilhas demasiado compridas no regresso pra peluda.
No dia anterior, ou no próprio dia não me lembro bem, eu, Abílio Duarte, Manuel Macias e Pais de Sousa fomos nos apresentar/despedir do Comandante dos Adidos por virmos para a peluda num avião da TAP. Fomos muito bem recebidos, sim senhor comissão cumprida, desejou-nos boa viagem e...você não pode aparecer no Aeroporto em Lisboa assim, tem que ir cortar essas patilhas, disse para mim. Mas meu Comandante se eu cortar as patilhas fico com marcas na cara e as pessoas/família vão ficar em choque por causa das marcas, disse eu para tentar demove-lo e assim evitar dar barraca em Lisboa.
Tá bem e desejo-vos boa viagem, disse o sr. coronel ou ten.coronel.
E adeus Guiné, que ainda nos está na lembrança, passados mais de 50 anos.

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Ninguém que por lá tenha passado pode espantar-se com esta atitude ridícula do tal comandante dos Adidos. Ele, como outros, na falta de problemas, tinha que arranjar modo de incomodar quem já andava demasiado incomodado. Gostavam de dar nas vistas, precisavam disso, na falta de outros méritos, mesmo com o barco a ir ao fundo ainda se emproavam. Era assim 1

Um abraço


carvalho de Mampatá

Anónimo disse...

Camarada Jorge Picado!
Comentário do Carlos Machado ao meu post:  Relativamente ao comentário do picado, o país é tão pequeno, fiquei contente por ter notícias dele, é uma excelente pessoa muito competente profissionalmente,aprendi muito com ele, fizemos trabalhos juntos. Era muito querido na minha Direção Geral. Eu devo ter o mail dele vou-lhe mandar uma mensagem fiquei contente com esta notícia deste amigo. Grande abraço. Machado

Meu caro Valdemar!
Sempre atento ao mais pequeno pormenor (neste caso ao maior que são as granadas da Bazuca). No primeiro mês de Guiné acredito que éramos capazes de sair com o canudo sem granadas, mas em 73...bandalhos na farda mas profissionais na guerra.
Grande abraço
Joaquim Costa

Valdemar Silva disse...

Caro Costa
Sobre as granadas de bazuca era certo e sabido que desapareciam durante uma Operação sem haver tiros, o esquecimento nas paragens por vários razões lá ficava uma granada esquecida.
Normalmente, o "espólio" era feito sacando a outro pelotão, mas na nossa CART11 as granadas já estavam pintadas pela rapaziada com um 1,2,3,4 conforme os Pelotões, para evitar a manobra. Só havia possibilidade quando passávamos por algum Aquartelamento doutra Companhia, p.ex. o de Piche, e era um gamanço generalizado de granadas de bazuca que até dava para a troca.
Abraço e saúde
Valdemar Queiroz