sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (74): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Acabaram-se as férias em Lisboa, Annette e Paulo retomaram atividades, Annette escreve ao filho, lembra-lhe que ambos visitaram Florença, há uns bons anos, o jovem sentia-se magnetizado pelo esplendor da cidade, arquitetura, belas-artes, a disposição da cidade junto do Arno, tinham ficado em Fiesole, fizeram passeio juntos, e quando a mãe trabalhava como intérprete ele maravilhava-se pelas galerias de arte e pelos palácios e jardins. Há a promessa de um trabalho para Jules, ele veio psicologicamente mais alentado de Lisboa, a relação com Paulo já chegou à intimidade, Jules disse-lhe mesmo em Lisboa que se sentia feliz com a adoração com que ele tratava a mãe. Annette conta o trabalho do livro que está a organizar para Paulo, foi esse projeto que alavancou esta estreitíssima relação de que nenhum dos dois quer abdicar. Para surpresa de Annette, julgava que o projeto do livro findava quando findasse a comissão na Guiné, Paulo deu-lhe a notícia de que vai haver um desfecho inesperado, ela que não se esquecesse que é um romance dentro de um romance, muitas vezes o que converge pode divergir, neste caso, sossegou-lhe ele, não há divergências, ele promete um final de obra que seja a celebração do amor. Cá estaremos para ver.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (74): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon cher Jules, mon brave gamin, desejo do coração que te encontres bem de saúde. Telefonei-te mal cheguei a Bruxelas, quando regressei de Lisboa, ainda desconhecia a minha agenda de trabalhos, o meu chefe admitira, antes de nós os dois termos partido para Lisboa, que setembro me reservava reuniões de trabalho só na Bélgica e Luxemburgo. Não aconteceu assim, depois de dois dias de trabalho em Bruxelas parti para Florença, um grande seminário no Instituto Universitário Europeu de Florença, juntaram-se grandes mestres da política e da investigação académica para debater o alargamento europeu em curso, não sabes o que eu aprendi sobre estes novos países, tanto os do Norte como os do Sul. Recordo uma viagem que fiz aqui contigo, estavas no primeiro ano da universidade, lembro-me perfeitamente da tua alegria esfusiante no Palazzo Vecchio e na Piazza della Signoria, tirei-te uma fotografia junto da Fonte de Neptuno, e depois junto da escultura de Donatello, Judite com a Cabeça de Holofernes, e a cópia do David de Michelangelo, prometi-te que iriamos ver o original na Galleria dell’Accademia, não aconteceu, fomos visitar a Ponte Vecchio. Tu tinhas estudado o estilo toscano e quiseste conhecer a Igreja de S. Croce e onde estão os túmulos de Michelangelo, Maquiavel, Galileo, Rossini e Cherubini. Recordo que mais tarde visitámos a catedral e o batistério, tu estavas louco de alegria com estes tesouros florentinos, ainda projetámos visitar S. Miniato al Monte, não fomos, tu pediste para visitar o Giardino di Boboli, depois eu passei um dia a trabalhar, ocasião que aproveitaste para visitar a Galeria dos Ofícios e o Museu Marino Marini, um escultor que tu tanto aprecias e que me ensinaste a gostar. Tirei alguns registos fotográficos nas poucas horas livres que tive, depois vim apressadamente com os meus colegas apanhar o comboio que nos deixou no aeroporto. Isto tudo para te dizer que Bruxelas me reserva bastante trabalho nos próximos dias, o Paulo falou com o Gilles Jacquemain quanto à hipótese de ficares a dar apoio informático num novo serviço da Comissão Europeia, parece-me ser um contrato promissor com a duração de um ano. Prometo dar-te notícias em breve, Gilles irá telefonar-me ainda durante esta semana.

Paulo e eu estamos sempre a debater o futuro, os nossos filhos estão sempre na linha da frente nas nossas preocupações, a nossa felicidade passa por vos ver bem, embora saibamos que a realização profissional nos tempos de hoje tem pouco a ver com o percurso que nos esperava quando saíamos das universidades, parecia que havia emprego para toda a gente, havia uma maior facilidade em adquirir competências, as remunerações eram mais elevadas, e já não falo do grau de estabilidade que tínhamos no horizonte, na vida laboral. Paulo e eu ganhámos um certo poder de aceitação de vivermos a nossa realização conjugal com tanta distância, confesso-te que nem sempre é fácil para mim, tenho felizmente este dossiê que me acompanha para toda a parte com o projeto do romance que foi o nosso ponto de partida, tu não podes imaginar como me inseri nele, tornou-se obra do casal, naquele dia que nos conhecemos ele disse-me mesmo que o romance se intitularia Rua do Eclipse.

Imagina o meu trabalho a compilar estes escritos, leio aerogramas para vários destinatários, consulto cartas e mapas, vejo fotografias, anoto dúvidas, procuro esclarecer-me pelo mail ou pelo telefone. Tudo parece bem encaminhado, faltam cerca de dois meses ou pouco mais para o fim da comissão do Paulo na Guiné, curiosamente ele já me disse que tem em mente um desfecho inesperado para toda esta obra. É no ajuntamento destes dias, semanas e meses que eu também vou adubando um amor sempre crescente pelo meu adorado companheiro. Estou agora num período em que ele voltou a Missirá, o pretexto foi a inauguração do gerador elétrico, comoveu-se muito, pedira insistentemente, e meses a fio, este benefício, chegou depois de ele sair do Cuor, mas estava muito feliz com a chegada de luz elétrica. Em Bambadinca, onde vive, está a processar-se a transferência de batalhões, é um tempo em que a guerrilha é muito intensa junto de povoados que estão em autodefesa, gente que é fiel a Portugal, que vive dentro de arame farpado, tem armas e munições, ripostam quando são atacados. O Paulo foi convocado para ir a Bissau testemunhar no julgamento de um soldado seu, um homem bom que teve a fatalidade de, por imprevidência, de desfechar os tiros quando subia para uma viatura num outro camarada, vai ser julgado por homicídio involuntário. Há um curioso aerograma em que Paulo conta que se reuniu com esse soldado e com um 1º cabo africano que podia traduzir para crioulo os argumentos em que os dois se deviam sintonizar: que esse soldado, de nome Quebá Sissé, não esquecesse que tinha uma muito boa folha de serviços, que quando fosse interrogado devia afirmar que era amigo devotado do falecido Uam Sambu, que tudo aquilo fora um azar monstro, que mesmo o comandante do pelotão podia confirmar que todo o seu comportamento anterior de homem de paz, que nunca perdia a cabeça, talvez naquele dia de manhã cedo estivesse ainda pouco desperto e ao subir a viatura, inadvertidamente, a sua espingarda passara da patilha de segurança para a posição de fogo, confessava a sua negligência, etc. e tal.

O intérprete, o cabo Domingos Silva, que também era testemunha, prometeu ao Paulo que iria ainda ensaiar com Quebá Sissé o que ele devia dizer ao juiz, não esquecendo de afirmar que se sentia completamente inocente e arrependido do seu deslize fatal – o Domingos observava a Paulo que tudo isto era uma conversa que não encaixava muito bem na cabeça de Quebá Sissé, enfim, problemas culturais. Encontrei no outro aerograma uma descrição do julgamento, para grande alívio de Paulo, Quebá ia dando respostas sensatas no seu português um tanto cantado, respondeu a tudo, confessou-se inocente e arrependido, como o Paulo lhe pedira no ensaio-geral. Não deixei de sorrir com a descrição que o Paulo faz do depoimento do Domingos, a gesticular e a falar muito alto, parecia um distinto ator amador, às vezes virava-se para a assistência, como se estivesse a pedir palmas. O depoimento de Paulo tinha que estar à altura de um comandante de pelotão: elogiou o militar que tinha um tratamento terno com as crianças, que era um prodígio de cozinheiro sem nunca regatear as obrigações dos reforços como sentinela, chegando a colaborar nas emboscadas e patrulhamentos, na medida do razoável, ele era cozinheiro; que todo o pelotão recebera com profunda mágoa e consternação a notícia daquele medonho acidente, tanta e tão profunda era a amizade que unia a vítima ao homicida involuntário. Ouvidas estas testemunhas o juiz preveniu que a sentença seria conhecida mais tarde, e foi bem benévola para o amável Quebá Sissé, ele já tinha estado engaiolado, acabou por sair em liberdade, como a sua comissão terminara voltou para a terra-natal, Farim. O Paulo nunca mais o viu, esteve a trabalhar na Guiné em 1991, procurou por ele, ninguém lhe conhecia o paradeiro.

Paulo voltou para Bambadinca, para os afazeres do costume, andava frequentemente numa localidade onde decorria um reordenamento chamada Nhabijões, um empreendimento de vulto, casas com arruamentos, mesquita, escola, fontanários, casas familiares assentes em quatro pilares de cibe, as paredes eram feitas com blocos de adobe, fazia-se uma trama com rachas de cibe mais finas para o telhado, onde se pregavam chapas de zinco. Há também um outro aerograma em que ele refere os odores deste novo povoado, tudo a cheirar a fresco. E no ponto em que me encontro, está a partir um batalhão e a chegar outro, é um período de transferência, quem chega bem à defesa, por precaução quer saber rigorosamente o que encontra, para não ter que dar contas à justiça. Também no pelotão do Paulo partem e chegam soldados.

Interrompo agora, houve um grande ataque a um povoado chamado Demba Taco, o Paulo patrulhava a vários quilómetros de distância, mandou informar Bambadinca que avançava em auxílio dos atacados, pedia apoio com viaturas, é já muito tarde, saio pelas seis e meia da manhã em direção ao Luxemburgo, vou ter um daqueles dias em que só se fala de Estatística ou de especialidades farmacêuticas, felizmente que vem aí o fim de semana, mal chegue a Bruxelas combino contigo um almoço ou um jantar, meu adorado filho. À tantôt, Maman.

(continua)

Praça da Senhoria, Florença
Palazzo Vecchio, Florença
Giardino di Boboli, Florença
Basílica de Santa Cruz, Florença
Museu de Marino Marini, Florença
Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. Fotografia do início do março de 1969. Em 1 de janeiro de 1970, no mais estúpido dos acidentes, ao subir uma viatura, mete o dedo no gatilho e mata um camarada, Uam Sambu. Vai agora ser julgado em Bissau, Paulo é convocado como uma das suas testemunhas
Aqui foi o porto de Bambadinca, estamos no Geba estreito, em frente à bolanha de Finete
Restos de um Unimog 411, era a primeira mina nos Nhabijões, faleceu o condutor, de nome Soares
Rua do Eclipse, Bruxelas
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE OUTUBRO DE 2021 Guiné 61/74 - P22610: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

1 - ...há uns bons anos atrás...

Se foi há uns bons anos, então foi atrás, pois claro. Haveria de ser «há uns bons anos à frente»? Das duas, uma: ou se escreve «há uns bons anos» ou se escreve «uns bons anos atrás».


2 - ...a realização profissional nos tempos de hoje tem pouco a ver com o percurso que nos esperava quando saíamos das universidades, parecia que havia emprego para toda a gente, havia uma maior facilidade em adquirir competências, as remunerações eram mais elevadas, e já não falo do grau de estabilidade que tínhamos no horizonte, na vida laboral.

A que tipo de realização profissional se refere o Beja Santos, e em que país, «quando saíamos das universidades»? Era em Portugal que «parecia que havia emprego para toda a gente»?! E quem é que em Portugal tinha um emprego com «maior facilidade em adquirir competências»?! E com remunerações «mais elevadas», ainda por cima?! E, para cúmulo, com um «grau de estabilidade (...) no horizonte, na vida laboral»?!!! De certeza absoluta que o Beja Santos não se está a referir a um emprego em Portugal, no setor industrial e na área da Ciência e da Tecnologia! De certeza! Só pode estar a referir-se a empregos na área do Direito, e só a esses.