sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22610: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Paulo Guilherme já regressou a Bambadinca, recomeçaram as andanças da guerra, há para ali uma atmosfera frenética, o batalhão de caçadores aguarda a todo o instante que cheguem os substitutos e até parece que a guerra deu tréguas com a exceção de uma singularidade que é a pressão em permanência do PAIGC sobre as tabancas em autodefesa. Ir-se-á abandonar aquela que estava mais ao extremo, em direção ao Xitole, de nome Moricanhe, a fatura virá depois, a pressão sobre a região do Cossé. E há o patrulhamento ofensivo de nome Beringela Doce, apanhou-se a coluna de reabastecimento ou de reaprovisionamento, o Paulo bem falou com o comandante que se estava a pagar a outra fatura, o abandono da Ponta do Inglês, ele encolheu os ombros, era problema para quem o vinha substituir. Deste modo se vivia a guerra. E de novo o serviço de justiça vai convocar Paulo para Bissau, ele vai testemunhar a santa inocência de Quebá Sissé que matou no acidente mais estúpido Uam Sambu, ao alvorecer de 1 de janeiro de 1970.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Páginas de comentários de Annette Cantinaux, constantes de um dossiê com a comissão de Paulo Guilherme, papéis que ela trouxe para organizar em Lisboa, havia inúmeros pedidos de explicação, ela pôs uma folha exterior a apensar um rol de imagens, aerogramas, até ordens de serviço e textos avulsos daquele alferes miliciano que voltara recentemente de Bissau; nessa folha exterior escreveu laconicamente: “Só de mim para mim”.

Nunca tive umas férias de verão como estas, com tanta ternura, com tanto desvelo deste meu adorado companheiro, recebeu com a maior afabilidade Jules, deu-nos a conhecer tanta beleza, sei que um dia destes tenho que regressar, um intérprete não pode falhar ao chamamento, é o seu modo de vida, tenho que cuidar de mim e dois filhos e continuar a pensar seriamente o que é que eu e o Paulo desejamos do futuro.

É um país surpreendente, a uma hora de Lisboa, na região Oeste, entramos num mundo frutícola e vinícola, há lindos castelos, visitei a Lagoa de Óbidos cheia de reentrâncias, o Paulo insistiu em mostrar a Jules onde passava as férias na sua juventude, um local chamado Foz do Arelho, um mar encapelado, uma vista panorâmica à esquerda em direção a Peniche, era um dia sem bruma, avistavam-se uns pontos ao fundo, o Paulo informou que eram as ilhas Berlengas, tenho a promessa de que lá iremos quando eu voltar a Portugal. Há praias lindíssimas, tomei uma fotografia de um pôr-do-sol na Praia da Areia Branca, tínhamos ido à Lourinhã visitar uma igreja que o Paulo disse ser do período manuelino e falou-nos daquela arquitetura que dias depois, já o Jules regressara a Bruxelas, encontrei no Convento de Tomar, em todo o seu esplendor, parecido só no Mosteiro dos Jerónimos, que me deixou emudecida, quando lá entrei pela primeira vez pensei que era o casco de um navio.

Mesmo em férias, o Paulo tinha que enviar artigos para publicações, organizou espaço no seu escritório para estarmos os dois, abri este dossiê, bem volumoso por sinal, estamos em maio de 1970, ainda faltam alguns meses para a comissão de Paulo terminar, um dia em agosto, no porto do Xime, entrará numa lancha da Marinha, regressará a Bissau, a guerra acabou. Uma vez dei comigo a pensar que sou um pouco como Xerazade, sei que é um comentário amargo, Xerazade tinha a cabeça a prémio se deixasse de contar histórias, a nossa relação não será afetada, estou absolutamente convicta, quando acabar a história da comissão. Mas afeiçoei-me a esta história, àquele período dos preparativos, ao modo como ele se integrou nas comunidades do Cuor, como ultrapassou aquele vexame de dois dias de prisão simples, acusado de não estar a dar o máximo para assegurar a segurança do quartel, ele que escrevia para todos, que sonhava todos os dias com o conforto, a segurança e o bem-estar dos dois destacamentos de que era responsável. Demorei a entender como ele se sentiu um tanto estrangeiro por ir viver para Bambadinca, alteraram-se as relações com as populações, fracionaram-lhe o pelotão, foi incumbido, permanentemente, de emboscadas, patrulhamentos, colunas de abastecimento, de trazer e levar feridos, sacos de arroz, munições, convocado para operações, grande parte delas sem pés nem cabeça. De saúde abalada, foi para Bissau, regressou tonificado a Bambadinca, rememora ainda hoje aquela experiência que viveu no hospital militar, não só o que se passou na Neuropsiquiatria, mas por ter presenciado um pesadelo que ignorava, os amputados medem-se uns aos outros e consolam-se quando têm mais membros que os comparados.

Tenho feito perguntas ao Paulo sobre o ambiente que ele encontrou em Bambadinca, o batalhão está pronto a partir, aguarda o substituto, o próprio pelotão do Paulo já não é o mesmo, saiu muita gente, vieram também substitutos. É um período em que aparentemente o PAIGC está mais calmo ou diversificou a estratégia, menos agressivo no Xime, no Xitole e Mansambo, mas flagelando cruelmente as tabancas em autodefesa, é um período de flagelações constantes na linha que vai de Amedalai a Moricanhe. Soube-se no Cuor que ele regressara, o régulo veio com comitiva convidá-lo a assistir à inauguração do gerador elétrico, era a linha do progresso no Cuor. Devia ter dito que não, continua a pensar que ainda era muito cedo para se poder aplacar tão grande saudade, disse que sim, como se Missirá e Finete, o Cuor por inteiro, não fizessem parte da recordação mais terna e inviolável do seu tempo guinéu. Combinou com o capitão Figueiras e lá partiram para o evento, aos primeiros alvores da manhã, foi recebido ruidosamente, conseguiu guardar distâncias, enquanto viajava pelo Geba estreito recordou as dezenas de cartas enviadas para a engenharia, talvez a primeira fosse datada de outubro de 1968, promessas não faltaram, e agora estava ali, sabe-se lá porque lhe passou a ideia pela cabeça, uma faísca que parecia anunciar um tornado não era mais do que toda a luz elétrica que dava sinal de vida, um bonito contraste com as chapas zincadas que faiscavam à crueza do sol, soltaram-se umas lágrimas rebeldes entre os aplausos e a risada da população.

E volta para Bambadinca e é convocado pelo major de operações para o tal patrulhamento ofensivo, da sua inteira responsabilidade, tem um nome um tanto cómico, Beringela Doce, estão o major e ele na sala de operações, ele acompanha o movimento do ponteiro no mapa: sai de Amedalai, contorna Ponta Coli, avança para Gundaguê Futa-Fula, importa contornar as bases do Baio e do Burontoni, procurar sinais da presença do inimigo e seguir cuidadosamente para Ponta Varela, sai de manhã cedo, regressa no dia seguinte à tarde, algo como mais de 30 horas e um número incontável de riscos. Guardo os rascunhos que o Paulo ataviou, trouxe mesmo uma carta desta região do Xime, mas desta feita fazia-se acompanhar de secções de pelotões de milícias, inclusivamente gente de Finete e Amedalai, não foi envolvida a unidade militar do Xime, sabiam que não podiam sair do quartel, na medida em que o Paulo e os seus homens iam percorrer Ponta Varela. Uma noite destas conversei com o Paulo sobre tudo o que se passou: não havia indícios de passagem de população ou militares do PAIGC entre Amedalai e Ponta Coli, e mesmo até Chicamiel, a razão parecia ser muito simples, estava-se a alcatroar a estrada entre Xime e Bambadinca com alta proteção. Tenho aqui um papel do Paulo em que diz ter ouvido desabafos das milícias, estava anunciado que se ia abandonar Moricanhe e não havia já ilusões que seria a região de Badora a próxima a ser altamente flagelada. Há mesmo um comentário escrito pelo Paulo sobre a progressão até Ponta Varela: sinais muito antigos, mesmo indícios de uma antiga barraca do PAIGC, só em Ponta Varela é que encontrámos trilhos batidos, andámos sempre a corta-mato, pernoitámos entre Gundaguê Beafada e Madina Colhido.

Os acontecimentos dolorosos surgiram na manhã seguinte, vai-se de Ponta Varela até às proximidades do Poidon, nisto ouve-se tiroteio, acontecera que o soldado Serifo Candé viu avançar em sua direção uma coluna de lavradores ou de reabastecimento, não deu tempo para se perceber exatamente o quê e quem, Serifo atira uma rajada, feriu um homem e uma mulher, os outros fugiram, deixando para ali sacos de arroz e esteiras, pediu-se evacuação Y, perdida que estava a surpresa, regressou-se ao Xime e partiu-se imediatamente para transportar as milícias para os respetivos destacamentos. E tenho aqui um aerograma, um texto de profundo desalento em que o Paulo escreveu a um amigo a contar a conversa com o comandante, este insistia em policiamentos semanais para intimidar o PAIGC, não tinha ilusões, só as tropas especiais é que podiam desalojar forças tão enquistadas no terreno dos santuários, aprendera-se muito com uma operação chamada Lança Afiada, por ali se tinha andado doze dias até que a tropa regressou exausta e profundamente combalida, houve mesmo evacuações de barco no Corubal, gastara-se uma fortuna para resultados nulos, tinham-se apreendido umas toneladas de arroz, uns velhos desdentados e uns canhangulos, o PAIGC, inevitavelmente, saíra robustecido deste jogo do gato e do rato, o Paulo replicou que era indispensável manter Moricanhe e mudar a rota das operações, o Poidon era um celeiro, havia que aprender de uma vez por todas que se devia recuperar a posição da Ponta do Inglês. No final desse aerograma o Paulo observava que fora um discurso inútil, este batalhão está de partida, vamos ver se poderá passar a mensagem para quem dentro de dias vai chegar. É nisto que o tenente Pinheiro me informa que tem que estar dentro de dois dias em Bissau, é testemunha abonatória de Quebá Sissé, o amável cozinheiro de Missirá, que ao amanhecer do dia 1 de janeiro daquele ano, ao subir para uma viatura metera o dedo no gatilho da espingarda ferindo mortalmente Uam Sambu, que tombou para o regaço de Paulo, lá foram desvairados para a enfermaria de Bambadinca, mas nada se podia fazer mais, Uam espirara durante o voo em direção ao hospital militar. Enquanto arruma um saco de trastes para voltar a Bissau, Paulo conversa consigo próprio, é crucial que o magistrado perceba que se tratou do mais estúpido e funesto dos acidentes e que Quebá Sissé é um homem bom entre os bons.

(continua)


Pôr-do-sol na praia da Areia Branca
Trancoso, cidade medieval
Penedono, célebre pela sua castanha
Os achados arqueológicos de Freixo de Numão
Barbearia Chiado, no Bissau Velho
A azáfama no cais do Pidjiquiti
Guarita do antigo comando da defesa marítima da Guiné, hoje chefia do Estado-Maior da Armada
Uma evacuação em Madina Colhido (regulado do Xime) durante a operação Boga Destemida
Batelões civis navegando no rio Geba em direção a Bambadinca
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22585: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (72): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

As fotos dos batelões na Rio Geba, lembram-me o dia que o homem chegou à Lua.
Na noite de 20-21 de Julho de 1969 viajava eu de Bambadinca para Bissau num batelão muito parecido, ou talvez fosse este, com o da primeira fotografia que também puxava outro.
Inesquecível, 'pequeno passo para o Homem, um grande salto para a Humanidade' ouvidos colados num rádio a pilhas, dentro dum batelão parado no Rio Geba pela maré, numa noite de luzes nas margens (seria o Pelotão Beja Santos a fazer segurança?), picado de mosquitos, sacos de mancarra como colchão, a tomar conta de material usado na recruta de mais rapazes para a guerra e ouvindo a habitual descrença 'tenho dúvidas que chegassem à Lua'.

Abraços
Valdemar Queiroz