Queridos amigos,
Naquelas férias de verão, Annette veio com o seu filho Jules, jovem desmotivado e com o astral em baixo, afetos acidulados e o trabalho precário não o larga, já revelou à irmã que foram umas férias excepcionais, parte amanhã, Annette decidiu passar este último dia só na sua companhia, foram para Sintra. Então, Paulo redige-lhe uma carta onde procura minimamente responder a uma pergunta que ela julga essencial para o contexto de toda a comissão militar que está a escrever, a evolução do estado de espírito, o que aconteceu àquele jovem cosmopolita, muito dado à cultura, que foi malhar com os ossos em Mafra, Ponta Delgada, Amadora e Guiné, em que acredita, que planeia para o futuro, já que se avizinha no horizonte o fim da sua guerra? E ele procura responder, não tem uma crença ideológica firmada, já leu e viu o suficiente para perceber como não tem pés nem cabeça o slogan de que andamos na Guiné há cinco séculos, mas o que seguramente aconteceu naquele seu processo de adultez foi a importância da sua relação com o Cuor, com aquelas gentes com quem manteve uma cativante fidelidade, como lhe tocou até à medula a solidariedade dos seus homens. Ele não sabe e não iria escrever a Annette o que não antevia, é como aquela experiência lhe calou fundo e indeclinavelmente o preparou para todas as empreitadas da vida que se seguiram.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (72): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon adorée, mon compagnon de vie, des projets, réseau de tous mes amours, envio-te esta carta para a Rua do Eclipse, enquanto tu estás aqui comigo nestas férias de verão. Jules parte amanhã para Bruxelas, tem andado radiante, mas sinto-lhe a tristeza do futuro improvável, parece que nenhum emprego lhe acerta e os desastres afetivos azedaram-lhe a existência, ele anda contente e não esconde, mas vai regressar ao centro dos problemas, fizeste bem em querer passar hoje o dia com ele, apanharam aqui à porta o comboio para Sintra, prometi preparar-vos um jantar de estalo. E procuro responder a uma questão que me puseste em dado momento, tudo a propósito das peripécias vividas no hospital militar de Bissau: que exame de consciência eu fazia da minha vida nos últimos anos? Deixo-te este breve esquema, juro-te perante Deus que era naquele tempo em que me preparava para deixar Bissau e regressar a Bambadinca, o modo como eu avaliava aqueles anos de juventude. Negligenciara os estudos em benefício de prazeres culturais que o dinheiro me dava no meu primeiro emprego, trabalhava em mecanografia e sentia-me finalmente feliz por não vestir a roupa dos outros, não ir a concertos só porque recebia borlas, o que sabia de África era através das narrativas da minha avó e da minha mãe, uma Angola idílica onde ambas tinham perdido os recursos no rescaldo da crise de 1929 que foi evidente em 1931, com a queda abissal do preço das matérias-primas. Não tinha crença ideológica clara, através do chamado catolicismo de vanguarda, assumia que o colonialismo tinha os seus dias contados, já havia papéis clandestinos suficientes que permitiam ver, sobretudo a partir de 1967, que os movimentos nacionalistas contavam com sólidos apoios e nós vivíamos com recursos financeiros finitos, como se comprovou, e isto sem já falar nos acontecimentos internacionais de 1973, quando eclodiu a crise petrolífera que deixou o Estado Novo com uma inflação a dois dígitos.
Houve descobertas importantes na minha vida militar, confiar na minha resistência física, ter percebido que havia para ali uma energia suficiente para longas caminhadas, para longas adversidades; a revelação de que possuía dotes de liderança; o ter sabido resistir aos dislates de um comandante de companhia que assegurava que um preto aguentava com trezentas agulhas espetadas no corpo e que confessaria tudo com umas boas palmatoadas com sola de pneu, o castigo foi ter vindo para a Guiné em rendição individual e comandar tropa africana; o Cuor deslumbrou-me, não pelo gosto dos tiroteios ou da caçada humana, era a inserção numa comunidade que me parecia milenária, poder trazer aportes de respeito e consideração, levar os doentes ao médico, encontrar professores para ensinar crianças e adultos, comunicar com diversas culturas a que eu era totalmente alheio, combater a seu lado, dar o exemplo de ir sempre à frente, incutindo-lhes mentalidade ofensiva; e ter ganho aquele desafio de Missirá em cinzas parcialmente reconstruída em tempo recorde; ter conseguido algum equilíbrio num diálogo interior entre o que era a minha cultura, simbolizada por aqueles caixotes de livros e discos, o ter mantido a curiosidade na leitura, com a abertura de espírito para procurar assimilar as riquezas culturais guineenses, e daí o gosto em procurar compreender a história daqueles povos, o que rapidamente me levou a perceber a gravosa mentira da propaganda que dizia que estávamos na Guiné há cinco séculos, o que gradualmente veio a acentuar a perceção de que os homens do mato lutavam pela posse da sua própria terra, que a nossa presença pouco mais dera que negócios e alguns quadros heroicos de tentativa de missionação. É nesse estado de espírito, meu adorado amor, que me leva a circular solitário por aquelas artérias de Bissau, a refugiar-me na messe de oficiais para confirmar a completa vulgaridade daquela retaguarda; e a experiência hospitalar abria-me novas pistas de observação, aqueles mutilados que se comparavam, como a guerra abre brechas na saúde mental; o meu corpo melhorava com aquelas injeções e comprimidos, a despeito da gritaria entre o capitão Oliveira e o furriel Alves. Circulava por Bissau, com um pé lá e outro em Bambadinca, encontrei-me com o meu querido amigo Teixeira, o cabo das transmissões, procurou-me para se despedir e fez-me pensar que a tropa que recebi em agosto de 1968 mudara literalmente de composição; mesmo do hospital militar enviara aerogramas aos meus sargentos, para pedir novas, as respostas não deixavam de inquietar: o pelotão fracionado em secções, nas mais diversas atividades; a descoberta de mais canoas em Samba Silate, prova irrefutável de que os guerrilheiros vindos do Cuor não desistiam de vir a Bambadinca abastecer-se ou informar-se ou subverter; nos Nhabijões, num patrulhamento noturno, houve recontro com uma coluna de abastecimento, um morto e três feridos, era gente do Corubal; o tratamento na Neuropsiquiatria parecia que me revigorara, fizera diferentes consultas médicas aos dentes e aos ouvidos e aos olhos, que não me preocupasse; e o médico deu-me alta e a meio de uma tarde de Bissalanca parto para Bafatá, consigo transporte para Bambadinca, venho encontrar tudo em confusão, há muita euforia, prevê-se para breve transferência de batalhões, ainda pergunto como vai a guerra, com alguma displicência respondem-me que há flagelações em Taibatá, Xime e Enxalé, e alguém se me apreça a informar que chegou o gerador elétrico para Missirá, bem contente fiquei depois de tanto porfiada diligência. A notícia daquele gerador, minha cronista do meu coração, é mais uma ponte entre o passado e o meu futuro na guerra e o outro futuro que anda tão confuso na minha cabeça, a não ser a crescente convicção de que me vou atirar aos estudos, sonho ser professor.
Consigo reunir o pelotão inteiro, converso com o substituto do Teixeira, chama-se Valente, um gordinho russo e bonacheirão, anunciam-se novas partidas, a do Domingos Silva pesa-me muito, foi meu intérprete em situações muito ingratas, deu-me muita dor de cabeça com as suas bebedeiras numa comunidade islâmica; alguém me informa, são notícias que se apreendem no mercado de Bambadinca, por isso é que a gente conversa com quem vem de fora, é assim que se processa no universo as sociedades que primam pela narrativa oral, que há muita desmoralização nas milícias de Amedalai, Demba Taco e Taibatá, corre a notícia de que vão encerrar a tabanca em autodefesa de Moricanhe, é o prenúncio de novas desgraças.
E é quando me dirijo para a messe de oficiais, está na hora de almoço, que o major das operações, num corredor pejado de caixões espalhados daquela gente impaciente que aguarda os substitutos e anuncia que esta tarde iremos conversar sobre uma operação que eu irei comandar, a Beringela Doce. Caio em mim, a guerra não faz intervalos, eu que me recorde que ainda tenho as colunas ao Xitole, as emboscadas nas imediações, escoltas, patrulhamentos noturnos, idas às tabancas na periferia, as obras permanentes nos Nhabijões onde é preciso montar segurança, o suplício na ponte de Undunduma. Houve já quem me dissesse que o PAIGC anda calmo, talvez porque se avizinhe a época das chuvas, são umas flagelações rápidas, algumas minas, ataques mitigados em tabancas em autodefesa, pouco mais. Pelo Pires fico a saber que afinal de contas a nossa tropa foi envolvida numa operação chamada Gato Irritado, coisa insignificante.
Minha adorada Annette, eu vinha recomposto graças às injeções e aos comprimidos de Tryptizol 25, o meu pelotão mudou de forma e figura, passam a toda a hora viaturas da Tecnil, são as obras do alcatroamento da estrada entre Xime e Bambadinca, naquele momento ainda não sei que vou ter cerca de um mês pela frente a sair de madrugada e aguentar a pé firme o dia todo, dentro do mato, a vigiar estes trabalhos. As surpresas não param: na manhã seguinte, recebo uma comitiva liderada pelo régulo Malan Soncó e os chefes de tabanca de Missirá e Finete, vêm-me convidar a assistir em Missirá à inauguração do gerador elétrico. Inexplicavelmente, digo que sim. Dois dias depois, num sintex, acompanhando o comandante da CCS, o capitão Figueiras, vou despedir-me do Cuor muito amado, da Missirá que guardo no olhar, sempre intocada, como a amei, ao longo de 17 meses.
Eram estes os apontamentos que te quis enviar para conheceres o meu estado de espírito, entendi que não devia carrear esta informação para as nossas férias. A despeito de tudo o que aqui se escreve, toma estas notas como uma carta, beijo-te muito, com uma ternura e uma admiração sem limites, quantas vezes me pergunto como foi possível que no teu gesto tão dedicado de cronista me tomasses por inteiro esta dádiva de amor, que é esperança dos nossos tempos futuros, bisous, Paulo.
(continua)
Avenida Marginal com o cais do Pidjiquiti
Bilhete-postal que todos nós enviávamos às famílias
Bissau Velho
Pormenor do monumento “O Esforço da Raça” na Praça dos Heróis Nacionais
Praça Honório Barreto, Bissau
____________Nota do editor
Último poste da série de 24 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22569: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória
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