quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22580: Historiografia da presença portuguesa em África (282): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Reduziu-se ao máximo as descrições elencadas pelo Tenente-Coronel Miguéis acerca das operações de pacificação entre 1834 a 1924, no essencial é matéria que interessa a estudiosos, no geral permite picar com uma grande angular da fragilidade da presença portuguesa e há que dizer claramente que continua a pôr-se muita emoção e a mostrar muita indignação por alegadas atropelos ao prestigiado Capitão Teixeira Pinto, sem nunca ter em atenção que Abdul Indjai praticou , e há relatos a confirmar essas depredações, saques, sequestros, roubos, assassínios, durante a campanha de pacificação. Acontece que os mercadores portugueses e estrangeiros que viviam ao tempo na ilha de Bissau queixaram-se ao governador que quem era comandante da campanha era o oficial português. Abdul fica como régulo do Oio (manda a verdade que se diga que ele era régulo do Oio e do Cuor), e tudo leva a crer que atuava praticando barbaridades. Que era ambicioso, basta ler esta peça histórica do seu aprisionamento, talvez o documento mais detalhado que conta a história do seu afastamento da Guiné.

Um abraço do
Mário


A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (3)

Mário Beja Santos

Como é sabido, a Biblioteca da Sociedade de Geografia possui uma secção de Reservados onde tenho tido a felicidade de encontrar algumas peças preciosas. Houve agora oportunidade de regressar a este filão de manuscritos, e deparou-se-me um dossiê intitulado Res 1 – Pasta E-21, que se intitula Apontamentos Relativos às Campanhas para a Pacificação da Guiné de 1834 a 1924, compilados pelo Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis, Bolama, com data de 6 de agosto de 1925, Repartição Militar da Colónia da Guiné, 1.ª Secção. É então Governador Velez Caroço.

O Tenente-Coronel Miguéis dá-nos porventura o relato mais detalhado sobre a prisão de Abdul Indjai, sugere que houve para ali uma tremenda cabala, intrigas sem fim que caíram sobre Teixeira Pinto, acusado de muita coisa. Quem toma posições pró e contra Teixeira Pinto e as tropelias praticadas por Abdul Indjai esquece-se de que Abdul Indjai tudo pilhava, consentia em todos os saques, sequestros, roubos, era a sua forma de manter os seus homens de mão satisfeitos. Só que estes saques, sequestros, roubos abrangiam direta e indiretamente comerciantes que denunciaram a situação através da Liga Guineense, o governo pôs-lhe termo, mas os ressentimentos ficaram, Abdul pôs-se a jeito para o ajuste de contas.
No texto anterior iniciámos a descrição destas operações, continuamos a dar a palavra ao relato do tenente-coronel Miguéis:
“Abdul Indjai tendo tido conhecimento que uma força de 30 soldados tinha saído de Farim acompanhando géneros para o posto de Mansabá, mandou dizer ao comandante do posto que se ele precisava de 500 carregadores lhos forneceria imediatamente.
Como não fosse aceite a oferta, Abdul saiu com uma força armada mas pouco depois foi ter com o comandante do posto de Mansabá pedindo-lhe que deixasse ir um cabo europeu com o seu sobrinho Alburi ao encontro da sua gente para avisar que não atacassem a força do alferes Figueira. Este alferes chegou com a sua força a Mansabá sem ter sido atacado, apesar de ter encontrado no caminho bastantes jauras (homens de guerra armados). Reforçado o destacamento, Abdul tratou de isolar os Oincas do posto, para evitar que o comandante tivesse conhecimento do que fazia a sua gente, mas ele próprio fornecia lenha e água aos nossos soldados.

Em 29, seguiram de Farim para Mansabá 6 carregadores com géneros para a guarnição do posto, indo com eles o indígena Bacar Sedibe que ia ter com um seu irmão, ex-soldado que fazia o serviço de auxiliar.

Em 30, este indígena declarou ao comandante de Farim que tendo pernoitado numa tabanca de Bironca ali compareceram alguns jauras que pretendiam degolá-lo, conseguindo fugir depois de ter levado algumas espadeiradas.

Em 1 de agosto, constou ao Capitão Lima ter havido tiroteio entre a gente de Abdul e as forças de Mansabá. Jancó Dabó com os auxiliares segue em auxílio do posto e ao mesmo tempo segue uma força sobre o comando do Alferes Trindade, com 1 sargento, 3 praças europeias, 25 indígenas e 49 auxiliares. Acompanha esta força o Capitão Lima que ao chegar à povoação de Demba-Só lhe foi entregue por um Oinca uma carta em que se dizia “estamos cercados, temos Alferes Figueira ferido com certa gravidade, dois soldados feridos e um morto”. Chegado próximo de Mansabá pelas três horas, o Capitão Lima ouviu o tiroteio mas não lhe foi possível continuar a marcha porque os auxiliares se recusaram a acompanhar a coluna com receio de que o posto fizesse fogo contra eles.
Às 5-30 pôs-se a coluna em marcha para Mansabá sendo surpreendida por um tiroteio dos jauras que estavam emboscados ao longo da estrada de Lanfarim, cujo ataque foi repelido pela coluna e pelo posto.

Em 2, o Alferes Figueira faleceu pelas 4-30 horas e as colunas ocupando as quatro faces do posto fez fogo sobre os jauras. Dois auxiliares que saíram para buscar água foram feridos e por este motivo os auxiliares Mandingas, Oincas e Grumetes desanimaram. Os jauras atacaram a face leste do posto e pouco depois o Alferes Trindade, tendo derrubado o querentim onde eles se abrigavam, assim como cortado o milho, dirigia um ataque que tinha por objetivo destruir todos os abrigos impelindo os jauras contra a tabanca de guerra de Abdul.
Às 19 horas as povoações estavam em chamas e a coluna aproximava-se da tabanca de Abdul, quando se ouviu vivo tiroteio para os lados de Mansabá-Mansoa. Era o Alferes Alberto Soares que chegava com uma coluna de 277 homens e uma peça de 7 cm.

Na madrugada de 3 fizeram-se alguns tiros de canhão contra a tabanca de Abdul e logo a seguir veem-se duas bandeiras brancas, uma na tabanca de Abdul e outra na morança de Alburi Indjai. Cessado o fogo, dirigiu-se para o posto Alburi Indjai que vinha comunicar que Abdul Indjai se rendia com toda a sua gente que estava dentro da tabanca. Estando já a amarrar fechos de armas para delas fazer entrega. Pouco depois Abdul Indjai era preso.

Em 16 de agosto, a P.P. n.º 343 declara terminadas as operações no Oio, com a derrota das forças e a captura do ex régulo Abdul Indjai, levanta-se o estado de sítio na circunscrição de Farim e regiões dos comandos militares de Bissorã e Balantas. Nesse mesmo dia são extintos os comandos militares de S. Domingos, Papéis, Bissorã e Balantas.

Em 29 de agosto, por P.P. n.º 385 é demitido do posto de tenente das forças de 2.ª linha e de régulo da região do Oio Abdul Indjai. Assina esta portaria o Governador Henrique Alberto de Sousa Guerra. Mais tarde este homem é deportado para Moçambique, tendo ficado em Cabo Verde, onde faleceu.
Deste modo termina a vida do herói que nas campanhas de Bissau, comandando os seus soldados, empregou com excelentes resultados o fogo por descargas, cujos efeitos ele bem conhecia. Durante a rebelião nunca foi visto a comandar um único homem nem tão-pouco a sua gente fazer uso dessa espécie de fogo”
.

Recorda-se ao leitor que o Tenente-Coronel Miguéis procedeu a um levantamento relacionado com as campanhas de pacificação, por determinação do Governador Velez Caroço, é um documento de leitura obrigatória e que encerrará, estou em crer, o relato mais detalhado das operações que levaram à prisão de Abdul Indjai. O mistério das acusações sobre Teixeira Pinto em estreita conexão com as práticas de pirataria atribuídas a Abdul Indjai carece de estudo e estranho é que a historiografia portuguesa não procure uma explicação documentada não só por se tratar do herói da pacificação mas por poder envolver razões fundamentadas por parte de quem foi esbulhado pelos homens de guerra de Abdul Indjai.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22562: Historiografia da presença portuguesa em África (281): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2) (Mário Beja Santos)

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