sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22569: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
A relação de Jules com Noémie é muito estreita, Jules veio bastante deprimido até às suas férias em Lisboa, a visita foi uma verdadeira lavagem da alma e ele descreve à irmã aqueles dias prodigiosos de uma cidade com mais de oito séculos de portugalidade, com os seus bairros típicos a caminho da gentrificação, a preocupação de Paulo de lhe mostrar a cidade e os miradouros, gostou dos museus, das igrejas, adorou os comes e bebes, enterneceu-se com aquela casa pejada de quadros de todos os tamanhos, fotografias espalhadas por todas as divisões, encantou-se com a varanda virada para quintais onde primam flores e árvores de fruto, deliciou-se com os serões, Annette nunca perde oportunidade, é uma cronista assumida, de continuar a escrever os relatos da comissão do Paulo, às vezes há um olhar lacrimejante do protagonista, noutras vezes Annette e Paulo dão gargalhadas, Jules a tudo assiste, sente a ternura que atravessa a vida daquele casal, sente-se parte integrada na felicidade da mãe, como conta a irmã. Esqueceu-se de lhe dizer que foi a primeira viagem, ele ainda não sabe mas regressará muito mais vezes a Lisboa, sempre feliz pelos doces regressos e por ver sempre a sua mãe tão feliz. Também se esqueceu de dizer que tinha prometida uma visita à Feira da Ladra, que ainda não aconteceu.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Segunda e última carta de Jules Cantinaux para a mana Noé:

Chère Noé, muito provavelmente irás ler as minhas notícias quando eu já estiver na Bélgica, acordei com uma empresa de La Louvière, três semanas de trabalho em artes gráficas, no entretanto irei estabelecer contato telefónico contigo. No seguimento do que te escrevi, todos aqueles sete dias da minha estadia foram ocupados com os programas que fiz com o Paulo e a mamã. Ele ofereceu-me um livrinho chamando-lhe raridade para bibliófilos, é um livro sobre Lisboa com data de 1940, o autor do texto chama-se Norberto de Araújo e as ilustrações são de Maria Keil, esta conheci-lhe a azulejaria quando andámos no Metropolitano. Paulo ofereceu-me a edição em francês, além de um guia moderno, tem um conjunto de propostas de passeios, como é evidente não percorremos tudo, como te disse na carta anterior, visitei a Sé Catedral, o castelo de S. Jorge, a igreja e o Largo do Menino de Deus, a Graça, uma parte da Mouraria, estivemos num largo muito amplo chamado Campo dos Mártires da Pátria; como também terás visto na carta anterior, demos uma volta pela Madragoa, estivemos no Museu Nacional de Arte Antiga e fomos ao miradouro onde se vê o porto de Lisboa e a outra margem do Tejo. No dia seguinte percorremos Estoril e Cascais, era inevitável passearmos pela zona de Belém, vi no Mosteiro dos Jerónimos um claustro soberbo, passeámos à beira do Tejo e é impressionante o panorama que se avista da Torre de Belém.

Paulo insistia que devíamos voltar ao casco histórico e por isso saímos de manhã cedo e viemos até ao Terreiro do Paço, é um bom hectare de terreno, cercado de construções relativamente homogéneas, o Paulo referiu-me que estiveram ali muitos ministérios e seguimos por uma rua chamada Rua da Alfândega, ele queria mostrar-nos outra preciosidade do que aqui se chama estilo manuelino, um tardo-gótico do reinado de D. Manuel I. Ainda se pensou em voltar a Alfama, onde estivemos no primeiro dia, mas o Paulo queria mostrar outro lado do casco histórico, o Chiado, já estivera no café A Brasileira, agora foi a vez de irmos ao Largo do Carmo, voltámos a subir e entrámos numa igreja de nome São Roque, nunca vira esplendor igual, a mamã estava boquiaberta diante de uma capela chamada de S. João Baptista cujos materiais vieram diretamente de Roma. E seguimos para mais um miradouro, São Pedro de Alcântara, outro panorama esmagador sobre a cidade, atravessámos outro bairro antigo, de nome Bairro Alto, mas antes estivemos num local chamado Solar do Vinho do Porto a degustar esta saborosa bebida, sentia-me profundamente feliz não só pelo que estava a ver e que era uma inteira surpresa mas por sentir a alegria esfusiante da mamã, o seu olhar carinhoso para este seu bem amado português.

Lembro-me, querida Noé, de há uns bons anos atrás termos conversado sobre a solidão em que vivia a mamã, sempre nos pareceu que aquela maratona de viagens como intérprete camuflava a solidão, do que me foi dado entender depois da separação ela parecia resignada talvez ao papel de avó ou de se relacionar com mulheres da sua idade a caminho da velhice. Posso constatar a toda a hora que ela e o Paulo se entendem admiravelmente, como adiante te contarei como a história em que os dois gargalhavam sobre um episódio passado num hospital.

Os últimos dias foram para eu conhecer a Lisboa moderna. O Paulo gosta muito de Arte Deco e levou-me a uma igreja chamada de Nossa Senhora de Fátima, tu não podes imaginar o esplendor dos vitrais, senti-me esmagado num espaço destinado a batismos, eu conhecera este artista, de nome Almada Negreiros, quando num passeio na zona portuária o Paulo nos levou à Gare de Alcântara, fiquei siderado com aqueles painéis. Estes últimos dias já andámos sempre no carro do Paulo, ele queria mostrar-nos a Lisboa Oriental e o que se projetara construir com a exposição de 1998 que deu origem a uma zona moderna chamada Parque das Nações. Novo passeio à beira do Tejo, surpreende a estrutura da ponte que construíram de nome Vasco da Gama, ajardinaram espaços e temos ali uma zona de lazer magnífica. Visitámos bairros antigos da Lisboa Oriental, muito decadentes, há sinais de que estão a surgir novas construções, mas a um ritmo lento. Passámos por um local chamado Xabregas e o Paulo disse-me que no próximo passeio irei visitar um museu só com azulejos, e que depois desta visita perceberei porque é que Portugal é a potência nº 1 à escala mundial do azulejo.

Tenho muito mais coisas para te contar, saíamos sempre de manhã e regressávamos ao entardecer, o Paulo insistia em confecionar as refeições para nós, num espaço agradável na varanda com belos quintais. E sempre bem-dispostos íamos conversar para a sala, acompanhados de infusões de gengibre ou menta, a mamã muito disciplinadamente com o dossiê da tal guerra da Guiné nas mãos, dele extrai uma agenda onde toma freneticamente nota das conversas havidas com o Paulo. Creio que te contei que ele viera a Bissau para várias consultas mas impunha-se um tratamento mais cuidado para repor os sonos, meteram-no num serviço de Neuropsiquiatria numa divisão com três camas, os seus dois vizinhos eram pessoas altamente perturbadas, felizmente que a carga de medicamentos era de tal modo forte que passava uma boa parte do dia a dormir, havia a rotina dos preceitos higiénicos e das refeições, uma hora de visitas por todo o hospital, onde ele descobriu que os militares feridos se mediam com os danos corporais dos outros, uma vez viu alguém quase feliz por só ter perdido uma perna, foi neste ambiente de permanente discussão entre um capitão e furriel, tudo numa divisão em que as paredes tinham a brancura da cal, havendo uma janela ao alto com um discreto gradeamento, camas com colchas brancas destoando de um chão de pedra marmoreado que se irá passar um episódio em que me vi também a gargalhar com a mamã e com o Paulo, tratava-se da visita de senhoras benemerentes, Paulo falou na Cruz Vermelha e no Movimento Nacional Feminino, primeiro entraram as senhoras da Cruz Vermelha, traziam aerogramas, revistas um tanto puídas, os doentes tinham recebido instruções rigorosas para ter as mãos esticadas fora dos lençóis e da coberta e que não se atrevessem a qualquer dito inconveniente a tais senhoras de alto coturno.

Tudo parecia que ia correr bem, com as senhoras da Cruz Vermelha comportaram-se como três surdos-mudos, as senhoras devem ter pensado que eram doentes muito mortificados, e também com uma expressão mortificada saíram. Entraram as senhoras do Movimento Nacional Feminino, quem capitaneava a delegação era a mulher do comandante militar, mostrou-se afável, pronta a contatar as famílias, parecia a provedora do doente. Paulo e o furriel que escapara fisicamente incólume de um sistema de minas antipessoal olhavam seraficamente para o teto, mas o capitão parece ter perdido a tramontana, saiu da cama em pijama e gritou para as senhoras que estava ali como um prisioneiro de guerra, houvera uma cabala sinistra para o remover do seu posto de oficial de informações, que as senhoras o ajudassem prontamente, aqueles dois companheiros de quarto eram totalmente indesejáveis, o tal furriel não passava de uma máquina falante e apontando para o Paulo, em tom desdenhoso, disse que aquele menino de coro, com este arzinho de quem não parte um prato, não passava de uma fera adormecida, um hediondo criminoso, bastava saber que comandava pretos, deve ter sido escolhido pelos seus maus fígados, e gritava para as senhoras “tirem-me daqui, tirem-me daqui!”, as senhoras recuaram e fugiram, o zelador, o 1º cabo Morais discursou-lhes à bruta, iam ter todos um castigo. Querida Noé, ríamos os três, o Paulo era quem ria mais.


A mamã perguntou ao Paulo o que se seguia depois deste episódio do tratamento em Neuropsiquiatria, dois dias depois daquele despautério com as senhoras benemerentes o psiquiatra deu-lhe alta, levava umas mezinhas para conforto. Juntou os trastes, foi buscar a guia de marcha, ainda andou dois dias por Bissau à deriva antes de um avião o deixar em Bafatá. Percorre a cidade agradado por se sentir só, na messe de oficiais come e, em vez de ir diretamente para o grande dormitório que dá pelo nome de Vaticano III, passeia-se, escreve, regressou o gosto pelas leituras, voltou ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e comprou livros. Parte ao princípio de uma tarde de Bissalanca, durante a manhã fez compras para os seus bravos soldados. Durante o voo faz contas ao trabalho que o espera, recebera vários aerogramas dos seus colaboradores Ocante e Cascalheira, anda tudo numa rotina. Sente que a sua comissão se encaminha para o fim, já se deu a mudança de batalhão, sabe pois que irá encontrar novas caras. Mas grandes surpresas ainda o esperam, até que nos primeiros dias de agosto é conduzido ao porto do Xime, metido numa LDG, numa estranha viagem em estado de espírito contraditório, dilacerado pelo apartamento e a sonhar pelos desafios que o esperam. A mamã tomou nota de tudo. E momentos houve em que eu sentia que também fazia parte daquele romance da vida daquele casal que me parecia o mais surpreendente ao cimo da terra. O resto contar-te-ei de viva voz, irei de La Louvière a Uccle quando me convidares, minha querida irmã. Bisous, comme toujours, bien à toi, Jules.

(continua)

O BNU chegou a Bissau e instalou-se na Avenida da República, foi conhecendo melhorias, depois da independência foi ministério
Muralha da fortaleza da Amura noutros tempos
Portal manuelino da Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, Rua da Alfândega, Lisboa
Igreja de São Roque, a sumptuosidade entre o Chiado e São Pedro de Alcântara
Painéis de Almada Negreiros na Gare de Alcântara
Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos
Rua da Madragoa
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22550: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (70): A funda que arremessa para o fundo da memória

5 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

1 - O Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos encolheu e ficou igual à rua da Madragoa? Não fica longe da Madragoa, mas tem uma vista "um bocadinho" mais ampla do que a viela mostrada...

2 - O Acordo Ortográfico é apenas e só ortográfico, isto é, não altera a pronúncia das palavras, nem tem que alterar. Ora em Portugal a letra C da palavra contacto é pronunciada; não é uma consoante muda. Logo, segundo o Acordo Ortográfico, abreviadamente chamado AO-90, a palavra contacto não se altera e deve escrever-se contacto com C. O mesmo se aplica às palavras contactar, facto, etc. O Acordo Ortográfico não nos obriga a falar "brasileiro" nem tinha que obrigar. Era só o que faltava!

Valdemar Silva disse...

Julgo ter havido engano, ou melhor dois enganos.
O primeiro é faltar a fotografia da Rocha do Conde d'Óbidos, substituída pela repetição da "Rua da Madragoa", o segundo engano é não existir a Rua da Madragoa, e muito menos esta que vemos a Rua Vicente Borga ir dar à Rocha.
A Madragoa é uma zona da Lisboa ocidental composta por várias ruas mas nenhuma se chama Madragoa. A antiga Rua das Madres de Goa, depois baptizada em Rua da Madragoa durou pouco tempo e passou para o nome do padre Vicente Borga (Bo..qualquer coisa em alemão) por ter residência no local.
Mas a Madragoa que eu conheci foi a dos bailaricos/tertúlias do "Convento da Madragoa" mas
foi sempre à noite e nem sei ao certo onde fica.

Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Eu estava completamente convencido de que na Madragoa existia uma "Rua da Madragoa". Fui procurá-la no Google Maps e encontrei uma "Rua da Madragoa", sim, mas em Ovar e outra em Cortegaça, alguns quilómetros a norte de Ovar. Então fez-se luz no meu espírito: a Madragoa era o bairro das varinas, assim chamadas por serem oriundas de Ovar e região envolvente. Também era o bairro dos ardinas, quando eles existiam e vendiam jornais pelas ruas de Lisboa.

Mas a Madragoa nem sempre se chamou Madragoa, qualquer que seja a origem deste topónimo. Antes de ser Madragoa, começou por se chamar Mocambo. E antes de ser o bairro das varinas, começou por ser o bairro dos negros de Lisboa. Nesta página pode ler-se uma história da Madragoa (e também do Bairro Alto) e neste site pode consultar-se e descarregar-se um livro online sobre a presença africana em Portugal, onde o bairro do Mocambo também é referido.

Valdemar Silva disse...

Sobre o topónimo "Madragoa" não há uma explicação/origem certa.
Norberto Araújo, conceituado olisiponense, é de opinião de Madragoa ser um vocábulo de corruptela.
Nesta zona de Lisboa, e após o terramoto de 1755 que muito danificou o Mocambo, local de grande concentração de negros fora das portas da cidade, edificaram-se Conventos e Hospícios com novas construções dos danificados e para valer aos muitos feridos.
O Convento da Trinas, das Bernardas e doutras Madres, deu lugar à Rua das Trinas, Rua das Madres e por causa do Hospício das Senhoras da Índia, as "Madres de Goa", a Rua das Madres de Goa, mais tarde por corruptela fonética deu Madragoa e Rua da Madragoa, mas por lá ter nascido um filho de um ilustre alemão a partir de 1800 e qualquer coisa passou a chamar-se Rua Vicente Borga, que é a que existe hoje e, por isso, não existir nenhuma Rua da Madragoa, agora.
Quanto à Rua da Madragoa, em Cortegaça-Ovar, assim se chama por há cerca de 30 anos desfilar por lá a "Marcha da Madragoa" e a grande ligação daquelas gentes à Madragoa lisboeta.

Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Esqueci-me
Também aparece nos dicionários 'madrigoa' ou 'madragoa' como sendo uma mulher excêntrica, ordinária e desalinhada.

Valdemar Queiroz