sábado, 9 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22613: Os nossos seres, saberes e lazeres (471): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19): Das obras emblemáticas do Museu do Caramulo aos Painéis de Nuno Gonçalves (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Visitar o Museu Nacional de Arte Antiga é uma itinerância clássica, um dever para com as Belas-Artes que nos modelam e remodelam as formas de o viver e de o sentir. O pretexto era a presença de algumas obras-primas do Museu do Caramulo, que eram aqui expostas enquanto lá se faziam obras. Havia que decidir, logo de seguida, se se ia visitar a exposição de D. Manuel I ou se ascendia aos diferentes andares para se saudar obras amigas de sempre, preferiu-se a segunda alternativa, a compensação é sempre grande, faltou ir cumprimentar a Custódia de Belém, por ironia está agora na exposição do Venturoso, mais uma razão para aqui voltar em breve. E aqui se faz um pequeno relato das alegrias vividas, até se conversou com peritas que restauram os Painéis de Nuno Gonçalves que me ajudaram a sair conformado com as mesmas dúvidas com que aqui entrei, e seguramente levarei para a tumba.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19):
Das obras emblemáticas do Museu do Caramulo aos Painéis de Nuno Gonçalves


Mário Beja Santos

Para mim é sempre o Museu das Janelas Verdes, os pretextos das visitas eram sempre, para a minha mãe, os presépios de Machado de Castro, a Baixela Germain, a Custódia de Belém, a arte Namban, o Boch das tentações e o prato de substância, os Painéis de Nuno Gonçalves. Sabe-se lá se não houve um processo subliminar nestas sucessivas incursões, em que ao longo de décadas fui vendo os melhoramentos deste precioso museu para a minha atração permanente pelas Belas-Artes. Tinha lido a notícia de que o Museu do Caramulo enviara para os Paços Perdidos do Museu Nacional de Arte Antiga um conjunto de peças de alto quilate, não resisti, juntei dois em um, primeiro matei saudades desta coleção organizada por Abel de Lacerda e depois segui para o interior do museu. Antes li o seguinte texto:
“Aproveitando o encerramento do Museu do Caramulo para a requalificação dos espaços museográficos, foi feita uma seleção das obras de arte mais emblemáticas que se conservam naquele museu, trazendo-as à fruição do público lisboeta. Procura-se assim dar a conhecer a um maior número de pessoas estas preciosidades, desconhecidas para muitos.
Ao primeiro Picasso que se expôs em Portugal, juntam-se Amadeo de Souza-Cardoso, Maria Helena Vieira da Silva e Eduardo Viana, mas também belos exemplares de pintura antiga, destacando-se obras de autores como Grão Vasco, Isembrandt, Quentin Metsys e Frei Carlos. Acrescenta-se a esta seleção objetos de artes decorativas, como uma das tapeçarias da série conhecida como “à maneira de Portugal e da Índia”, raras peças de porcelana chinesa e obras de arte Namban. Este conjunto de peças é enriquecido pelas criações de jovens artistas recentemente incorporadas nas suas coleções. Incontornáveis, quando falamos de Museu do Caramulo, são os automóveis. A coleção, única em Portugal, será invocada por um exemplar, de pequenas dimensões, de um Bugatti, um dos mais belos clássicos da industrial automobilística mundial”
.

Fui a correr, a data de encerramento prevista era 26 de setembro. Se gostassem muito, ainda teria tempo de voltar. Gostei o suficiente para voltar, deixo-vos aqui algumas recordações.

São obras de tema religioso de insuperável qualidade, foi muito bom que tivessem vindo até Lisboa, nesta casa também há obras de Quentin Metsys, Grão Vasco ou Frei Carlos, nada como alargar horizontes, comparando outros discursos destes génios da pintura.
Abel de Lacerda não era peco a pedir, escrevia aos artistas e muitos acediam a ofertar as suas obras para o Museu do Caramulo. Este magnífico quadro é de Raoul Dufy, são as cores do mestre, as suas formas ingénuas, aquele traço peculiar que revela o primado da simplicidade, nada se esconde, não há truques académicos, todo o espaço é compreensível, obriga a olhar em todas as direções e o resultado é altamente compensador, Dufy devia ser um homem feliz ou então aparentava muito bem.
É um belo Souza-Cardoso, regista a sua marca de água a que não faltam reminiscências do cubismo e do surrealismo, sobretudo é uma imagem do seu Portugal, das suas estadias em Manhufe, daquele mundo rural à volta do Marão, ele regressa ao país quando começou a I Guerra Mundial, morrerá jovem devido à gripe espanhola, mas esta fase de labor em Portugal é um legado formidável de quem, para além de génio vanguardista, tinha vincado o seu olhar camponês.
E este quadro de Picasso tem história, na sala projetava-se um documentário da RTP, este grande senhor da pintura universal a produzir a obra, causa calafrios como se pode ter assim o talento à flor da pele.

Vista a exposição, prossegue a veneração pelos grandes mestres, de novo Quentin Metsys, confesso que comecei a interessar-me por este grande nome da pintura graças ao Professor Luís Reis Santos, fui amigo de um dos seus filhos que me levou a Coimbra e o notável investigador lançou-se, horas a fio, a falar-me deste prodigioso flamengo e como algumas das suas obras-primas são hoje privilégio do nosso património. Enquanto contemplava esta Nossa Senhora das Dores, recordei o inesquecível serão, a lição de um investigador sempre de discurso apaixonado. Mal sabia ele que tinha conquistado um prosélito.
Cinjo-me a um pormenor deste quadro de Boch, depois dos Painéis de Nuno Gonçalves deve ser o mais contemplado, por nacionais e estrangeiros, é tudo linguagem codificada, até se tem a ilusão de que Boch era surrealista, ora o que ele nos põe a admirar é uma abordagem da espiritualidade nesse mundo de demónios, mostrengos, abortos da natureza, desastres cósmicos, o que sobreleva é a lição da santidade, aprende a ver para seres melhor, o que parece torcido e retorcido, de pernas para o ar, é lição para a tua vida, parece dizer este mago que nunca nos cansa o olhar.
E que dizer desta matéria bruta de onde Rodin vai esculpir a formosura, pondo em profundo contraste a rudeza da pedra não trabalhada onde emerge o prodígio das formas, uma sensualidade quase irrestrita, a beleza em repouso?
Encaminho-me para os Painéis de Nuno Gonçalves que sei estarem a ser restaurados. Desde que a museografia deste andar ganhou estas formas, todo este espaço amplo aparece bem ocupado por imagens que noutro ordenamento seguramente não nos chamariam tanto a atenção. É uma mostra assombrosa de escultura onde o tema religioso é primordial, são os chamamentos do divino que parecem sair do silêncio, é um retorno à Igreja das catedrais, destes seres exemplares que ocupavam a crença dos homens como incentivos à perfeição, à generosidade, ao amor pelos outros. Este esplendor museográfico tenho-o como inultrapassável, qualquer grande museu do mundo acolheria estas soluções de percorrer em galeria a lição dos santos e a convocatória da nossa vida para alcançar o paraíso.
O que aconteceu foi o seguinte, a idade aconselhou que esticasse as pernas, havia mobiliário para contemplar Nuno Gonçalves em trabalhos de restauro, eis que se abre uma porta de onde saem duas senhoras, provavelmente peritas naqueles labores do retoque e requalificação, não me faltou pudor para lhes ir pondo perguntas, foram muitíssimo gentis e todas as dúvidas que eu tinha, como eu esperava, ficaram sem resposta: de onde vêm os painéis, quem é o seu autor, aonde e como estavam expostos, o que representam. Agradeci e fiquei especado, não há nada na arte portuguesa que supere esta emoção de ver tanta gente representada quando os outros génios contemporâneos faziam retratos, punham Cristo na Cruz ou mostravam caldeirões do inferno, aqui está gente que me fixa no olhar e de frente, parece uma amostra de uma nação em marcha, talvez seja devaneio meu, mas que saio daqui orgulhoso desta mostra do ser humano, é a minha clamorosa verdade.
São só lembranças da arte Nanbam e do muito fascínio que este Oriente nos incutiu, até aos dias de hoje. Não esqueço uma exposição que aqui vi de ourivesaria de Goa, coisas que um senhor guardou metodicamente e mandou para o Banco de Portugal, quando se deu a queda da Índia. São objetos que assombram, são obras que parecem ter sido concebidas, estas que aqui vos mostro, para nos fazer sonhar ou talvez para também mostrar que somos desinibidos na comunicação e talvez por isso mesmo continuamos a peregrinar por Franças e Araganças, e aí somos respeitados. E chega de conversa, não há nada como preparar o espírito para rememorar o que se viu e preparar novas andanças.

(continua)
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Nota do editor

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