LIsboa > Benfica > Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella > 27 de novembro de 2008 > O Cristóvão de Aguiar, à esquerda, na na apresentação da nova edição do seu livro Braço Tatuado (2008). Foto: cortesia de Alberto Branquinho (2008)
Capa do romance "Braço Tatuado - Retalhos da Guerra Colonial, 2ª ed Editora: Dom Quixote, Lisboa Colecção: Autores de Língua Portuguesa Ano de edição: 2008- Preço com IVA: 12,00 €
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).
Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).
Estes excertos, que o autor selecionou e cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**). São onze ao todo os postes publicados no blogue, este será o último.
Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
Coimbra, 18 de Maio de 1968
Não merecia tanto. Há mais de um ano que regressei da guerra e não há maneira de me sentir inteiro. Ando por aí, caindo aos bocados, vomitando pelas ruas, agarrado às grades de ferro de certos muros, cheio de pânico no futuro, que o presente, estou-o desperdiçando, por isso me agarro doentiamente ao passado, que bem sei que nunca foi um paraíso e a prova visível sou eu próprio.
Não merecia tanto. Há mais de um ano que regressei da guerra e não há maneira de me sentir inteiro. Ando por aí, caindo aos bocados, vomitando pelas ruas, agarrado às grades de ferro de certos muros, cheio de pânico no futuro, que o presente, estou-o desperdiçando, por isso me agarro doentiamente ao passado, que bem sei que nunca foi um paraíso e a prova visível sou eu próprio.
As dores de cabeça são por vezes terríveis e prolongam-se por mais de um dia. Dizem-me os médicos que tenho de ajudar-me, caso contrário a vida deixa de me ter sentido. Já deixou. Pelo menos em certas ocasiões, que se estão multiplicando e tornando cada vez mais frequentes.
Tenho feito exames e passado com classificações muito razoáveis, até fiz mais do que eu próprio esperava, talvez por pressentir que ninguém acreditava nas minhas possibilidades. Faltam-me apenas quatro cadeiras, três das quais de envergadura, para concluir o plano de estudos do meu curso. Por este andar ainda me formo em menos de um ano. Bem entendido que pago alto preço por cada disciplina que arrecado. Sempre que faço um exame, fico uns dias acrescentados de cama, desfalecido, pele e osso, o cérebro vazio, tentando reconstruir-me para enfrentar outro [...].
Tomar, 17 de Dezembro de 1968
Vim esperar meu irmão Artur. Chegou hoje de Moçambique. Quando me abraçou, disse-me à queima-roupa que eu parecia um esqueleto ambulante. Respondi-lhe que era do estudo intenso a que me tinha submetido, já que me estava preparando para concluir o curso dentro de pouco tempo. Menti-lhe. Nunca o meu estudo teve uma intensidade por aí além. E nunca a teve, não porque não desejasse, mas porque nunca tive tempo. O que me sobra, depois das preocupações que tenho comigo, pouco ou nada representa.
Tomar, 17 de Dezembro de 1968
Vim esperar meu irmão Artur. Chegou hoje de Moçambique. Quando me abraçou, disse-me à queima-roupa que eu parecia um esqueleto ambulante. Respondi-lhe que era do estudo intenso a que me tinha submetido, já que me estava preparando para concluir o curso dentro de pouco tempo. Menti-lhe. Nunca o meu estudo teve uma intensidade por aí além. E nunca a teve, não porque não desejasse, mas porque nunca tive tempo. O que me sobra, depois das preocupações que tenho comigo, pouco ou nada representa.
De oficial de dia ao Regimento de Infantaria 15 estava o capitão da minha Companhia da Guiné, o que não veio connosco por ainda lhe faltar algum tempo para terminar a comissão de serviço. Enquanto meu irmão foi tratar da sua desmobilização, fui para o gabinete do oficial de dia, onde também eu já estivera algumas vezes de serviço, conversar um pouco com o velho capitão. Parecia que estávamos os dois na tropa. Quando o cabo de transmissões lhe veio trazer uma mensagem confidencial vinda do QG, leu e depois passou-ma, para que a lesse também. Tal qual como na Guiné.
Valeu meu irmão, já desmobilizado, ter vindo buscar-me, caso contrário ainda me metia de novo na pele de alferes. Magreza quase igual à que trazia quando desembarquei, tenho-a também agora. De forma que só me faltava a farda. Meu irmão vem tão ansioso por embarcar para a América que me disse que vai já começar quanto antes a tratar dos papéis.
Gerês, 21 de Julho de 1969
Vim para as termas em cata de alívio. Perguntei ao Louzã Henriques se fazia bem em vir. Disse-me que sim, que mal não me faria. Vai sempre ao meu jeito e não sei se isso me faz bem. Estou aqui há mais de uma semana. Saiu o Doutor Quintela e vim eu para o seu lugar. Ficou combinado em Coimbra. Ele costuma dizer que vem limpar a isca. Não me queixo do fígado, mas a função que exerce está alterada. Deve ser dos nervos.
Gerês, 21 de Julho de 1969
Vim para as termas em cata de alívio. Perguntei ao Louzã Henriques se fazia bem em vir. Disse-me que sim, que mal não me faria. Vai sempre ao meu jeito e não sei se isso me faz bem. Estou aqui há mais de uma semana. Saiu o Doutor Quintela e vim eu para o seu lugar. Ficou combinado em Coimbra. Ele costuma dizer que vem limpar a isca. Não me queixo do fígado, mas a função que exerce está alterada. Deve ser dos nervos.
Estou todo alterado. Enquanto aqui esteve o Doutor Paulo Quintela, enviei-lhe todos os comunicados da crise académica produzidos durante a sua ausência. Sem remetente, que nunca se sabe. Rebentou em 17 de Abril, dia em que se inaugurou o edifício das Matemáticas. Houve greve geral aos exames, que foi um êxito, o que abalou o regime primaveril de Marcelo.
Cumpro à risca a dieta prescrita. Bebo as águas com fé, como a comida sem sal, tomo banho de agulheta. Ao princípio tomava apenas um. Dois dias mais tarde, queixei-me ao médico de que não dormia. Receitou-me mais um banho de agulheta, à tarde. Um de manhã e outro ao fim da tarde. De tal maneira me desceu a tensão arterial, que ando aos tombos e nem sequer consigo ler.
O resto do tempo, que é quase todo, ouço as asneiras dos africanistas em férias. Vieram tratar da figadeira e encontram-se aqui na Pensão da Ponte. E entro em ebulição, porque não posso ficar calado. Suspiram por Salazar e ainda têm esperança num milagre que o reponha no poder. Quem há meses lhe sucedeu na Presidência do Conselho é ainda demasiado liberal para tal gente habituada a lidar com pretos, como se fossem animais de estimação. Bem lhes conheço a crónica.
Mas hoje houve tréguas. O homem poisou na Lua. Vi tudo pela televisão com o coração nas mãos. E à noite fui passear para a ver com outros olhos boiando no mar do céu .
Leiria, 27 de Janeiro de 1970
Fui hoje a mais um consultório médico. Já tenho percorrido vários. O costume. Sou um doente crónico. Tenho bem a quem sair, isto é, a mim mesmo ou ao outro que coabita em mim. Mas, hoje, sentia-me terrivelmente angustiado. Tinha comprado ontem um livro intitulado Viva sem Medo. Li-o de uma assentada, mas fiquei na mesma ou com mais medo ainda.
Leiria, 27 de Janeiro de 1970
Fui hoje a mais um consultório médico. Já tenho percorrido vários. O costume. Sou um doente crónico. Tenho bem a quem sair, isto é, a mim mesmo ou ao outro que coabita em mim. Mas, hoje, sentia-me terrivelmente angustiado. Tinha comprado ontem um livro intitulado Viva sem Medo. Li-o de uma assentada, mas fiquei na mesma ou com mais medo ainda.
E há pouco resolvi ir a um médico para ver como se comportava comigo. Escolhi-o pela tabuleta. E gostei. Fez-me perguntas e mais perguntas sobre o meu passado. Até que eu próprio cheguei à raiz e à razão da minha redobrada angústia neste dia sentida - faz hoje exactamente três anos que cheguei da guerra e o relógio psíquico interior acusou a efeméride e quis condignamente celebrá-la.
[ Revisão / fixação de textos / imagem e legenda / links / notas entre parêntesis rectos / subtítulo, paar efeitos de publicação deste poste: LG ]
__________
Nota do editor:
Último poste da série > 24 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22655: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte X: "apanhado do clima", o fim da comissão e o difícil regresso à vida civil, em Coimbra (Jan - jun 1967)
Último poste da série > 24 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22655: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte X: "apanhado do clima", o fim da comissão e o difícil regresso à vida civil, em Coimbra (Jan - jun 1967)
Postes anteriores:
20 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22646: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VIII: Contuboel , Fajonquito e Sonaco. Gravidez da Otília (Jan - ago 1966)
16 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)
10 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22617: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IV: Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965)
9 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22612: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte III: Mafra, maio-junho de 1964
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22611: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte II: Mafra, fevereiro-março de 1964
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964
4 comentários:
Por pudor e "idelogia defensiva" (, própria dos combatentes), escamoteamos, escondemos, esquecemos ou até negamos o sofrimento psíquico... É muito mais fácil falar do "sofrimento físico"... Até para falar destas "coisas" é preciso ter talento para a escrita... Quem é que a público dizer que precisa ou precisou de "ajuda médica ou psicológica" ?
Alguém no seu perfeito e normal juízo acredita que um homem vindo do mundo duma guerra não transporta durante muito tempo todas as vivências e tormentos da mesma?
A vida de cada um nós, quer o aceitemos ou não, deu uma total cambalhota a partir do momento em que nos obrigaram a participar numa monstruosidade.
Houve heróis que se distinguiram por feitos em combate, durante a luta armada.
Cristóvão Aguiar é um herói que a luta pela vida e pela solidariedade distinguiu.
Mais uma vez!. Bem haja quem possibilitou a leitura da sua forma de enfrentar o mundo.
Eduardo Estrela
1 - Faço minhas as palavras de Eduardo Estrela, que não conheço. Onde é que assino?
2 - Acho estranho que Cristóvão de Aguiar chame "Dr. Quintela", apenas, ao prof. Paulo Quintela, catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e fundador do TEUC, Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. Só posso atribuir este chamamento ao facto de Cristóvão de Aguiar não ter participado na crise académica de 1969, quando Paulo Quintela mereceu o respeito e a admiração dos estudantes da mesma universidade, por ter sido um dos poucos professores que se puseram do seu lado durante a referida crise, a par do professor Orlando de Carvalho e mais dois ou três. O professor Paulo Quintela chegou mesmo a ser alvo de uma ameaça de bomba por parte da PIDE.
3 - A capa do livro "Braço Tatuado" mostra em primeiro plano três ou quatro viaturas, aparentemente paradas no meio de uma picada e com alguns militares a bordo, juntamente com uma bolsa de enfermagem e outra carga diversa: sacos de campanha, colchões de espuma (?), etc. Os militares parecem estar completamente descontraídos, como se o local em que se encontram não lhes oferecesse qualquer perigo. No canto superior direito da imagem, porém, desfocados e em último plano, veem-se alguns militares cuja atitude me suscita uma certa perplexidade. O que estarão aqueles militares ali a fazer, aparentemente virados para o chão da picada? Estarão a tentar levantar ou desativar alguma mina anticarro, ou estarão a fazer outra coisa? É que se estiverem a mexer numa mina, então estão a dar mostras de uma enorme irresponsabilidade. Se por azar a mina explodir, irão não sei quantas pessoas de uma vez só para os anjinhos sem necessidade nenhuma.
Fernando, as entradas do "Diário" nem sempre vêm completas... Estamos a seguir o texto que o autor nos mandou em tempos, em 2008. A seleção que ele fez tem a ver, direta ou indiretamemte, com o tempo de tropa e de guerra e o seu difícil regresso à vida "normal" como civil. Tentou acabar o curso, em Coimbra, com exames também em Lisboa (por eemplo, 28 de fevereiro de 1969). Se cotejarmos o livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp.), verficamos que há uma referência (tardia) à crise académica de abril de 1969, em Coimbra, e ao prof doutor Paulo Quintela, que o Aguiar muito presava:
Essa entrada está completa (Vd. o que publicámos, neste poste, e que corresponde na íntegra à entrada no livro, pp.85/86)... Voltamos a reproduzir a referência à crise académica e à figura (altamente respeitada pelo autor) do Prof Doutor Paulo Quintela destaque a negrito, LG):
(...) "Estou aqui há mais de uma semana. Saiu o Doutor Quintela e vim eu para o seu lugar. Ficou combinado em Coimbra. Ele costuma dizer que vem limpar a isca. Não me queixo do fígado, mas a função que exerce está alterada. Deve ser dos nervos.
"Estou todo alterado. Enquanto aqui esteve o Doutor Paulo Quintela, enviei-lhe todos os comunicados da crise académica produzidos durante a sua ausência. Sem remetente, que nunca se sabe. Rebentou em 17 de Abril, dia em que se inaugurou o edifício das Matemáticas. Houve greve geral aos exames, que foi um êxito, o que abalou o regime primaveril de Marcelo.
(...)"O resto do tempo, que é quase todo, ouço as asneiras dos africanistas em férias. Vieram tratar da figadeira e encontram-se aqui na Pensão da Ponte. E entro em ebulição, porque não posso ficar calado. Suspiram por Salazar e ainda têm esperança num milagre que o reponha no poder. Quem há meses lhe sucedeu na Presidência do Conselho é ainda demasiado liberal para tal gente habituada a lidar com pretos, como se fossem animais de estimação. Bem lhes conheço a crónica." (...)
Não sei se o Cristóvão de Aguiar estava em Coimbra nesse dia, 17 de abril de 1969. Ele andava em exames, alguns tinham que ser feitos em Lisboa, e andava à procura de empregpo como professor para poder sustentar a família, mulher e dois filhos. Seria colocado, nos finais de setembro de 1969 como professor provisório do nono grupo da Escola Industrial e Comercial de Leiria, tendo-se apresentado no dia 1 de outubro. Aí encontrou "nas mesmas condições gente de Coimbra"...
De resto, em 1969, só há meia dúzia de entradas, no seu diário...
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