sábado, 30 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22672: Os nossos seres, saberes e lazeres (474): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (22): Num cemitério de pestíferos há hoje arte sacra de valor universal (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Tinha posto na agenda uma visita ao Museu de Arte Sacra de São Roque depois da última remodelação. Fiquei muito surpreendido e agradado com a nova concepção museológica e museográfica, podemos contemplar as peças com boa iluminação, estão bem identificadas, há uma boa sequência dos núcleos. O acervo é de uma enorme riqueza, possui diversidade de alfaias religiosas, o Núcleo de Arte Oriental é de grande valor e a exibição do tesouro da Capela de São João Baptista ganha em eloquência, é mostrado em todo o seu esplendor. Recomenda-se que se complemente a visita indo à Igreja, um templo sumptuoso por dentro e de uma grande austeridade por fora. Ali bem perto, no Palácio Tomar, funcionava a Hemeroteca, por ali andava em consultas, atravessava a rua para um passeio estreitíssimo, uma das faces da Igreja de São Roque e perguntava-me muitas vezes se quem por ali passa sabe a magnificência que está dentro daquela parede. Igualmente se recomenda a quem visita que se documente previamente, a fruição será maior designadamente para contemplar os tesouros que estão nas capelas e no altar-mor, isto quanto à igreja. Estou absolutamente seguro de que ninguém sairá dececionado desta visita a um local que começou por ser um cemitério de pestíferos, acolheu a Companhia de Jesus e guarda tesouros suficientes que não nos envergonhariam de uma candidatura a Património da Humanidade.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (22):
Num cemitério de pestíferos há hoje arte sacra de valor universal


Mário Beja Santos

Quando se lê o roteiro da Igreja de São Roque, e mesmo o do museu, os autores recordam que este espaço era um arrabalde da cidade, um descampado povoado de oliveiras junto à muralha fernandina, aqui se pôs o cemitério onde jaziam os pestíferos, isto no início do século XVI. D. Manuel I pediu à Senhoria de Veneza uma relíquia de São Roque, ela veio, decidiu-se edificar uma ermida, no postigo de São Roque, estávamos em 1506. E terminada a ermida, instituiu-se a Irmandade. Depois, D. João III quis trazer para o Reino os primeiros padres da Companhia de Jesus, da ermida passou-se à construção da Casa Professa e Igreja de São Roque no local da ermida. Atenda-se ao que se escreve nos roteiros: “A igreja de São Roque vem definir-se como resultante dos desígnios da Companhia de Jesus e da vontade real, caraterizada por um maneirismo nacional de linhas austeras que contrasta com o espaço interior de grande peso decorativo, em que o azulejo, a talha dourada e os quadros a óleo perfazem um ambiente magnífico e requintado. A planta da igreja é de grande simplicidade e largueza de conceção – uma nave, ampla e extensa, capela-mor pouco profunda, tribunas e galerias sobre as capelas”. Só que a visita começa pelo museu, criado em 1905 e alvo de remodelações sucessivas, está ali um acervo extraordinário de relicários, cofres, pense-se no tesouro da capela de São João Baptista, uma ourivesaria única, quadros magníficos, esculturas, alfaias religiosas de grande valor artístico, peças de paramentaria, e muito mais.

Apreciei muito ler uma obra sobre os cem anos do Museu de São Roque, ele foi inaugurado em 1905, como se disse acima, as suas coleções acompanham a evolução da História de Arte entre os séculos XVI e XX. Como é que todo este património é tutelado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa? Em 1759, após a expulsão dos jesuítas de Portugal, a Santa Casa, cuja sede original era a igreja manuelina da Conceição Velha, recebe por doação régia a Igreja e Casa Professa de São Roque, tornando-se proprietária de todo o seu acervo, a que se juntaram espécimes de extrema raridade da Santa Casa.

Na Monarquia Constitucional entendeu-se que este património devia ser posto à exibição pública e em 1898, por ocasião das comemorações do IV Centenário da Fundação da Santa Casa apresentou-se na Sacristia da Igreja de São Roque o tesouro da Capela de São João Baptista; mas anos antes já havia a ideia de encontrar um espaço, ele foi dado pela saída do que é hoje o museu na antiga Sala de Extrações da Misericórdia de Lisboa. É interessante ver imagens da evolução museológica e museográfica, começou-se por mobiliário com luxuosas vitrinas, uma imensidade de quadros uns ao lado dos outros, as coisas começaram a mudar na década de 1960 com novas conceções de museologia e museografia, despojaram-se as salas, ganhou-se mais espaço com a incorporação da antiga Casa do Despacho, a conservação e o restauro evoluíram enormemente e o museu dispõe hoje de um serviço educativo modelar. Recorda-se que todos os visitantes com idade de 65 anos e mais têm entrada gratuita.

E o que se pasma depois da última remodelação é ver o desafogo que permite uma contemplação mais atenta, as obras estão bem identificadas, é um regalo andar neste museu carregado de preciosidades de arte sacra, e depois de uma visita detalhada à própria Igreja de São Roque percebe-se que não é bravata nenhuma dizer-se que todo estes tesouros por elementar justiça deviam ser candidatos a Património da Humanidade. Aqui se deixam algumas imagens que poderão ter o condão de sensibilizar o leitor para a visita de arte sacra da mais esplendorosa e das sete partidas do mundo.


Igreja e Museu de São Roque
Tesouros da Capela São João Baptista, Património da Humanidade
Santo António, mãos grandes e pés grandes, um Deus menino, pequenino e bem sentado
São Francisco Xavier que por aqui andou e daqui partiu para conquistar almas no Oriente
Um dos quadros icónicos do Museu de Arte Sacra

Todo o interior da Igreja de São Roque está marcado pelo maneirismo italiano, já se sublinhou a sobriedade, simplicidade e densidade volumétrica, se são pontos que chamam a atenção do visitante logo a decoração da igreja, com azulejos “ponta de diamante” fazem estontear a vista, é a talha dourada, os mármores embrechados, a pintura que preenche grande parte do espaço interior, a escultura; enfim, apercebemo-nos prontamente que se tudo por fora é austero lá dentro utilizam-se as maiores riquezas para adorar Deus e venerar os Santos.

Se o exterior é a imagem consumada da austeridade, o interior é sumptuoso, das capelas ao altar-mor
Uma visão de duas capelas, atenda-se à harmonia das formas e ao modo de ocupação dos espaços

Recomenda-se ao leitor que vá munido de um roteiro das capelas, só tem a ganhar para usufruir de tudo quanto se vê e melhor se pode compreender: capelas da Senhora da Doutrina, de São Francisco Xavier, São Roque, do Santíssimo, Capela-mor, de S. Baptista, da Senhora da Piedade, de Santo António, da Sagrada Família. Há depois o que está nos altares e a sacristia tem o maior valor artístico.

Naturalmente que a capela mais importante, em termos artísticos, entenda-se, é a de São João Baptista, obra única no contexto da arte europeia, uma encomenda de D. João V a Roma, teve data da inauguração oficial em 1750. Possui linhas inovadoras no esquema estilístico, anuncia o neoclassicismo. Os seus elementos decorativos são de inspiração rococó. Os quadros laterais e o central, bem como o soalho da capela, são em mosaico, trabalho artístico de grande mérito. Utilizaram-se materiais preciosos, diversos mármores – lápis lazúli, ágata, verde antigo, alabastro, mármore de Carrara, ametista, pórfido roxo, branco-negro de França, brecha antiga, diásporo, jalde e outros. No Museu de Arte Sacra de São Roque estão patentes o modelo da capela bem como exemplares de tecidos e metais pertencentes às coleções da Capela de São João Baptista. É indiscutivelmente um templo religioso soberbo, é bom que a visita se complemente do museu para a igreja. Ninguém sairá desiludido.


A presença do Oriente, o marfim, os materiais delicados, a madeira exótica
A fundadora das Misericórdias, óleo de José Malhoa
A mais icónica das telas do Museu de Arte Sacra

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22654: Os nossos seres, saberes e lazeres (473): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (14) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

A capela de S. João Batista, por si só, justifica uma deslocação propositada à igreja de S. Roque, em Lisboa, nem que se venha do outro lado do mundo. Esta capela é única, é incomparável, é fabulosa, etc. etc. (Não há palavras que cheguem para elogiar esta obra-prima da arte italiana.)

Quem pregou nesta igreja, foi o Padre António Vieira. Aos domingos, a igreja de S. Roque ficava a abarrotar de pessoas, que a ela acorriam só para ouvir os sermões de Vieira. De acordo com a Infopédia, Segundo o testemunho de D. Francisco Manuel de Melo, a afluência às pregações era tal que, como se de provérbio se tratara, corria a frase: "Manda lançar tapete de madrugada em S. Roque para ouvir o Padre António Vieira".

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Inteiramente de acordo, só a capela de S. João Baptista vale a visita.E, depois no Museu, os sinais dos expostos remetendo-nos para uma época cruel da história deste país em que era altíssima a taxa de mortalidade infantil bem como o infanticídio e o abandono dos recém-nascidos, em geral, na famigerada "roda" dos conventos e dos hospitais das misericórdias. Conheço gente com antepassados na roda. Essas pobres crianças eram depois entregues a "amas de leite", da terra dos saloios, pela Misericórdia de Lisboa... A esperança média de vida dos "expostos" era muito baixa.