sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22669: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2021

Queridos amigos,
Estamos no pico da época das chuvas, há muitas entradas e saídas no pelotão de Paulo, parte gente muito amiga, irá ficar uma saudade irreprimível, curiosamente algumas dessas relações terão futuro. Depois de uma vida nómada, é distribuída uma tarefa de responsabilidade mas num quadro de mais acalmia, há que garantir a segurança de quem anda a pôr macadame e tapetes de alcatrão numa estrada que ficará conhecida como a de Xime-Bambadinca. Primeiro desmatou-se, e muito, para dissuadir emboscadas em pontos que outrora deixaram recordações sinistras, como Ponta Coli. O único senão são as tremendas chuvadas, e é numa dessas situações que lembravam o dilúvio universal que Paulo vai conhecer uma dimensão do ódio da boca de um homem civilizado, ouvirá um discurso alucinante que descreveu a Annette com o pedido de o registar por inteiro, era um ódio que depois se soltou na vida da Guiné e em Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adorable Annette, fiquei estonteado com o telefonema do dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos e do seu convite para vir dirigir o departamento dos consumidores. Ao que consta, o meu trabalho voluntário tem sido muito apreciado, a atual dirigente, a italiana Rossana Vittorini regressa a Itália para funções no seu sindicato nacional, devo ir a Bruxelas dentro de uma a duas semanas para conhecer a proposta da confederação, fiquei de orelha arrebitada quando me perguntaram se eu podia meter licença e fazer um contrato até cinco anos. Não embandeiremos em arco, mas, meu amor adorado, vislumbra-se a possibilidade de nos juntarmos. Quando ontem à noite te telefonei senti perfeitamente o eco da tua legítima alegria e comunguei com o choro que se seguiu. Vamos fazer figas e, entretanto, avancemos para o que ainda falta desta comissão. Imagina tu que a mexer nestes últimos papéis encontrei esboços dos preparativos da Operação Beringela Doce de que já falámos, caso tu consideres útil, poderás utilizar estas folhas.

Então, deixa-me ainda falar das saudades que eu sentia naquele tempo. Apareceu Cherno Suane, estava a recuperar do seu duplo traumatismo craniano, tudo tinha a ver com a minha anticarro de Canturé, de outubro de 1969. Foi uma alegria abraçá-lo, deram-no como capaz para o serviço, mas eu sinto que se instalou uma limitação na sua vida, fala mais lentamente e não tem a afoiteza que lhe conheci no andar. Vamos ver. Como recordarás, foi este querido amigo que te apresentei nas férias de verão, fomos visitá-lo no local onde trabalha, no Largo de São Paulo, veio depois jantar connosco. Fiquei com uma enorme gratidão com o Teixeira das transmissões, colaborador impecável, revelou-se incansável na reconstrução de Missirá, nunca recusou andar com aquele rádio monstruoso às costas nas operações. E partiu igualmente o Barbosa, era conhecido pelo Boina Verde, era o seu verdadeiro fetiche. E contei-te também que depois de termos feito uma operação de que resultou uma emboscada com sucesso, já teríamos retirado pelo menos uns dez quilómetros, caminhávamos em direção a Missirá e ele veio dizer-me que tinha que voltar nem que fosse sozinho àquele local, dera agora pela falta da boina, lembrava-se que a tinha posto no chão ao lado onde estava deitado, foi o cabo dos trabalhos convencê-lo que não nos podia obrigar a tal violência, comprometi-me a que voltaríamos no dia seguinte, foi nova operação, temíamos encontrar um grupo do PAIGC naquele local, felizmente nada aconteceu e ele recuperou a boina. E reapareceu também Albino Amadú Baldé, a quem eu ternamente chamava o Príncipe Samba, mantinha a pose de um aristocrata, olha bem para esta fotografia que te envio, a pose natural de alguém que tem linhagem nobre. Fiquei magoado com a decisão de o passar à disponibilidade, ele que teve fraturas e ficou diminuído pela mina anticarro, em Bambadinca entendeu-se que ele podia ficar em regime de colaboração mas sem vínculo nem direito a reforma ou a qualquer tipo de pensão, bem procurei dialogar com os novos senhores do mando em Bambadinca, o Albino está presentemente a dar aulas, mas acho uma tremenda injustiça esta marginalização, ele foi efetivamente o comandante da milícia de Missirá, valoroso e de uma fidelidade sem mágoa. Irei visitá-lo anos depois e sabe Deus o que me custou ouvi-lo dizer que vivia numa discreta miséria, estendia-me a mão a pedir ajuda.

E começou o meu mês de julho, a minha incumbência é a de montar segurança permanentemente não só à equipa da TECNIL como aos trabalhadores que acompanham o alcatroamento da estrada, estamos na fase de trabalhos já depois do Xime e em direção a Amedalai, qualquer coisa entre 8 a 9 quilómetros separam estes dois locais onde decorrem os trabalhos. Junto ao Xime já se alcatroou, desmatou-se tudo à volta até um local que no passado deixou sinistras lembranças, Ponta Coli. A maquinaria é pesada e por isso é obrigatório todos os dias recolher a um porto seguro, decidiu-se que fica toda instalada em Amedalai ao fim da tarde, e com o despontar do dia daqui se parte quer para aprontar o macadame quer para atapetar com alcatrão. Uma parte da equipa do TECNIL parte ao amanhecer do destacamento do Xime, o grosso dos trabalhadores permanece em Amedalai, é daqui que eu e cerca de 20 homens (não mais, estamos em plena época das chuvas, há muita gente a sofrer de malária) os acompanhamos, montamos segurança em áreas desmatadas, tudo com os primeiros alvores do dia, sempre da mesma maneira: na primeira linha um grupo de cinco picadores, depois dois Unimog pejados de trabalhadores, seguem-se as máquinas, das mais potentes às mais ligeiras, nós seguimos os flancos, aqui começa a nossa vigilância de águia.

Nunca te esqueças que a época das chuvas nos reserva a mais completa incerteza, o amanhecer tem sempre alguma neblina, às vezes há uma chuva intensa e depois o dia aquece sufocando-nos as gargantas e as narinas, é quase sempre um tempo de estufa, e por ali andamos como suor a empapar-nos a farda. Às vezes os imprevistos do tempo obrigam a paragens, os trabalhadores estão a lançar o cascalho, cai aquela água toda dos céus, e toda aquela pedra britada escorre para as bermas, dá o seu trabalho ir buscá-la para a fixar na futura estrada. Por ali andamos a patrulhar, só posso falar por estes primeiros dias, não há flagelações, não encontramos indícios da presença de guerrilheiros, na verdade desmatou-se em profundidade em ambos os lados, não nos interessa o que andam as máquinas a fazer nem nos apegamos à barulheira dos trabalhadores, o que nos interessa é detetar a presença guerrilheira e neutralizá-la, nada mais.

Cada um leva a comida no bornal, não há tempo para folgar à mesa, e quem vigia não deve perder-se em cavaqueiras com quem trabalha, mesmo no período da manja. A exceção que abro é quando aparece o responsável pelas obras, um engenheiro que deve ser cabo-verdiano, é de trato afável, um homem que deve estar próximo dos 35 anos, pelo que me é dado ver impõe-se pela sua competência, nada de gritarias nem de insultos, desloca-se entre os grupos que trabalham, dá ordens, presta esclarecimentos aos capatazes, para para retificar, vê-se a olho nu que é respeitado. E assim passam os dias, aproximadamente quando se aproxima o lusco-fusco já estamos todos em Amedalai, temos nessa altura a garantia de que a estrada está picada até à ponte de Undunduma, e assim se chega a Bambadinca e temos quase metade do dia por nossa conta. De vez em quando há exceções, havia uma semana de idas e vindas ao alcatroamento da estrada quando recebemos indicação para seguir para Mansambo dois dias, os de lá partiam para uma operação, competia-nos dar segurança a quem ali ficava. Tudo correu bem e voltámos à rotina de Amedalai. E veio um capricho dessa época das chuvas que me vai arrastar para um episódio que ainda hoje me faz pensar no ódio que vive dentro dos homens, bem camuflado até que chega a circunstância de um desabafo. É o que eu te vou contar a seguir, e permite-me, minha doce Annette, é suficientemente impressivo para constar do nosso romance.

Tive hoje um dia estranho em casa, imagina tu que olhei as coisas com uma certa distância, como se já tivesse a criar o sentimento de que vou viver para Bruxelas. Bom, há que controlar os sonhos para não haver os amargores da deceção. Tenho agora uns dias de muito trabalho com as aulas em Santarém e na Caparica, mas não deixarei de telefonar. Bisous, mas também besinhos para a mulher mais formosa da Bélgica e arredores, ton amoureux, Paulo.

(continua)


Uma vista da tabanca de Amedalai, fotografia de 1997, tirada pelo meu estimado amigo Humberto Reis, seguramente que aqui houve estabelecimento comercial, sabe-se lá se de mancarra ou de venda a retalho
Desculpa as cartas brutais que por vezes te mando (inclui excerto de aerograma de Mário Beja Santos), aguarela de Manuel Botelho
Quando visitei o meu inesquecível Albino Amadú Baldé, há uns bons anos
Cherno Suane, o guarda-costas e o irmão
Entre grandes amigos, Bissau, outubro de 1969, Barbosa, o da Boina Verde, é o primeiro à esquerda, o Teixeira está ao meu lado
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22652: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (75): A funda que arremessa para o fundo da memória

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