sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22652: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (75): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 202

Queridos amigos,
Paulo responde a um pedido de esclarecimento de Annette, ela não sabe em rigor o que é o fenómeno do macaréu, e interroga também o estado de espírito de Paulo numa fase em que a comissão militar pode acabar a qualquer momento, ela sente uma profunda melancolia, há muita gente a partir e que o acompanhou ao longo destes quase dois anos, vive-se naquela permanente estafa de patrulhas de reconhecimento, colunas ao Xitole, visitas às tabancas em autodefesa, vigilância no novo ordenamento dos Nhabijões, atividades operacionais avulsas, é nisto que o major de operações do novo batalhão o previne que ele e os seus homens, mesmo adoentados, vão garantir a segurança a quem trabalha no alcatroamento da estrada entre Xime e Bambadinca, uma vigilância que consome doze horas consecutivas. E como lhes disse o novo major de operações, chegado ao fim de julho, logo se verá, se não receber informação sobre o fim da comissão irá para um destacamento, nessa altura toma-se a decisão de qual.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (75): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Boa noite, minha estrela da manhã. Julgo importante tecer alguns comentários aos elementos que te enviei relativamente ao período sobrante de junho e dar-te uma panorâmica das minhas atividades no mês de julho, como te referi no início de agosto recebo o guia de marcha para Bissau, onde fico a aguardar transporte, virei no navio Carvalho Araújo que atracará na mesma doca de onde parti em 24 de julho de 1968. E tentarei dar algumas respostas a questões que tu me pões. Sentes-te intrigada com o fenómeno do macaréu, que é bastante raro e circunscrito a um conjunto de rios em todo o mundo. Curiosamente, na minha última passagem por Bissau, por razões do julgamento de Quebá Sissé, estive no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, sabes bem que tinha sempre um caderninho no bolso, bem repimpado numa cadeira destas instalações dei comigo a ler uma conferência que foi proferida na Sociedade de Geografia de Lisboa em maio de 1946, na sessão solene comemorativa do V Centenário do Descobrimento da Guiné. O autor, de nome Marques Mano, logo me encantou pela embriaguez das suas sonoridades a descrever o macaréu, é brilhante na movimentação, prende-nos do princípio ao fim, gostei tanto que tomei nota de tudo, transcrevo o que tanto me deslumbrou e continua a deslumbrar:
“Para ir tão longe, a maré não encontra a sua frente leitos abertos e vazios; encontra nos dois rios doces que convergem na testa do estuário central, leitos onde, de margem a margem, corre uma toalha de água doce que desce com rapidez. Deste modo é obrigada a subir em macaréu. A maré-cheia, empurrada do largo estuário para o rio estreito, encontra-se com aquela corrente contrária que lhe trava os filetes da água inferiores e os que, correndo livremente sobre esses, vão cair sobre ela. Deste modo, a maré é continuamente represada ao longo do percurso do rio, a água que chega galga a represa, para ser também travada, e a altura da enchente sobre a vazante aumenta deste modo incessantemente, até que a enchente se enrola numa vaga grossa poderosa que corre sobre a vazante… O trovejar da enorme vaga ouve-se a alguns quilómetros de distância ainda lá no fundo da floresta. Calam-se os homens e os animais bravios para escutar o monstro que sobe o rio correndo. Quando chega, as cordas de água precipitam-se em vertiginosa desordem contra a vazante, contra as margens, contra as árvores ribeirinhas, espadanando, enrolando-se em remoinhos, arrastando à sua frente quanto se lhe oponha. Passa, e o corpo líquido, sinuoso e rápido do monstro, enche o leito do rio e continua correndo e rugindo”.

Espero, meu adorado amor, que este texto te sensibilize para a grandiosidade deste espetáculo da natureza. Sobre os tornados, mandei-te também outra documentação, acredita que assisti a um ainda na margem do Geba, na bolanha de Finete, aquelas ventanias furiosas que açoitavam e atormentavam as gentes em Bambadinca, o faiscar dos relâmpagos, a sensação de que aquele ciclone tem a velocidade de um tufão, desfaz as árvores, levanta os telhados, as chapas zincadas parecem voar como folhas de papel e subitamente o ciclone cala-se, volta o calor, o céu limpo, o ar imóvel parece ter feito desaparecer a tormenta que assolou os homens, a vegetação, os edifícios.

Quero-te confessar o meu estado de espírito neste tempo, estamos em plena época das chuvas, saiu e entrou muita gente no meu pelotão, continuo naquela girândola de colunas ao Xitole, escoltas, patrulhamentos noturnos, acompanhamento das obras intensas nos Nhabijões. Há separações que me custam muito, por exemplo o Teixeira das transmissões, o Barbosa da boina verde, até ao Domingos Silva, o meu intérprete quando converso com alguém que fala exclusivamente crioulo. Apercebo-me que estou a viver uma situação um tanto semelhante àquela que um querido amigo meu, o pintor Manuel Botelho, desenvolveu num trabalho em torno de uma farta correspondência que adquiriu na Feira da Ladra, ela em Lisboa, num bairro popular, ele no Bachile, um recôndito para lá do Cacheu. Ao princípio, a narrativa dele é acalorada, é um descobridor que faz crónica para a sua namorada, fala-lhe do que é o quartel, o arvoredo, a comida, a população local, as amizades nascentes; ela responde, sempre marcando a prosa pelos caminhos da saudade, fala-lhe do trabalho e da família, põe-lhe perguntas, pede-lhe encarecidamente que seja prudente, ama-o de todo o coração. E nesta correspondência trocada ao longo do ano sentimos a palpitação e o confronto que um vai dando ao outro. A partir do segundo ano começa-se a notar que há um cansaço, há muita emoção estafada, ela pede-lhe por amor de Deus que escreva mais e que lhe diga se a ama como quando partiu para a guerra, ele queixa-se da dureza da vida, começamos a ver aquele correio a rarear, as frases curtas, a secura, a profunda melancolia, ele não esconde que tem medo do futuro. O Manuel Botelho transformou toda esta correspondência numa instalação, impressionou-me profundamente, criou um ambiente alusivo à guerra de um lado e a um ambiente doméstico do outro lado, e vamos sentindo a passagem da vivacidade à dolência, parece que as palavras se vão gastando, a distância tornou-se devastadora, imobilizou aqueles dois jovens amantes, são dois confidentes em plena solidão. E o talento do artista é deixar-nos em suspenso sobre o que representará o regresso do combatente e se ainda haverá vida e amor que baste naquela relação.

A melancolia, aquele sabor amargo da rotina, a partida daquela gente do batalhão com quem me relacionara na perfeição, a chegada de nova gente, a perceção de que era inútil falar-lhes do que eu pensava do Xime ou das populações em autodefesa, em muito contribuiu para que eu mantivesse a preocupação de cumprir à risca o que os novos comandos ordenassem. E é por isso que volto àquele ataque a Demba Taco, de que falámos recentemente. Em resumo, voltei daquele patrulhamento na região de Semba Silate, lá comprovei a existência de indícios de gente da guerrilha que por aqui passava, caminhava-se para o fim do dia e dirigi-me a passo estugado para Amedalai, daí podíamos regressar de viatura, neste tempo já se picava a estrada até à Ponte de Undunduma, num ápice estaríamos em Bambadinca. É nisto que começamos a ouvir deflagrar estampidos em cadência, pomos o ouvido à escuta, distinguem-se perfeitamente as saídas dos canhões sem recuo, os morteiros 82, a cantilena das costureirinhas, nome por que tratávamos as pistolas-metralhadoras cujo som se aparenta com o das máquinas de costura. Converso com Mamadu Bari, o comandante da milícia de Amedalai, é Demba Taco que está sob fogo. Decido não regressar a Bambadinca, comunica-se pelas transmissões e pede-se que ao nascer do dia venham viaturas até Amedalai, iremos ajudar quem está sob a tormenta, manda a prudência que não nos devemos pôr a caminho na noite escura, há que pensar em minas e emboscadas. E vamos assistindo ao fogo nos céus, há seguramente moranças atingidas.

Com a alva, vieram dois Unimog, uma secção em cada uma deles, já está gente a picar a estrada, há gente a pé e gente sentada, vamos todos preparados para o pior, mas não há sinal de guerrilha até chegarmos à tabanca em autodefesa de Taibatá, aqui está tudo calmo, continuamos a picar e o vento traz-nos o odor a queimado, entra-se em Demba Taco, sente-se no olhar de toda aquela gente o reconhecimento pela nossa vinda, Cherno Baldé, o comandante da milícia local, a máscara da exaustão, acompanha-nos na visita aos escombros do ataque devastador. E aqui te deixo, minha adorada Annette, outra reflexão, será que esta guerra é exclusivamente de libertação ou não é também uma guerra civil, já que esta população, predominantemente Beafada, jurou não querer participar na guerrilha, dizem-se portugueses, lembro-me do que vivi no Cuor, um régulo que foi ameaçado e que não aceitou as exigências do PAIGC, como todos estes seres nascidos na Guiné pilham e raptam, lançam o terror, vivem no estado absoluto da intimidação. Regressa-se prontamente a Bambadinca e nessa mesma tarde se trouxe o que de Demba Taco precisava: cunhetes de munições, rolos de arame farpado, tesouras corta-arame, uma prenda em sacos de arroz. Cherno Baldé não se cansa de me dizer que estão a pagar o abandono de Moricanhe, que nosso alfero me desculpe, não ter dado meios para os de Moricanhe continuarem a lutar aumentou confiança da gente do mato, haverá mais perigo para o Xitole e nós vamos sofrer mais.

Em Bambadinca, relatei ao novo major de operações o que vi e ouvi, não tinha ilusões que iria ficar tudo na mesma, o novo batalhão estava em fase de adaptação e não queria ousadias. À saída, o dito major informou-me que vou andar mais uns dias entre a ponte de Undunduma e estadias nos Nhabijões, durante o mês de julho ser-nos-á dado como principal incumbência a segurança diária nos trabalhos do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. São as notas que eu agora estou a preparar, minha adorada Annette, infelizmente só guardei recordações, não encontro qualquer referência no meu caderninho desse tempo. É muito tarde, recebi hoje mensagem que tenho que telefonar amanhã com urgência para Bruxelas, o responsável pelo departamento dos consumidores da Confederação Europeia dos Sindicatos, o alemão Gottfried Scholtak, quer falar comigo. E à noite telefono-te, bisous milles, plus milles et plus milles, Paulo.

(continua)

O macaréu
Neste local, à direita, junto da paliçada, ocorreu em outubro de 1969 uma mina anticarro que me mudou a vida. Tirei esta fotografia um bom par de anos depois, na verdade o homem é capaz de transformar a natureza e fazer esquecer que naquele ponto houve muito sangue derramado
Vista aérea do Xime
A estrada Xime-Bambadinca e a picada Amedalai-Taibatá-Demba Taco, prosseguia até Moricanhe
Os trabalhos da TECNIL na estrada entre Xime e Bambadinca
O espetro de uma mina, aguarela de Manuel Botelho
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (74): A funda que arremessa para o fundo da memória

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