1. Mensagem do dia 18 de Outubro de 2021, do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), continua a falar-nos dos tempos próximos vividos após o seu regresso da Guiné.
O REGRESSO (3)
Os dias longos que vivi até aos 25 anos, idade do meu regresso, têm uma dimensão maior na minha memória do que os dias posteriores da minha vida de adulto, quando o tempo começou a fugir (tempus fugit). Os dias anteriores, da infância, adolescência, juventude foram dias de crescimento, de conhecimento, de reflexão, de rebeldia, à espera da independência, da liberdade e da mudança.
A vida militar pelo tempo excessivo que me ocupou e por me ter enviado dois anos para uma zona de guerra noutro continente, partiu-me a vida em duas partes, que tive dificuldade em ligar quando regressei.
O passado volta do fundo da memória e ganha uma dimensão muito grande, longos dias os da infância, da adolescência, longos dias os da juventude passados em Portugal ou na Guiné.
Decidido a ter noites mais bem dormidas, saí da Pensão Mirandesa e fui para uma hospedaria na parte superior da rua Santa Catarina, bastante perto do trabalho, que era gerida por uma senhora "balzaquiana" solteira ou divorciada, já não sei, expedita e organizada. Fiquei num quarto individual com bom aspecto e condições, como no geral toda a casa.
Nesse tempo muitos solitários enchiam essas pensões e hospedarias legais ou ilegais, iam convivendo uns com os outros e por vezes fazendo boas amizades. Hoje não será muito diferente apesar das redes sociais.
Ao jantar, sempre bem servido, sentados à mesa, na hospedaria da D. Fernanda, estavam os seguintes comensais:
- Uma jovem atraente pela sua beleza e pela forma cuidada como se vestia e cuidava do cabelo, do rosto e da pele, que se dizia esteticista. Bem educada, procurava cultivar boas relações com todos.
- Um cabeleireiro de senhoras, divorciado, regressado há algum tempo de Angola, com cerca de 40 anos, que trabalhava na parte baixa da rua, um cavalheiro muito educado e sempre com boa apresentação.
- Um enfermeiro, divorciado, alto e forte, com cerca de cinquenta anos, regressado da África do Sul, que vivia num quarto com uma moça roliça e com pouca graça, sentada ao seu lado. Este senhor era um pouco abrutalhado, para uma profissão tão delicada, e grosseiro na sua relação com a namorada, já que por vezes, em frente de todos a descompunha por ela não arranjar trabalho. A "gata borralheira" teria o antigo quinto ano liceal mas somente tinha conseguido "esse emprego", de viver com o enfermeiro, que tirando-a de trabalhos, não lhe dava grande tranquilidade. Tinha apesar de tudo a atenção compassiva das senhoras da casa, enfim a solidariedade feminina existe.
- Um mecânico de automóveis, sociável e falador, que trabalhava numa oficina próxima.
- Dois provincianos, um do oeste, outro do leste de Trás-os-Montes, já com a tropa feita, a trabalhar nas Caixas de Previdência.
- De mim nada direi, já todos me conhecem um pouco.
Do meu colega, que trabalhava noutra instituição, e só o conheci lá, direi que era um coscuvilheiro maldizente que tendo andado a investigar a tal jovem esteticista, seguindo-lhe os passos, terá descoberto, segundo me disse, que ela não era esteticista mas sim manicure numa barbearia da rua da Constituição e que muitas vezes vinha um senhor de alguma idade buscá-la de Mercedes, perto da hospedaria.
Ele, penso que estaria frustrado por não ter as atenções da Cinderela mas na verdade ele não merecia mais do que uma bruxa má.
Por vezes em tardes de domingo que não saía fui convidado por essa jovem para estar com ela no quarto, que era grande, bem mobilado, com um toque feminino que o tornava mais acolhedor, para conversar e ouvir música, com as portas abertas, não fosse o diabo intrometer-se na nossa relação.
Tinha um bom relacionamento com ela e com o cabeleireiro, embora me parecesse que entre eles dois o relacionamento era mais próximo, o que seria natural dado que as suas profissões eram afins. Com os outros ia convivendo sem atritos.
Gostava de estar na hospedaria da D. Fernanda. O alojamento era bom, a comida também, o ambiente não era mau e estava a poucos minutos a pé, do trabalho.
Porém um dia, com muita pena para mim, fiz as malas e fui para uma casa de hóspedes mais barata, pois dei-me conta que não me sobravam muitos trocos para outros extras depois de pagar a mensalidade.
Esta ficava num quarto andar, de um prédio antigo, sem elevador da rua Formosa. Era uma casa modesta, gerida por um casal natural da cidade, ambos magros e de aspecto humilde. Fui alojado num quarto com outro hóspede um jovem de Pampilhosa da Serra que trabalhava e estava a acabar o curso de contabilidade. Gostei da companhia dele, era inteligente e trabalhador, e admirei a sua grande força de vontade já que ele, segundo contava, tinha por vezes dores de cabeça terríveis à noite devido a ter tido menigite, mas continuava a lutar pela vida, em duas frentes.
A casa entre os hóspedes era conhecida pela pensão da morte lenta. Já não sei se servia jantares, pois recordo-me de ir muitas vezes fazer essa refeição com outro hóspede, um bom camarada que tinha um trabalho técnico, natural de Fafe, a um restaurante próximo e barato.
Por vezes ia com ele ter com uns seus amigos e conterrâneos, dois rapazes próximos das nossas idades que viviam juntamente com uma irmã numa casa próxima. Trabalhavam na EDP, a irmã já não sei se trabalhava ou estudava, os três eram altos, muito agradáveis no convívio, muito parecidos, física e psicologicamente, até na forma de sorrir me pareciam iguais. A irmã um pouco mais discreta, por ser mulher, não deixava de inspirar uma abertura e franqueza idêntica aos irmãos. Havia uma grande harmonia entre eles talvez também por serem próximos na idade. Com eles e com o outro amigo sentia-me em família.
As nossas conversas versavam sobre o dia a dia, as nossas origens, as raparigas, o trabalho e pouco mais. Já todos tínhamos feito a tropa e experimentado as guerras de África mas evitávamos falar disso, porque eram memórias recentes que magoavam.
As minhas andanças por diferentes casas e ruas da cidade, irão acabar brevemente para me fixar durante alguns anos numa casa.
Até breve.
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 5 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22600: Os nossos regressos (40): Os nossos irmãos são sempre cópias desiguais de nós próprios, os amigos podem preencher um espaço de compreensão e entendimento que nem sempre encontramos em família (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Continuo, agora, cada vez mais a gostar da tua escrita.
Abraço
Fernando
Francisco, são memórias valiosas para se perceber a trajetória da gente da nossa geração, e nomeadamente o nosso mais ou menos doloroso regresso à "normalidade", pós-guerra, que nunca mais foi a mesma, tal como hoje o pós-pandemia... Teu leitor, também atento e interessado. Luís
Para os que tinham escolhido a vida militar esses momentos difíceis de readaptações não existiram .
Novos Quartéis,novas/velhas Instruções,novos recrutas, novas Mobilizações, e novas malas a serem feitas.
O resto mais não eram que necessárias….”adaptações”.
Daí o interesse com que se acompanham as descrições,por alguns,muito bem detalhadas,das situações,circunstâncias,meios e personagens.
As tuas descrições conseguem torná-las quase vividas.
É essa a difícil fronteira entre escritores e…. “escribas”.
Um grande abraço do J.Belo
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