Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > Rio Geba > 1969 > Uma belíssima foto de uma lavadeira, em contraluz. O Valdemar Queroz atribuiu os créditos fotográficos ao seu "irmão siamês" Cândido Cunha.
Foto (e legenda): © Cândido Cunha / Valdemar Queiroz (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).
Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).
Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)
Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
(Continuação)
Contuboel, 12 de Janeiro de 1966
Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas [,BCAV 757, Bafatá, 1965/67] , sofreu dez mortos numa emboscada [, em Sare Dicó, na estrada Fajinquito-Canjambari] Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem partido para uma operação no mato do Caresse, terra-de-ninguém e de muita pancada, se ouviram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado.
Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o estrado da carroçaria. Tinham morrido ali como tordos, depois de os guerrilheiros terem lançado algumas granadas defensivas para o interior da GMC.
Fiquei encarregado de transportar aquela carne humana para Fajonquito, sede de uma companhia também pertencente ao nosso batalhão.
Fajonquito, 13 de Janeiro de 1966
Enquanto o capelão procedia às exéquias fúnebres e rezava missa campal por alma dos dez mortos irreconhecíveis, safei-me, revoltado, para um canto solitário, longe de toda aquela cruel comédia desumana. E peguei da esferográfica e do meu caderninho e fui escrevinhando:
O VISIONÁRIO
Rasguem-se as cortinas do sacrário,
Onde ficou Jesus aprisionado
Tal como há dois mil anos no Calvário
Pregado num madeiro, ensanguentado...
Era Sua Palavra pão sagrado
E o gentio que escutava o Visionário
De tal arte ficou maravilhado
Que O elegeu seu revolucionário...
Depois, o tirano, opressor do povo,
Julgando apagar esse Sol novo
Mandou matar o vate desordeiro...
Crucificaram-no então no Calvário:
- Está agora a ferros num sacrário,
Não vá Ele tornar-se guerrilheiro...
Bissau, 17 de Janeiro de 1966
Vim ao aeroporto de Bissalanca esperar a Otília, que vem passar uns meses comigo nesta guerra. Se calhar, foi uma loucura da minha parte. Sem dúvida que foi. E egoísmo. Chame-se-lhe o que se quiser, mas, antes de morrer, gostava de deixar descendência. Ficámos instalados no Grande Hotel de Bissau, que só tem grandeza no nome.
Contuboel, 19 de Janeiro de 1966
Acabámos de chegar de Bissau, eu e minha Mulher. A nossa casa é um espaço vago, quarto e corredor, que me cedeu o Chefe de Posto e que fica contíguo ao edifício. Não há água nem electricidade. Alumiamo-nos a petromax. A água virá todos os dias do quartel, que fica a meia dúzia de passos, para um barril que coloquei na extremidade do corredor oposta à porta de entrada, onde, com um reposteiro, fiz um pequeno compartimento que vai servir de cozinha.
Antes de minha Mulher chegar, arranjei o nosso quarto o melhor que pude: consegui uma cama de casal, pus cortinas nas janelas, cujo pano comprei no comércio do libanês e que um alfaiate indígena depois talhou, acertou e coseu, mandei fazer uma mesa de boa madeira africana.
Este é que é verdadeiramente o chamado amor e uma cabana.
Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966
Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966
A Otília está grávida, pelo menos tem todos os sintomas de uma mulher nesse estado: enjoos, vómitos. Se for mesmo verdade, isto significa que, se me for desta para melhor com um qualquer tiro desgovernado, já deixo rastro atrás de mim. Um filho engendrado na guerra!
Contuboel, 16 de Março de 1966
Fomos hoje a Fajonquito, povoação a mais de vinte quilómetros de distância, onde também se encontra uma Companhia de Caçadores. A Otília foi comigo, a fim de consultar o médico, meu companheiro da República Corsários das Ilhas, em Coimbra, e muito nosso amigo.
A Otília queixa-se das pernas, parecem picadas de mosquitos, mas não são. O Ormonde de Aguiar, assim se chama o meu velho companheiro de Coimbra, disse que se tratava de uma qualquer doença de pele e deu-lhe uns medicamentos para o efeito.
Contuboel, 7 de Abril de 1966
Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Administrativo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Ormonde lhe receitou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.
Contuboel, 23 de Abril de 1966
Faz hoje um ano que desembarcámos em Bissau. Não me esqueci de descarregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricentésima, sexagésima sexta, se me não engano. Estamos já a dobrar o cabo tormentório. A partir de agora, começa o tempo a descer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembradas.
Sonaco, 30 de Julho de 1966
O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha condução no jipe que pertence ao destacamento.
Sonaco, 9 de Agosto de 1966
A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho melhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta.
Contuboel, 7 de Abril de 1966
Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Administrativo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Ormonde lhe receitou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.
Contuboel, 23 de Abril de 1966
Faz hoje um ano que desembarcámos em Bissau. Não me esqueci de descarregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricentésima, sexagésima sexta, se me não engano. Estamos já a dobrar o cabo tormentório. A partir de agora, começa o tempo a descer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembradas.
Sonaco, 30 de Julho de 1966
O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha condução no jipe que pertence ao destacamento.
Sonaco, 9 de Agosto de 1966
A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho melhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta.
O pior são os gatos que vêm ao cheiro da comida e fazem, por vezes, uma estreloiçada de me pôr maluco. Ando com os nervos em franja, por isso qualquer barulho, por mais pequeno que seja, põe-me transtornado. Uma noite destas fui acordado e apanhei tal susto que peguei logo da espingarda, encostada à parede, à ilharga da cama do meu lado, acordei a Otília, disse-lhe que ia disparar, que se não assustasse, poisei o cotovelo esquerdo na sua já proeminente barriga, apoiei o cano da arma na mão canhota meio em concha, encostei a coronha ao ombro direito, fiz pontaria e disparei, uma, duas vezes.
Matei um gato e os outros desapegaram-se. A Otília não me disse sequer uma palavra mais azeda e tinha toda a razão para o fazer. Virou-se para o outro lado e principiou logo a dormir.
(Continua)
____________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021(**) Último poste da série > 16 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)
16 comentários:
Muito interessante.
E que soneto.
Não recordo a localização do Chefe de Posto de Contuboel, mas julgo ser na rua que saía da estrada principal e que ia dar ao Quartel.
Na esquina dessa rua, na casa junto da seta em madeira a indicar QUARTEL morava o Capitão da nossa CART2479/CART11. Já não me recordo bem, mas julgo que vivia lá com a esposa e ela também estava grávida. A senhora teve de ser evacuada de urgência para Bissau, e por causa disso houve um problema com um soldado que deu um tiro no seu pé para também ter direito a ser evacuado.
Aquela ida e permanência em Sonaco devia ter sido como que a passar férias em África.
Valdemar Queiroz
Não é um poema, é uma blasfémia, diria um cristão tradicionalista. Só agora li como deve ser soneto. Quem edita.muitas vezes só lê os textos na diagonal... Tens razão, Valdemar, é incendiário... De resto, todo o diário e um "grito de alma"... Se fosse antes do 25 de Abril, a censura dos senhores coronéis haveria de caça-lo e a PIDE /DGSe apreende-lo, como aconteceu com o "Tarrafo", do Armor Pires Mota, este por outras razões, representava a real ali dade da guerra "pura e dura".
O Armor e o Cristóvão foram dois seminaristas. Como tantos outros oficiais e sargentos que fizeram a guerra da Guiné. Quem saia do seminário, não tinha escapatória. Até parecia que o Salazar e o Cerejeira tinha feito um "pacto sagrado: "Guiné com eles!"... E para mais escrevia bem,muitos deles...
Ter a esposa em zona de muita guerra era uma raridade, mas aconteceu. Em Teixeira Pinto e Mansoa, por onde penei durante mais de um ano, em 72/73 ainda era possível. Em Cufar 73/74 nem pensar em esposas, era mesmo proibido.
Abraço,
António Graça de Abreu
As esposas e suas crianças de muitíssimos sargentos e oficiais faziam em geral a segunda comissão (a pedido, em Angola), depois de se verificar nos primeiros dois anos, que a qualidade de vida era especial, era rara.
É difícil explicar esse fenómeno a quem não viveu.
Nem o Lobo Antunes, que depreciou aquela vivência, entendeu o que se passava, fora do arame farpado, só entendeu o que se passava dentro do arame farpado.
A nossa memória é altamemte seletiva (e, por isso, traiçoeira...), não é sinóptica, é sequencial mas errante... Estive em Contuboel, de 2 de junho a 18 de julho de 1969, na altura do Valdemar (que já lá estava há 3 ou 4 meses), mas não me lembro do capitão dele nem da esposa, grávida... Lembro-me do rio Geba, da praia fluvial, da rua princiapl, das malditas tendas de campanhava onde destilávamos litros e litros de suor...Lembro-me das "mais belas tabancas da Guiné", mandingas, cheias de poilões e de "gente feliz sem lágrimas"... Falei no meu diário do "oásis de paz de Contuboel"... E quando a deixei, escrevi: "Capri, cést fini", as "férias", a "dolce vita" acabaram...
E lembro-me, bem, de ouvir um tiro à noite, quando um desgraçado (creiqo que um básico) se automutilou, dando um tiro no pé, só para ser evacuado para a metrópole. O Valdemar faz referência a esta cena, que a mim me marcou, mas não outras... Porquê ?
Espantosa esta "obsessão" do Aguiar de "não querer morrer" sem ter "descendência"... Afinal, somos todos animais, primatas, hominídeos,... no nosso caso com um cérebro mais desenvolvido do que os dos nossos "primos", símios, os grandes macacos... É toda uma luta, desde há milhões de anos, pela "sobrevivência", o mesmo é dizer, pelo "sucesso reprodutivo"... Trocado por miúdos, todos (ou quase todos) queremos deixar uma cópia de nós mesmos... uma cópia do nosso ADN.
Porra, não me lembro de gatos na Guiné!... Mas cães, manga deles, famélicos, esqueléticos, ganindo a noite... Em Bambadinca era uma praga... Foi um dos "massacres" em que tenho consciência de ter participado, embora "passivamente"....
Esquecer a Guiné... por uma noite!
(...) As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
No manicómio de Bambadinca.
Um a um,
Às tantas da madrugada,
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De que... não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
A todos nós, almas penadas...
Chamei-lhe a Operação
Noite das Facas Longas. (...)
No sítio da Liga dos Combatentes > Mortos no Ultramar, há o registo dos 10 mortos no dia 11 de janeiro de 1966, a que se refere o Cristóvão de Aguiar no seu diário (Contuboel,12 de janeiro de 1966): são todos do Exército, e morreram em combate, no TO da Guiné,em 11/1/1966, na estrada Fanjonquito - Cambanjari.
O batalhão "Sete de Espadas" (, citado pelo Aguiar, e a que pertenciam estes infortunados camaradas, era o BCAV 757, a maior parte da CCS, e foram inumados no cemitério de Bafatá.
BARRETO, José António de Jesus, 1Cab
BRAZ, José Mota, Sold
CAMARÁ, Braima, Sold
DIAS, Júlio Varela, Sold
DUQUE, Artur Mário Ferreira, Sold
GUIMARÃES, José Dias, 1Cab
JÚNIOR, Norberto Pina Araújo, Sold
MONTEIRO, Agostinho, Sold
MONTEIRO, Aires Jesus, Sold
Infelizmente, temos apenas três referências, no blogue, a este batalhão de cavalaria.
Ficha de unidade:
Batalhão de Cavalaria nº. 757
Identificação:BCav 757
Unidade; Mob: RC 7 - Lisboa
Cmdt: TCor Cav Carlos de Moura Cardoso
2.° Cmdt: Maj Cav Joaquim Mendes Borges Ribeiro Simões
OInfOp/ Adj: Cap Cav Serafim Moreira | Cap Cav Ricardo Fernando Ferreira Durão
Cmdt CCS: Cap SGE Arnaldo Mateus Barroca Correia
Divisa: "Alegrem-se! A vitória será nossa" - "Juntos venceremos"
Partida: Embarque em 17Abr65; desembarque em 23Abr65
Regresso: Embarque em 20Jan67
Síntese da Actividade Operacional
Era apenas composto de Comando e CCS, não dispondo de subunidades
operacionais orgânicas.
Em 25Abr65, rendendo o BCaç 506, assumiu a responsabilidade do Sector
L2, com sede em Bafatá e abrangendo os subsectores de Fajonquito e Bafatá e
ainda controlando a actividade de uma companhia de intervenção instalada em
Contuboel, em 22Nov65 transformada em subsector.
Em 230ut65, por subdivisão do subsector de Bafatá, foi criado o subsector de Geba e a zona de acção do batalhão foi ainda aumentada do subsector de Pirada, em 20Nov65, transferido da área do BCav 705.
Com as subunidades que lhe foram atribuídas, desenvolveu intensa actividade
operacional naquela vasta área fronteiriça, efectuando diversas operações
e acções sobre as linhas de infiltração inimigas e provocando elevado número
de baixas, destruição de vários acampamentos e captura de diverso material,
além de garantir a estabilidade, segurança e desenvolvimento das populações.
Dentre o armamento capturado mais significativo, salienta-se 4 metralhadoras
ligeiras, 5 pistolas-metralhadoras, 12 espingardas e 5798 munições de armas
ligeiras.
Em 09Jan67, foi rendido no sector pelo BCaç 1877, recolhendo a Bissau,
a fim de aguardar o embarque de regresso.
Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 77 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).
Fonte: Excerto de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pp.259
Sobre o Capitão Analido Aniceto Pinto da nossa CART2479/CART11 ter a sua esposa a viver com ele não tenho dúvidas nenhumas, eles viveram juntos em Nova Lamego.
Já quanto ao estar grávida em Contuboel não tenha a certeza absoluta, mas de facto o que se passou com soldado básico 'pra mulher do capitão que está prenha ouve evacuação e pra mim não, já vamos ver...' disse ele antes de dar um tiro no pé.
É uma pérola rara, o diálogo entre a esposa do capitão e o Arfan Jau soldado fula da nossa CART11.
O Arfan Jau do meu Pelotão, um dos recrutados em Contubel, era um mancebo corpulento e bom lutador levou uma carecada por ser refilão com o alf. Pina Cabral que o deixou desprestigiado para lutar. O Arfan veio duma pequena tabanca e não falava português nem sequer crioulo, mas lá foi aprendendo com os soldados metropolitanos algumas elementares palavras de português, na maioria palavras do português do norte do país.
Em Nova Lamego, oficiais, sargentos e a esposa do capitão, almoçava-mos todos juntos na messe, numa bela varanda do do edifício do nosso Quartel de Baixo.
Certo dia, durante o almoço, apareceu o Arfan Jau para falar com o fur. Macias e educadamente tirou o quico ficando de careca à mostra.
Então Jau, o que é que aconteceu ao teu cabelo, perguntou a esposa do Capitão.
Sinora nó sabe, mas aora tá manga de furido, respondeu humildemente o Arfan com as mãos agarrando ao quico.
Foi um silêncio geral por uns segundos a seguir uma explosão de gargalhadas.
Manga do furido, disse o Arfan Jau (o que será feito dele) ainda não tinha aprendido bem a falar à moda do Porto.
A esposa do Capitão, com problemas nas pernas devido aos mosquitos, ainda por lá ficou uns tempos, mas com as nossas constantes saídas em intervenção ela já nem foi connosco para Paúnca regressando à metrópole.
Abraço e saúde
Valdemar Queiroz
Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, sofreu dez mortos numa emboscada. (...) Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o estrado da carroçaria. Tinham morrido ali como tordos, depois de os guerrilheiros terem lançado algumas granadas defensivas para o interior da GMC.
Estas poucas linhas são chocantes e devem ser realçadas. DEZ mortos duma só vez numa emboscada! Como foi possível?!
Eu já não sou do tempo das GMC e talvez por isso tenha dificuldade em entender a tragédia. As GMC circulavam com taipais? Porquê e para quê? A caixa de carga da GMC estaria coberta com um oleado e o pessoal iria lá dentro? Mais uma vez porquê e para quê? Como foi possível que os guerrilheiros se tivessem aproximado tanto da viatura, a ponto de conseguirem lançar granadas de mão «para o interior»?
Talvez o próprio Cristóvão de Aguiar não tivesse resposta para estas e outras dúvidas, pois ele não testemunhou o trágico acontecimento.
"DEZ mortos duma só vez numa emboscada! Como foi possível?!" pergunta o Fernando Ribeiro.
Foi possível naquela data, e voltou a ser possível em 17 de Abril de 1972 no Quirafo,onde uma outra GMC levou outros DEZ para o tumulo.
Estávamos (, em janeiro de 1966, ) em plena época seca, não fazia sentido as GMC levarem oleado a cobrir a "caixa de carga". Aliás, não me lembro das GMC, no meu tempo, andarem "fechadas". Com as minas e as emboscadas, era impensável. A verdade é que esta viatura, do tempo da II Guerra Mundial (e da guerra da Coreia), era inadequada para o transporte de tropa em operações e em colunas, tinha taipais laterais que não facilitavam o salto para o chão em caso de contacto com o IN.
Se visionar-mos o P.12827 veremos em pormenor a GMC da minha CART11.
Julgo que os taipais não podiam ser retirados, mas nunca, não me lembro, andamos com a cobertura de lona.
Esta nossa GMC, coitada, sofreu uma mina na estrada Nova Lamego-Cabuca ficou bastante aleijada e já não sofreu a habitual intervenção siderúrgica de se lhe cortar a parte superior da cabina.
O 'atirar com granadas lá para dentro' jugo ser por causa dos taipais serem fixos.
Abraço e saúde
Valdemar Queiroz
Caros amigos,
Sobre esta emboscada de Saré-Dico, reler a recensao do Beja Santos ao Diario do soldado Inacio Maria Gois, da veteranissima CCAC 674, 1964/67, onde este tragico acontecimento esta melhor descrito, sendo que, segundo as suas declaraçoes, nao presenciou, mas depois fez parte da equipa que evacuou os corpos para a sede da sua companhia em Fajonquito e depois Bafata, onde serao sepultados.
Aconteceu em Saré-Dico (1966), aconteceu outra vez no Destacamento de Cantacunda, na mesma zona, onde 10 ou 11 soldados foram apanhados a mao (feitos prisioneiros), contrariamente ao que afirmou o Domingos Gonçalves no seu Poste de desmentido ao Marcelino da Mata, todos eles pertencentes a companhia sediada em Geba do ex-Alferes Marques Lopes que ja foi amplamente descrito aqui no Blogue e repetiu-se em Quirafo no triangulo Bambadinca-Xime-Xitole, em Abril de 72, como diz o amigo Paulo Santiago.
Cherno Baldé
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