segunda-feira, 16 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1665: Operação Larga Agora, Tancroal, Cacheu, local maldito para a Marinha (Parte I) (Lema Santos)

Guiné > Bissau > 1967 > Edifício do Comando de Defesa Marítima da Guiné, no final do T da ponte-cais, em Bissau.

Foto: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.



Texto de Manuel Lema Santos, ex-1º tenente da reserva naval (1965-1972), que serviu como Imediato no NRP Orion (Guiné, 1966/68)(1).

O editor do blogue publica o documento da íntegra, incluindo a segunda parte, constituída pelo relatório (oficial) da Operação Larga Agora: embora extenso, é um exemplo ilustrativo do estilo (burocrático) dos nossos relatórios militares. A II parte será publicada, à parte.

A I primeira parte resulta da apaixonada e apaixonante pequisa documental que o nosso camarada Lema Santos tem vindo a fazer feito sobre a actividade operacional, ou melhor, a epopeia das LFG - Lanchas de Fiscalização Grande, no TO da Guiné. Mais uma vez lhe agradeço, em nome de todos nós, este trabalho altamente profissional.

Recordo ainda que a Operação Larga Agora, na mítica região do Tancroal, foi superiormente comandado pelo Coronel Paraquedista Durão, Rafael Durão, que na Guiné, no tempo de Spínola, fez jus ao apelido. O Coronel D. é uma figura omnipresente, evocada com um misto de temor e de admiração no Diário da Guiné, escrito recentemente pelo nosso camarada António da Graça Abreu, o qual teve a gentileza de me enviar um exemplar autografado (Em breve farei uma recensão detalhada do livro) . O Coronel Durão era o Comandante do CAOP1 (originalmente sedeado em Teixeira Pinto), a que pertenceu o Alf Mil Abreu (1972/74)...(LG)


Caros ex- Camaradas e Amigos,

Comprometi-me, perdi (ou encontrei ?) um fim de semana e aqui vai o texto, bem longo, que se inicia no Cacheu, Tancroal (local amaldiçoado para a Marinha) e o regresso ao relatório final da Operação Larga Agora, inteiramente batido. Espero que corresponda aos mínimos exigidos aí pela equipa. Cortem e emendem o que entenderem.

Um abraço,
Manuel Lema Santos


Texto enviado em 11 de Março de 2007, pelo Manuel Lema Santos

Operação Larga Agora, apenas uma entre tantas! (Parte I)
por Lema Santos

...O juízo que cada um faça de si próprio perde-se na primazia do julgamento que outros lhe outorgarem... (Vice-Almirante Ferrer Caeiro, 1976).


Introdução

Permitam-me que inicie este texto complementar com a referência filosófica acima, extracto de um texto escrito pelo punho do homem e militar que, de 1964 a 1967, conduziu os destinos da
Marinha de Guerra na Guiné.

Acreditando, ele próprio, estar a desempenhar da melhor forma o que lhe era pedido e exigido, ao serviço da Marinha e do País, como homem e como militar e, neste caso pessoal invulgar, também como aviador, que escolheu ser. E fê-lo muito bem, em minha opinião. Com dignidade, determinação, competência e bom senso. Também com muita autonomia e responsabilidade assumida. Era assim necessário...

Não me alongarei em apreciações sobre estratégias e competências militares, individuais ou concertadas, porque mestre e juiz da arte militar não sou. Deixarei essa tarefa à Instituição Militar competente para o efeito, no caso dos militares dos quadros permanentes que optaram, pessoalmente, por essa carreira profissional.

Tão pouco me dispersarei em divagações económicas e político-sociais que apoiem ou justifiquem juizos de valor históricos desajustados, invariavelmente precoces, tentando correlacionar indevidamente o que não é relacionável no tempo. Acontecimentos históricos de contexto social, político e económico profundamente dispares resultam em conclusões sofismadas.

Com o decorrer do tempo, investigadores, historiadores e sociólogos iniciarão a tarefa que prevejo ser bem longa. Acredito sim, piamente, que a História não se esgota em embalagens hermeticamente fechadas, por época ou acontecimento. Há sempre lugar para mais um aditamento.

Pessoalmente, limitei-me, como oficial da Marinha de Guerra da Reserva Naval, a desempenhar como melhor pude e sabia, as funções que me foram cometidas e para as quais fui formado.
A imagem que dessa época guardo foi indelevelmente esboçada e gravada no meu espírito e sentir, pelos locais que percorri, acontecimentos que vivi e em que participei. Também, em grande parte, pela arte de comandar de quem me dirigiu e a minha própria sabedoria de o transmitir correcta e ajustadamente, nas decisões que tive de tomar, aos colaboradores que tive a honra de dirigir.

1. O Tancroal em Amostras

Para quem navegava na Guiné, em LFG como a Orion, o rio Cacheu, lá muito para montante, a juzante de Binta, significava pouco mais do que 60 a 80 m de largo, um misticismo sereno, água e muito tarrafo, mesmo muito, alto e frondoso.

A navegar de montante para juzante, depois de deixar para trás a foz do rio Olossato, o tarrafo que, enquanto alto e espesso, oferecia protecção natural, primeiro estreitava a largura da faixa de vegetação larga e densa mas depois acabava mesmo se interromper totalmente, deixando a descoberto lalas e palmeirais, numa extensão apreciável e sempre ameaçadora.

Guiné > Região do Cacheu > Rio Cacheu > A LFG Orion navega no Cacheu, entre a foz dos rios Talicó e Sambuiá, a montante de Ganturé.

Foto: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.


Atingia-se assim, na região de Tancroal, em terra correspondente a Porto Batu, uma enorme clareira a bombordo para, ainda mais a juzante encontrar a Ponta do Pau e o respectivo porto.

A vulnerabilidade nestas condições era extremamente elevada, transformando o navio e outras embarcações que cruzassem aquela zona em alvos potencialmente fáceis de ser atingidos em emboscadas, muitas vezes ardilosamente montadas.

A passagem no local fazia-se sempre em postos de combate, o que significava cada elemento da guarnição no seu posto pré-definido, peças a fazer o varrimento da margem, concentração plena e dedos nos mecanismos de disparo. Quase sempre, alguns tiros de reconhecimento, na tentativa de prevenir e dissuadir alguma ameaça.

Reconheço que se fosse elemento IN e visse, próximo de mim, a pavonear-se à minha frente, mesmo nas minhas barbas, a transar, uma qualquer LFG com 42 m de comprimento e cerca de 10 m de altura a partir da linha de água, a tentação talvez fosse demasiado grande. A probabilidade de acertar era convidativa e, bom, se tivesse um RPG comigo...

Foi isto mesmo que sucedeu muitas vezes ao logo de 12 anos de guerra com ou sem operações Larga Agora. E volta que não volta, mesmo sabendo que as LFG navegavam com as anti-aéreas de 40 mm, as MG 42 e as ALG prontas a disparar e em companhia ou sós, com fuzileiros embarcados ou sem eles, candidatavam-se na mesma.

O prémio devia ser atractivo e, infelizmente para nós, foram várias vezes bem sucedidos, em alguns casos com perda de vidas e, noutros casos, com feridos graves, outras vezes ligeiros e ainda, em casos mais felizes, só sustos.

Por detrás de cada transporte civil, militar, fiscalização silenciosa, dia e noite, apoio a operações, escoltas a transportes, abastecimentos, evacuações e até partilha do que de bom havia num simples convívio, esteve sempre uma unidade da Marinha: LFG (Lancha de Fiscalização Grande), LDG (Lancha de Desembarque Grande), LFP (Lancha de Fiscalização Pequena), LDM (Lancha de Desembarque Média) ou LDP (Lancha de Desembarque Pequena) e, claro, os Fuzileiros.



Guiné > Bissau > LFG Orion atracada em Bissau. Visíveis na ponte, além de uma placa de honra do rio Cumbijã, o registo actualizado na altura, de ataques, impates e feridos
Foto: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.


De forma sucinta e discreta, prefiro-o, dou abaixo alguns exemplos da vida das gentes da Marinha que, muitas vezes na sombra e no isolamento de uma gaiola metálica, como as LFG e as LDG, ou em alguns casos autênticas caixas de sardinhas, as LFP e as LDM, silenciosamente, mas com determinação e eficácia cumpriram, até final, as missões para que foram nomeados:

– Em 27 de Abril de 1965, a LFG Orion, com a guarnição anterior à minha, foi a primeira a ser carimbada, com armamento ligeiro e metralhadora pesada. O resultado foi quase surpreendente pois 83 buracos de bala em todo o navio, sem acertar nos chocolates, foi obra! Mesmo assim, um marinheiro fogueiro, em dia de azar, ao subir para a ponte, acabou por ser atingido por uma bala de pesada num pé, na zona acima do artelho. Teve de ser evacuado.

– Em 4 de Agosto de 1966, novamente a LFG Orion foi atacada no mesmo local do Tancroal com armamento ligeiro e também com metralhadora pesada. Em resposta pronta e eficaz o navio silenciou o IN.

– Em 13 de Janeiro de 1968, a LFG Lira que escoltava a LDG Alfange, depois de ter transportado 3 companhias de FT de S. Vicente para Binta, foi violentamente atacada no Tancroal com RPG, sendo atindida na ponte e no rufo (cobertura) da casa das máquinas. O resultado, além dos estragos materiais, foi dramático: 1 morto e 8 feridos, alguns deles em estado grave, sendo 2 evacuados de helicóptero e 3 de Dornier.
Guiné > Bissau > A LFG Lira, já atracada em Bissau, ao lado da Orion, sendo bem visíveis, na ponte, os estragos provocados pelo rebentamento da granada de RPG, em chapa balística de 0.25 .

Foto: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.



– Em 2 de Março de 1970, a LFG Cassiopeia que acompanhava a LDM 305, foi atacada com morteiro, metralhadora pesada e bazooka, mais a juzante, próximo de Canja (Barro), junto à foz do rio Baião, numa pequena clareira. Inverteu a marcha e efectuou mais duas passagens, detectando as bocas de fogo e ripostando com as Boffors. Apenas alguns estilhaços atingiram o convés, nos rebentamentos junto à LFG.

– Em 20 de Maio de 1973 a LFG Hidra, frente à clareira de Jagali, a juzante da foz do rio Buborim, foi emboscada da margem Norte com RPG, armas ligeiras e morteiro 60 mm. O primeiro RPG deflagrou contra os cunhetes de munições da Boffors de vante, provocando rebentamentos e um grave incêndio, tornando a peça inoperativa. Reagiu de imediato e tudo acabou por se compor, não sem alguns estragos.
Foi elogiada a colaboração de elementos da CCP 121 e BCCmds (Baltalhão de Comandos) que, seguindo a bordo, conjuntamente com o navio, reagiram prontamente com o armamento de que dispunham. O resultado foram 3 feridos graves (Comandos) e 6 feridos ligeiros (Comandos, Paras e LFG).

- Em 5 de Agosto de 1973 as LDM 113 e 412, navegando em comboio de Ganturé para Farim, foram emboscadas violentamente no Tancroal com armamento diverso incluindo RPG. A LDM 113, que ocupava a 2ª posição na coluna, foi atingida por RPG em cheio no sector de ré, zona da cabine, toldo e convés. O patrão, Cabo M, teve morte quase imediata e o Mar C (telegrafista), gravemente ferido, veio a falecer no Hospital Militar de Bissau. Depois de reagirem aportaram a Bigene.

- Em 5 de Janeiro de 1974, a LFG Dragão, com as LDM 107 e 113, de braço dado, foram atacadas da clareira do Tancroal durante alguns minutos. A LDM 107, atingida com uma granada de RPG7 acima do convés, foi totalmente atravessada que ainda perfurou o costado da LFG. Mais 2 granadas de RPG atingiram a ponte da LFG e um terceiro destruiu as antenas de todas as unidades. Tiros de arma ligeira furaram a antena do radar. Estragos materiais enormes, 1 ferido grave (LDM 107) e 4 feridos ligeiros (LFG Dragão).

Guiné > Bissau > A LGF Lira > Os danos no convés, no rufo da casa das máquinas e nos botes de borracha dos FZ .

Foto: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.


Os acontecimentos referidos têm como base relatórios oficiais e são resultado da pesquisa que tenho vindo a efectuar há cerca de dois anos sobre a vida operacional das 10 LFG da Classe Argos. Obviamente, limitei o número de relatos a alguns casos notáveis. Simplifiquei cada relato, reduzindo-o a uma curta descrição e apenas naquela zona.

De 1963 e quase até 1975, o dispositivo naval foi alterado por diversas vezes e relativamente ampliado. Grosseiramente, seria um exercício aparentemente simples extrapolar dos exemplos citados para toda a hidrografia da Guiné e para um dispositivo naval que nos anos 70 chegou a incluir 7 LFG, 8 LFP, 3 LDG, 8 LDP, 24 LDM, 5 DFE e 2 CF. Haverá, com certeza, muitos factos e acontecimentos para pesquisar e citar historicamente.

O meu sentido respeito e homenagem a todos os que lá foram caindo inutilmente, de um lado ou de outro, mas também aos que, acreditando poder modificar os acontecimentos, se bateram sempre por esse objectivo ainda que não o tenham conseguido. Uma referência especial, em nome do Vitor Junqueira, a todos os militares que participaram directa ou indirectamente na operação abaixo relatada (3), exemplo de muitas outras.
(Continua)

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

(2) Vd. post de 6 de Fevereiro de 2007 >Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)
(3) Vd. posts de:

7 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1571: A Operação Larga Agora, o Tancroal / Porto Batu e as cartas náuticas do Instituto Hidrográfico (Lema Santos)

6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1567: Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753 (Vitor Junqueira)

2 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde
a todos
É com emoção que leio a descrição dos ataques sofridos pelas LFGs na Guiné
Fui imediato (RN) da LFG Dragão e recordo o ataque sofrido em Janeiro de 1974, descrito no blogg. Contudo, alguns meses antes, em 1973, a LFG Dragão sofreu um ataque muito mais violento, também no Cacheu, durante o qual foram registados alguns feridos ligeiros Houve , contudo um ferido grave (o qual teve depois a parte inferior da perna amputada e que caíu a 2 metros de mim) devido a um RPG que perfurou a chapa blindada e penetrou na ponte do navio onde nos encontrávamos. O ataque iniciou-se com fogo de metralhadoras ligeiras dirigido à ponte e visando o pessoal que lá estava (eu incluído). Várias granadas de morteiro apontado para o meio do rio caíram nessa altura muitíssimo próximo do navio, sem o atingir...Outros RPGs atingiranm o costado e penetraram no navio
Este ataque, bem mais violento, não está descrito na vossa lista
Obrigado
Cumprimentos
José Amaro Marques Nunes

Henrique Serrão disse...

Queria apenas fazer uma pequena correcção ao testmunho do sr. Manuel Lema Santos. A LFG "LIRA" escoltava a LDG "ALFANGE" e navegavam no sentido de Farim Binta e não de S. Vicente para Binta,como refere.Portanto desciam o rio rumo a Bissau com os militares com s sua comissão terminada.Quanto ao restante texto está correcto.

domingo, Outubro 26, 2014 9:08:00 da tarde