Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira foi alferes miliciano de uma companhia açoriana que fazia parte do COP 6, cujo comando era Mansabá. Sempre foi um homem exigente consigo e com os outros, como o prova este execertyod e e-mail que mem amdou a pedir para correcções de pormenor ao etxto que hoje se publica: "Como alguém (tu?) já disse, no Blogue não há lugar para mentirosos. Porque a mentira tem a perna curta, um mentiroso apanha-se mais depressa que um coxo. E na Tertúlia há sempre a possibilidade de alguém conhecer a versão autêntica da nossa história. Por isso despendi várias horas a redigi-la, consultando papéis, relendo relatórios, conferindo datas, para que fosse expurgada de imprecisões ou lapsos. Uma das vantagens de a guerra da Guiné ter sido feita essencialmente por milicianos, é podermos dispor hoje de imenso material classificado na mão de civis" (VJ).
Foto: © Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados.
Guiné > 1971 > Excerto do Relatório da Operação Larga Agora , na região do Oio (13-15 de Junho de 1971), em que participou o Vitor Junqueira, enquanto comandante de 2 Grupos de Combate da sua açoriana CCAÇ 2753... Apreciação do autor do relatório:
"Considero excepcional o comportamemto na função do Agr 5 (CCAÇ 2753) (-) do Alf Mil de Inf Victor José Anastácio Junqueira que, imbuído de alto espírito de missão, soube formnar com os 2 Gr Comb que comandava, uma equipa extremamente coesa e perfeitamente consciente do que lhe incumbia. Em todas as acções de contacto IN manifestou calma absoluta, clareza e rapidez de decisão. Julgo perfeitamente apto para comandar uma CCAÇ em operações".
Foto: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.
Texto enviado em 21 de Fevereiro de 2007 pelo Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa tertúlia (1).
Prezado amigo Luís,
Com a ousadia própria dos atrevidos, tomei de empréstimo um excerto de uma folhinha de Mestre Agostinho da Silva, como prólogo do episódio que hoje pretendo compartilhar com meus irmãos do mato. Fi-lo por duas razões, sendo a primeira aquela que emana do próprio texto, acrescida do receio de ser tomado como uma espécie de arrivista das letras, usurpador de um espaço que é de todos, ciente que estou de que jamais compactuarias com tal despautério.
A segunda razão tem a ver com o facto de Agostinho da Silva, de quem conheço pouco mais do que a biografia, me ter agarrado desde a primeira linha numa espécie de encantamento reforçado pelas entrevistas que deu para a televisão, e que acompanhei como um devoto. Figura singular, misto de profeta e frade franciscano, e acima de tudo, pedagogo experiente, cativava a audiência como certamente prendia os seus alunos. Aos meus olhos personificava o bom rebelde, de coração puro e despojado, para quem a estupidez humana constitui o maior drama do nosso tempo. Teria ele também alguma empatia com movimento anarquista, que tantas simpatias conquistou entre a estudantada dos meus tempos de Coimbra? (1)
“Queridos amigos,
Parece que toda a gente está de acordo em que o mundo inteiro se encontra em crise. Como isto me parece demasiado vasto para eu poder ser útil, decidi que sou eu quem está em crise e talvez consiga sair dela com três princípios: O de me ver livre do supérfluo, o de não confundir o verbo amar com o verbo ter, o de prestar voto de obediência ao que for servir, não mandar. Nestes termos comunico a todos os Amigos que não imporei a ninguém a leitura de textos meus …
Setembro de Lua Cheia e de 93.”
Agostinho da Silva, Filósofo, in Folhinhas.
E agora, vamos ao relato. Procurarei que seja tão rigoroso quanto a minha memória o permitir, tão neutro e isento quanto a farronquice deixar, apimentado q.b. para que não adormeçam ao lê-lo. Leva dedicatória:
“Para um tertuliano especial, o Manuel Lema Santos, que se reclama de meio chaparro, meio estremenho, integralmente português. Pelas palavras simpáticas e pelo desafio (*)”.
Quem desce Cacheu a partir de Farim em direcção ao Tiligi, deixando Binta para trás, chega a uma zona onde o Pedro Lauret viu a mina-vaca (**). Notará então que o rio descreve quatro curvas sendo uma delas, uma grande chouriça de concavidade virada para sul.
Nesta concavidade, situada a leste do Leto, acomoda-se a Ponta do Tancroal, uma projecção de terra firme que reduz ao mínimo a distância entre margens. Este acidente topográfico era inteligentemente aproveitado pelas forças do IN, como porta de entrada para as áreas do Oio e Morés. Posso garantir que em algumas ocasiões em que passei por aquelas bandas, não era difícil ouvir por cima do silêncio da mata, o ruído próprio de embarcações motorizadas (2) cambando o rio, certamente levando reforço em homens e material a uma vasta área onde as NT raramente incomodavam as populações sob controlo do PAIGC.
Conheci bem essa região. A beleza e serenidade da paisagem eram verdadeiramente idílicas. A fertilidade do solo, onde lalas e bolanhas bem cuidadas produziam milho, arroz, mandioca e hortícolas a que se juntava abundância de gado, evidenciavam uma excelente organização social e administrativa. As tabancas, constituídas por pequenos aglomerados de moranças construídas a céu aberto e não sob a copa das árvores como em outras zonas, apresentavam-se bastante dispersas, rodeadas por trincheiras, dispondo algumas, de abrigos e espaldões para armas pesadas.
Embora não existisse praticamente população civil desarmada (3), a tropa de linha, sujeita a movimentos de rotação e rendição como em qualquer exército convencional, ocupava instalações segregadas da restante população. Ao contrário do que muitos crêem, mantinha com os residentes apenas as indispensáveis relações em matéria de autodefesa e abastecimento de víveres. E nem sempre eram as melhores (4)!
A ligação entre estas populações e os militares era feita através dos comissários políticos, aos quais o braço armado do PAIGC se encontrava subordinado. Aqui constatámos também a existência de depósitos de bens essenciais, desde os alimentares a outros considerados de primeira necessidade como chinelos, panos e até material escolar. Possuíam instrumentos de medida e livros de escrituração. Julgo que estas estruturas seriam os embriões de outras de maior amplitude chamadas Armazéns do Povo, que viriam a ter um papel importante num ensaio de economia colectivista, no período pós-independência.
Ainda no Tiligi, foi-nos desvendado um enigma que durante muito tempo me intrigou. Sabendo que um dos grandes receios (terror!) das NT empenhadas em operações de maior envergadura era o de ficarem desmuniciadas, o que obrigava à celebérrima disciplina de fogo, como é que o IN emboscava duas, três vezes seguidas e tendo eles, armas com cadências de tiro idênticas às nossas, não pareciam afectados por este problema? A resposta é bem simples, tipo ovo de Colombo. Referenciados através de pontos conspícuos (5), dispunham de uma rede de mini-paiois que permitiam o seu remuniciamento contínuo! Como curiosidade, refiro que num desses paióis, além de algumas armas pesadas e respectivas munições, foram recuperados vários fardos de uniformes (6).
Entre a documentação apreendida, encontrámos alguns bons exemplos de como o PAIGC se preocupava tanto com a preparação para o combate dos seus elementos, quanto com a sua formação político-doutrinária. Sabemos que havia aulas de alfabetização em Português, e nos caderninhos de TPC abandonados junto aos postos de vigia (sentinela) podiam ler-se tanto expressões e palavras de ordem de conteúdo ideológico, como histórias para crianças e até poesia. Exemplares do Corão eram às centenas, bem como manuais militares exemplificando com gravuras, como deitar abaixo um helicóptero, montar uma emboscada ou confeccionar um fornilho. Tive a sensação de que entre os militares das FARP, não havia lugar para a ociosidade: Combatiam, trabalhavam ou estudavam. Também sabemos que o árabe numa das suas versões era ensinado às crianças por homens santos ou marabus, que percorriam as aldeias, tanto aquelas que estavam sob a nossa protecção como as que se encontravam nas apregoadas áreas libertadas.
Operação Larga Agora (13 de Junho de 1971)
Quem manda, pode! E quem podia naquele Território no longínquo ano de 1971, ordenou que se fizesse uma operação de limpeza na região cujo retrato sumário acabei de vos apresentar. Para uma tal empresa que, foi decidido, teria a duração de três dias (7), coisa rara na Guiné como todos sabem, foi reunida a fina-flor da nossa tropa: Fuzos, comandos brancos e pretos e páras (8). A representar a tropa arre-macho estava aqui o vosso amigo Junqueirita y sus muchachos (9).
Quanto a ordens, … as do costume, simples, claras e concisas: Destruir, queimar, inutilizar os meios de vida. Relativamente aos elementos armados do IN, diziam-nos para os “capturar, eliminar ou no mínimo expulsar da ZA”.
Passo agora a vista pelo relatório da operação onde leio que o primeiro dia de trabalho começou com a execução de (transcrevo) “um héli-assalto sobre objectivo IN em Binta 5 D7-34 (10). Captura-se material que é evacuado por meios héli em 131000Jun.
A partir desse ponto, as NT iniciaram a progressão no terreno, segundo linha de orientação geral definida em Ordop …” que nos havia de levar até ao Tancroal (11) e depois, em sentido descendente, às tabancas de Suntucuia, Solinto Mandinga e Sibicunto, entre outras (12).
Operação Larga Agora (14 de Junho de 1971)
O segundo dia começou ainda melhor. Ao alvorecer, um grupo IN que ao fim da tarde do dia anterior nos tinha impedido de tomar um tabancal, caiu numa emboscada montada por nós. Ficámos a ganhar por vários a zero e capturámos mais material.
Interrogatórios para exploração imediata (13), forneceram dados importantes quanto aos efectivos das FARP e sua localização. A meio da manhã encontrámo-nos com a 121ª de paras. Um dos alferes deu-me conta de que o nosso ronco estava a ser muito apreciado em Bissau. Pouco depois, o PCV passa sobre a nossa vertical dando ordem para que fosse montada de imediato uma segurança, que permitisse ao Maior dirigir-se às tropas da CCAÇ (14). Foi um momento de grande apuro já que aquela era a pior altura para receber o Comandante-chefe.
À nossa volta havia pequenos grupos de elementos armados dispersos pela mata (15), e os rebentamentos, nossos, do IN e das munições de todos os tipos escondidas no interior das moranças em chamas, eram contínuos, tornando considerável o risco de um acidente durante a aterragem ou descolagem. Um pequeno campo de milho fez de heliporto onde o Alouette que transportava o nosso General não tardou a pousar. Começaram a desembarcar, Spínola e o seu séquito (16). Em passo de corrida, dirigi-me ao Velho e comecei bem, como se segue…
- Meu general, apresenta-se o alferes …
Não me deixou terminar a lenga-lenga. Cortando-me a palavra com indisfarçada irritação, disse-me:
- Ó nosso alferes, não é consigo que eu quero falar, é com o seu comandante. Vá lá chamá-lo.
Aí, alto e pára o baile, senti-me beliscado. Enchi o peito de ar e repliquei:
- Pois saiba, meu general que, aqui, o comandante sou eu! - E que ninguém duvide: Pus o homem em sentido quando lhe disse que ali quem mandava era eu! O tom da conversa mudou logo.
Mais f... do que eu devia estar o piloto, obrigado a aterrar numa barafunda daquelas. Manteve o rotor a girar à força toda e fez muito bem. Os cavalheiros, também não se descuidaram muito no chão.
O Homem olhou para mim com um ar que eu não sei se foi de tristeza ou desolação. De espanto foi certamente. Esperaria ele encontrar um façanhudo capitão, educado pelos mestres da Academia nas mais avançadas técnicas da contra guerrilha, curtido pelas duras batalhas do sertão? Saiu-lhe uma coisa bem diferente; um piço de um rapazito quase imberbe, meio enfezadote, negro de fuligem, com um fez enfiado na cabeça (devido à deserção do quico), e um belo par de botas de cabedal made in Checoslováquia à cintura, fazendo contrapeso ao cantil (17). Na sua expressão li o mais puro desalento. Adivinho-o a pensar: Ao que nós chegámos!
Se calhar foi aí que percebeu que mais valia dedicar-se à escrita e terá decidido começar a alinhavar Portugal e o Futuro! Jogou a mão a uma carta que um dos seus acompanhantes lhe estendia e ordenou-me que, sobre ela, lhe mostrasse quais os objectivos atingidos e o que é que nos faltava fazer. Depois de uma breve explicação, bateu uma palada e afastou-se, não sem antes dizer a um simpático major que o acompanhava:
- Ó Senhor major, faça o favor de ver de que é que estes homens precisam.
O major era um homem polido, muito atencioso. Falei-lhe do cansaço, da água e da comida que já não tínhamos (18) e do estupor da G3, pesadona, comprida, pouco jeitosa para quem tinha que manobrar rádio, cartas, bússola etc. No fundo eu estava-me a fazer a uma kalash! Escutou-me, interessado. Despediu-se com um abraço, juntou-se ao grupo e partiram.
Operação Larga Agora (15 de Junho de 1971)
O resto desse dia e o seguinte decorreram na mesma toada. O momento mais difícil aconteceu durante essa noite (do segundo para o terceiro dia) no local destinado à pernoita, próximo da clareira do Tancroal. Pareceu-me ser o sítio mais seguro, pois tendo o rio a norte, bolanhas a E e W, apenas teríamos que nos preocupar com o flanco sul. Tinha o inconveniente de, no caso do IN nos barrar a retirada, ficarmos mais ou menos encurralados. Sabíamos que os seus olheiros tinham espiado os nossos passos durante toda a tarde, pelo que nos mantivemos em movimento e só alta noite nos dirigimos para o local escolhido.
Mandei instalar em círculo e abrigar o melhor possível. Buracos escavados no chão com a faca de mato onde pudéssemos enfiar a cabeça, troncos de árvore, termiteiras, crateras das raízes das palmeiras caídas, tudo serviu como antepara para o caso de um eventual ataque nocturno. Montada a segurança com sentinelas dobradas, passámos uma rasteira à fome com o que nos restava nos bolsos. Quando começávamos a acreditar que um pequeno descanso era possível, irrompe o maior arraial de morteiro 82 mm de que guardo memória. Toda a zona onde fomos avistados por altura do sol-posto, foi batida com uma intensidade tal, de que só vos poderei dar uma ideia dizendo que pelo meu cálculo, foram disparadas mais de 500 granadas.
Felizmente, os rebentamentos davam-se bastante a sul da nossa posição. Fora o nervoso miudinho, no nosso canto reinava o maior sossego. Este festival durou várias horas, até que pelas quatro da manhã, um dos meus camelos, o Amorim, faz um disparo acidental de G3. Acho que não é difícil imaginar o resto da história. Uma nuvem de chispas de lume, falhas de aço incandescente, pó, terra, fragmentos de baga-baga, ramos de árvores, rodopiaram por cima da nossa posição num frenesim diabólico. Nós, nem um pio! Ao fim de cerca de uma hora, cansaram-se, esgotaram as munições ou convenceram-se de que não estaríamos lá? Quando a calma reinou de novo e os nervos descomprimiram, deu para perceber que tivéramos a protecção de Alguém. Exceptuando pequenas beliscaduras nos cromados, não havia ninguém ferido!
Uma Uzi novinha em folha para o Sr. Alferes
Não sei quanto tempo decorreu entre o encontro com o Estado-maior e uma inesperada visita do General ao K3, umas semanas, não mais. Ouvi dizer que ele era muito niquento no que dizia respeito ao aprumo da tropa aquando das suas visitas ao mato. Disseram-me que alguns comandantes de Companhia teriam apanhado umas porradas por o seu pessoal se apresentar abandalhado.
Desta vez o héli chegou sem qualquer aviso. O pessoal disponível encontrava-se empenhado no restauro da cozinha e refeitório das praças. Tronco nu, esfrangalhados, suados que nem porcos, transportávamos cibes ao ombro, que no meu caso já sangrava, amassávamos material para a confecção de blocos ou trabalhava-se de pá e picareta. À vista do heli, o pessoal formou rapidamente em U, tal como estava. O General, acompanhado por um major, dirigiu-se à Companhia com palavras de circunstância, não fazendo qualquer reparo quanto ao traje. Reiterou a promessa anteriormente feita de que a breve prazo retiraríamos para Bissau em recompensa dos bons serviços prestados, o que nunca aconteceu.
O major que o acompanhava avançou então para mim e, entregando-me uma arma que trazia consigo, disse com a maior simplicidade:
- Sr. alferes, aqui tem a sua arma! É uma Uzi novinha em folha. Olhe, igual à sua, só existe outra na Guiné. Com a arma vinham mais quatro carregadores.
Fiquei emocionado. Primeiro, porque tomei esta prenda como mais uma prova de grande consideração. Depois, por tê-la recebido da mão do senhor major Correia de Campos.
E ao evocar o nome deste brilhante militar, apetece-me dizer, com Ortega y Gasset: “Os temas fundamentais da História não são produto do colectivo, mas de indivíduos de excepção”.
P.S. - Acabo de saber da morte de Barbosa Henriques (***) que foi comandante da 27ª de Comandos. Participámos em várias operações conjuntas. Embora o convívio não tenha sido suficiente para nos tornarmos amigos, sei que era um Homem íntegro. Nesta hora triste, apresento à família sentidos pêsames. E peço a Deus que seja misericordioso com a sua alma.
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Notas de V.J:
(1) Por alturas do 25 de Abril de1974, ia eu a descer a Av Sá da Bandeira, quando a propósito das comemorações do primeiro 1º de Maio em liberdade, li num muro a seguinte convocatória:
“Dia 1 de Maio todos à Portagem. O 1º de Maio é vermelho. MRPP”.
E alguém acrescentou por baixo e autenticou com o conhecido selo dos anarcas: "Também os Índios eram vermelhos, e foderam-nos todos!"
Sarcasmo, humor corrosivo e descomprometido, provocação irreverente, não tive dúvidas de que aquela era a chanca para o meu pé!
(2) O mesmo tipo de operação, constatei-o, era efectuado noutro trecho do Cacheu um pouco a leste da sua confluência com o rio de Jumbembem. Na área de Madina Mandinga-Gebacunda, também na margem esquerda do Cacheu, testemunhei outro facto insólito: o vai-e-vem de um helicóptero que, passando próximo da minha vertical, operava claramente um transbordo entre as duas margens em voo a muito baixa altitude, pelo que não pude avistar o aparelho. Questionada a FA sobre a possibilidade de haver algum meio aéreo nosso, naquela zona, a resposta foi: Negativo.
(3) No início da minha experiência de combate, fui indecentemente comido com informação que classifico de uma forma soft, como pouco honesta. Disseram-me: Nesta operação (…), você vai encontrar no máximo um bigrupo do IN, segundo as informações que temos. Não me disseram que para além desse contingente das FARP, havia outros tantos ou mais elementos das FAL, Pioneiros e populares armados, todos exímios a puxar o gatilho. Assim como me omitiram que antes de mim, já outras forças como a 27ª Companhia de Comandos, e a 121ª de Paras, se não me engano, a CART 2732 do Carlos Vinhal, tinham tentado tomar o objectivo. E todos trouxemos o que contar. Aprendi a dura lição em Fátima. Um dia, hei-de falar-vos deste caso pouco clínico!
(4) Nestas áreas, as FARP recorriam por vezes ao confisco de mantimentos assim como ao recrutamento (à má fila) de carregadores, o que não as tornava particularmente simpáticas!
(5) Ponto conspícuo significa qualquer elemento bem visível, natural (p. ex. pico, ilhota, rochedo, falésia, árvore de grande porte), ou construído pelo homem (edifício, torre, antena etc.) cuja localização no terreno sabemos corresponder a uma determinada posição geográfica indicada nas cartas de navegação. Tem mais ou menos o mesmo significado que conhecença. Na marinha usamos frequentemente estes pontos na preparação das aproximações a terra (aterragens) e na navegação costeira ou de cabotagem. No TO, ponto conspícuo poderia ser uma certa árvore, um baga-baga com determinada forma ou dimensão, o recanto de uma bolanha, um cruzamento de trilhos etc.
(6) Entre as armas pesadas havia antiaéreas, Browning 20 mm e Bredas. Fardamento de origem … francesa, havia-o de dois tipos: Fardas de caqui bege, iguais às dos legionários, e camuflados idênticos aos usados pelas tropas francesas na guerra contra a FNL (Argélia). Com aqueles camuflados vestidos, nunca encontrei ninguém. Julgo que por serem demasiado claros, mais próprios para o deserto. Já os de tipo legionário pareciam agradar ao pessoal das FAL.
(7) Operação Larga Agora. Decorreu nos dias 13, 14 e 15 de Junho de 1971. A minha Companhia já anteriormente tinha efectuado, à sorrelfa, algumas intervenções naquela área, do tipo saltar dos hélis, escaqueirar qualquer coisa, botar fogo e, … dar às de vila Diogo. Nos RVIS que por vezes se efectuavam alguns dias depois, aparecia tudo reconstruído!
(8) A respeito das tropas paraquedistas, afigura-se-me da mais elementar justiça fazer o seguinte comentário:
É minha convicção que na frente de combate, onde toda a vaidade se acaba, onde até o fraco faz força e mesmo o valente se caga, não há lugar para elitismos. Todos dão o seu melhor, quanto mais não seja para safar o próprio pêlo, o que é mais do que legítimo. Contudo, os paraquedistas que conheci na Guiné, 121ª e 122ª Companhias, eram realmente diferentes entre iguais. Sei que eram duros com o Inimigo, bravos debaixo de fogo, eficientes na acção, por esta ou qualquer outra ordem! Os resultados obtidos, as condecorações justamente atribuídas, atestam-no.
Mas aquilo que aos meus olhos os tornava a nossa melhor tropa de elite, sem desprimor para outros, eram a sua humildade, educação, respeito e cortesia para com os camaradas de outras forças. Chegava a ser embaraçoso quando, por ex., num alto para curto descanso no mato, à aproximação de um graduado (alferes) de outra força, todo um pelotão se punha de pé, incluindo o seu comandante! Pouco dados a fanfarronices, - nunca ouvi um pára gabar-se dos seus feitos individuais ou colectivos - , comandados por um militar de excepção, o coronel Rafael Durão, deixaram a todos nós o mais belo exemplo daquilo que deve ser o comportamento de tropas em campanha.
Espero que os páras de hoje continuem a ser os dignos herdeiros dos feitos valorosos dos seus camaradas de há quarenta anos, e que em qualquer parte do mundo para onde os mandem, o nome e o prestígio de Portugal e das suas Forças Armadas estejam no centro das suas preocupações. Admiro-os a tal ponto que, na próxima encarnação, se ainda existir serviço militar, eu quero ser paraquedista!
PS - Esclarecimento posterior de do comandante da CCP 121, Nuno Mira Vaz - hoje coronel paraquedista na reserva, e historiógrafo -, na altura em que a unidade esteve afecta ao COP 6, Mansabá: o coronel Rafael Durão, irmão do Rafael Durão (este nunca foi paraquedista) era então o comandante do CAOP1 em Teixeira Pinto, e de facto era um militar de excepção. O Comandante do BCP 12 era, por sua vez, o Tenente-Coronel Horácio Oliveira .
(9) Eles não eram os meus homens, nem os meus amigos, nem os meus camaradas. Eram tudo isso e muito mais. Por isso utilizei o espirituoso (acho eu!) castelhanismo, por me parecer que traduz mais adequadamente o sentimento que nos unia. E quer os meus amigos acreditem ou não, se eu me mandasse ao poço a rapaziada saltava de seguida. Habituaram-se àquele fado e acabaram por gostar. Como é possível alguém dizer tal baboseira, ouço-vos perguntar. É pura verdade. A prová-lo está o facto de, homens que nada tinham a ver com os tiros, como mecânicos, corneteiros, condutores, impedidos, sargentos da secretaria, básicos e cozinheiros, pedirem para alinhar. É certo que alguns juraram para nunca mais, mas muitos repetiram!
(10) Na proximidade de uma grande tabanca chamada Amina Dala, situada meia dúzia de quilómetros a sul de Leto (vd. carta de Binta). Estava muito bem defendida em termos de organização no terreno e possuía uma numerosa guarnição. Só levou chumbo quem trazia arma na mão.
(11) A partir daí e até à margem do rio, havia uma estreita faixa de tarrafo e bolanhas, domínio absoluto e incontestado dos nossos camaradas da marinha. Para nós caçadores, sentir humidade nos pés era do pior que nos podia acontecer. Eles, pelo contrário, movimentavam-se naqueles terrenos como peixe na água. Cada qual é p’ró que nasce!
(12) Nos três dias da operação, a CCAÇ 2753 destruiu 29 núcleos de tabancas (do relatório de operações).
(13) Os movimentos héli destinados à evacuação de material e prisioneiros serviam também para o nosso próprio reabastecimento em munições. Num desses movimentos, trouxeram-nos um intérprete.
(14) Do registo Factos e Feitos, retiro a frase: “Junto das NT esteve Sua Excelência o General Comandante-chefe que foi felicitar as mesmas”.
(15) Uma das causas em que assentou o sucesso desta operação teve a ver com uma certa táctica que consistiu em, uma vez tomado um objectivo, passar rapidamente à perseguição do IN cuja posição nos era fornecida pelo PCV, não lhe dando tempo a que os seus elementos se reagrupassem ou juntassem à guarnição do objectivo seguinte.
Numa dessas perseguições, dois FIAT passam sobre as NT, sobem até ficarem do tamanho de mosquitos e, de cabeça para baixo, a toda a mecha, largam duas alfarrobas à minha ré. Preparam-se para repetir quando eu chamo:
- Ó Tigre, Ó tigre … estou a ser batido pelo seu fogo. - E o Tigre responde:
- Vocês são pretos?
- Negativo, respondi.
- Então têm pretos convosco?
-Também não. - Ao que o Tigre replica:
- Eu só vejo pretos e além disso, vocês não era suposto estarem nessa posição!
E dito isto, bota abaixo, mais duas … mais longe. Ninguém se aleijou.
Aproveito para esclarecer que os pretos que os tipos viam, éramos nós próprios, com a pele negra pelo pó e fumaça que se agarrava ao rosto suado. Admito no entanto que na nossa retaguarda tenham avistado um dos tais grupos desgarrados do IN que cirandavam à nossa volta, incomodando-nos constantemente. Se assim foi, ... ainda bem!
(16) Séquito de que habitualmente faziam parte militares de primeira água que tive a honra de conhecer como Firmino Miguel, Carlos Fabião, Carlos Azeredo, Almeida Bruno, Pedro Cardoso, Ricardo Durão.
(17) Na Companhia havia um rapaz, por alcunha o Fafe, Osvaldo de Oliveira de seu nome, transmita de especialidade, que espontaneamente se dispunha a dar uma compostura cristã aos cadáveres do IN. Fechava-lhes os olhos, recolhia as armas e munições, documentos, e às vezes, peças do equipamento e fardamento. Foi assim que entrei na posse das botas. Carreguei com elas durante três dias para verificar ao experimentá-las, que me faltavam……quilómetros de pé. Acabei por oferecê-las ao chefe da tabanca, para o compensar de um fartum de porrada que lhe tinha aplicado uns tempos antes.
(18) Alguém imagina o carregamento de munições que cada homem transportava para uma operação de três dias? E ter que carregar ainda com rações de combate para o mesmo tempo? Pois os açorianos adoptaram uma técnica própria para obviar a este transtorno: Comiam tudo no primeiro alto e o que não comiam deitavam fora. A fome suportava-se bem com a ajuda de algumas coisas que íamos encontrando nas tabancas. Foi numa destas que comi cabrito-pé-di-rocha (****) pela segunda vez. Ainda estava a cozinhar num recipiente de barro sobre umas brasas. Disseram-me que não comesse, podia estar envenenado! Qual quê, caiu que nem ginjas.
Com a água o caso era mais complicado. Poupavam-na enquanto podiam, mas uma vez esgotados os cantis, nem sempre dávamos com os poços da população onde reabastecíamos com uma água leitosa mas muito agradável ao paladar. Nesta operação aconteceu em determinado momento ter de me por à frente deles, e ameaçar que daria um tiro no primeiro que bebesse água salgadíssima de um regato.
O terceiro elemento causador de grande desgaste físico e psicológico era o insuportável frio nocturno, sobretudo se acompanhado de cacimbo. A única forma de descansar um pouco consistia em encontrar uma cova onde coubessem dois ou tês homens se aconchegavam o melhor que podiam.
Um abraço para todos.
Pombal, terra do Marquês, figura que detesto, aos vinte e um dias do mês do Entrudo, do ano em que o Alberto João se demitiu.
Vítor Junqueira (*****)
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Notas de L.G., editor do blogue:
(*) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1526: Em louvor do comandante Vitor Junqueira (Lema Santos)
(**)Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)
(***) Vd. post de 19 de Fevereiro de 2007
Guiné 63/74 - P1536: Morreu Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)
(****) Vd. post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)
(*****) Vd. posts da série de:
18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753
23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas
31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto
5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida
31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 6 de março de 2007
Guiné 63/74 - P1567: Histórias de Vitor Junqueira (8): Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753
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