sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira foi alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). É médico e vive em Pombal.

Texto enviado pelo Vitor Junqueira, em 15 de Novembro de 2006.

Luís,
A continuação de um excelente trabalho nesta tarde chuvosa e triste, são os meus votos.

Tenho reparado que a nossa tertúlia foi até agora capaz de elaborar excelentes textos sobre a participação das respectivas unidades nas campanhas do Ultramar. Mas de uma maneira geral, pouco ou nada se tem dito sobre os antecedentes pré-mobilização dessas unidades, cuja existência começou muito antes da chegada ao teatro de operações. Parece-me importante que se fale dessas origens e dos laços que a elas nos ligam, assim como do papel que desempenhamos na sua formação.

De facto, e exceptuando os casos de rendição individual, à data de embarque a nossa Companhia já era para muitos de nós uma espécie de segunda família. Tínhamo-nos conhecido meses antes e o treino daqueles rapazes fora responsabilidade nossa. Então, haverá certamente muita história para contar, montes de peripécias ...

Neste sentido, mando-te um texto que poderás editar e publicar no Blogue se achares que tem qualidade para tal.

Um abraço

PS - Eu não esqueci a receita do cabrito-pé -di-rocha (1). Mas antes, ainda quero falar-te do leitão de S. Tomé e do rato que andava à boleia!


A Tropa e o Direito de Opção

A História da formação da Companhia a que tive a honra e imenso orgulho de pertencer, merece ser contada. Até onde o meu conhecimento pode chegar, tratou-se de caso único no longo rol de treze anos de mobilizações com o envolvimento de perto de um milhão de homens.

Esta unidade, como centenas (ou milhares?) de suas irmãs, terá sido concebida num Estado Maior qualquer lá para os lados de Lisboa. Mas foi numa bela ilha açoreana (2) que viu a luz do dia, mais concretamente no Batalhão Independente de Infantaria nº 17, sediado em Angra do Heroísmo, ilha Terceira.

Consta do seu BI que foi oficialmente registada a 9 de Maio de 1970, no Anexo VI à Ordem de Serviço Nº 110 daquela unidade, tendo-lhe sido atribuído o nome de Companhia de Caçadores nº 2753 e o apelido OS BARÕES (3). No crachá, viria a ostentar a legenda NOBLESSE OBLIGE.

Da sua meninice, pouco há a dizer. A não ser que foi educada com mais duas irmãs gémeas, por uns estarolas a quem as famílias açoreanas entregaram os filhos na incorporação de Janeiro de 1970. Para o efeito, aspirantes e cabos milicianos, foram os senhores de serviço. Era pessoal que se dava bem, e de uma maneira geral já se conheciam do COM e CSM [ Cursos de Oficiais e Sargentos Milicianos]. Haviam chegado uns dias antes e foi a eles que muitos pais pediram que tomassem bem conta daquelas prendinhas. Os capitães, todos de aviário, estavam ainda em Mafra a frequentar o CPC [ Curso de Preparação de Capitães] e só se juntariam a nós praticamente no momento do embarque. Por isso, os chavalitos recém-alistados ficaram entregues aos bichos.

A instrução decorreu em ambiente real , muito bélico! Pautou-se por uma regra bastante incomum nas nossas FA, ... a ausência de regras! Ou quase. Não quero dizer que a tropa se encontrava em autogestão. Ainda não, naquela altura. Aquilo que porventura terá feito a diferença relativamente a outras escolas de recrutas daquela época, foi a enorme liberdade de acção que nos foi concedida em matéria de instrução. O limite estava apenas na capacidade e imaginação de cada um. Era a fórmula percursora do dois em um, trabalho sério e muito divertimento em simultâneo.

Eu próprio caçava gaivotas em voo a tiro de Mauser. Ou lagartixas, nas encostas do Monte Brasil com uma Manelicher .22, montado numa vaca tourina, propriedade do departamento de pecuária do quartel. Os graduados espicaçavam-se mutuamente na mira de que os respectivos pelotões fossem reconhecidos como os melhores. Muita adrenalina e uns cagagésimos de testosterona a bater forte na mioleira e eis que do olímpico lema Mais rápido, mais longe, mais forte, se resvalou bem cedo para o alentejaníssimo Olha sem mãos, olha sem pés, olha sem olhos, olha sem dentes ...!

Não se fique no entanto com a ideia de que era a desbunda completa. Muito pelo contrário, havia a consciência nítida de que todos acabaríamos por ter de participar na guerra a sério. Daí a crença de que através de uma instrução dura e realista (?) se poderiam superar futuras dificuldades do combate.

Por falar em crença, eu acredito que se Nosso Senhor não gostasse de malucos não tinha feito tantos. Neste caso porém, Deus deve ter-se descuidado, porque além de fazê-los, juntou-os. Claro está que nos dias de hoje, com tanto realismo, teria ido tudo parar à pildra! E porque é que não foi? Não sei explicar, mas suspeito que os maiores gostavam do que viam.

Imagine-se que até fomos parabenizados por termos conseguido resolver um problema complicado que o tenente lateiro (sem ofensa!) responsável pela metralha, tinha entre mãos: Uma sobredotação de milhares de munições para todo o tipo de armas em uso no EP que haviam sido abatidas ao stock, no papel, mas continuavam amontoadas nos paióis. Um perigo! Rebentamos com o que era para rebentar e queimamos o que era para arder, limpámos a despensa. E mais que houvesse!

De nada valeram as muitas queixas que as forças vivas da terra dirigiram ao Cmte. Ele eram os rebentamentos da instrução nocturna que não deixavam dormir ninguém, ou os vidros das janelas que tremiam tanto que alguns até caíam, ou os projecteis que se despenhavam sobre os telhados. Ou ainda os familiares dos rapazinhos que achavam que estes estavam a ser puxados em demasia, e disso davam conta ao comando. O capitão director de instrução avisava a maltosa para ter cuidado mas, ... nada a fazer. Era daquilo que o nosso povo gostava! Certo é que, sem grandes incidentes embora com alguns infelizes acidentes, recruta e especialidade chegaram ao seu termo.

Não me recordo qual o número exacto de jovens incorporados. Mas sei que eram em número suficiente para constituírem três companhias de instrução que foram dadas como prontas em finais de Abril ou princípio de Maio de 1970. A partir dessa altura, entrou-se em regime de serviços mínimos enquanto se aguardava a ordem de mobilização. Nesta fase, já o Alf Junqueira, a minha modesta pessoa, sabia que o seu destino era a Guiné, pois tinha-me voluntarizado ainda em Mafra. Para os outros, e como se pode calcular, o suspense era enorme. Finalmente, a 9 de Maio de 1970 é afixada no placard a tão ansiosamente esperada OS nº 110 que no seu Anexo VI decreta que as Companhias 2753 e 2754 seguem para a Guiné enquanto a 2755 vai até Moçambique.

Tínhamos então uma pool de prontos que, tendo terminado a instrução, iriam integrar as Companhias mobilizadas. E então? Qual o critério a seguir na distribuição daquelas centenas de homens por cada uma das companhias? Desconheço o modus operandi em uso nas outras unidades mobilizadoras. Posso contudo presumir que, a superior inteligência de algum burocrata elaboraria listagens apropriadas com base em classificações disto ou daquilo. Não foi o caso. A questão resolveu-se de uma forma muito mais simples, directa e sobretudo democrática! Note-se que o 25 de Abril de 1974 só chegaria uns anos mais tarde! E foi assim: Numa data que não posso precisar, mas que situo na segunda semana de Maio de 1970, reuniu-se todo o pessoal na parada e perguntou-se à cambada:
- Quem quer ir com os alferes tal e tal, para a Guiné? Tá a formar.
- E quem quer pertencer à Companhia dos alferes fulano, sicrano e... , que também vai para a Guiné? Tá a formar daquele lado.

E a mesma treta para os desgraçadinhos que iam para Moçambique, que por exclusão de partes foram os que não couberam na 2753 e 2754.

Lindo trabalho! Durante uma semana, houve quem estivesse oficiosamente mobilizado ora numa ora noutra das companhias que iam para a Guiné, acabando por decidir viajar até Moçambique, e vice versa! Devo acrescentar, embora me custe porque volto a dizê-lo, sou uma pessoa modesta (!), a 2753 foi obrigada a rejeitar alguns candidatos ou teria de embarcar com um efectivo muito superior ao que determinavam as NEP.

Aproveitando a liberdade de escolha que lhes era oferecida, os rapazes organizavam-se em grupos com afinidades tão diversas como a amizade, a conterraneidade, o parentesco ou a existência de algum conhecido já a prestar serviço em algum daqueles Territórios. E como grupo, optaram. Até à estabilização final, estes grupos fizeram-se e desfizeram-se ao sabor da intuição, do impulso momentâneo ou até do convite do camarada da companhia do lado.

Olhando para todo o processo com o distanciamento de mais de trinta anos, acho que o modelo funcionou muito bem, a todos os níveis. O resultado foi a meu ver excelente, já que conferiu a estas unidades uma coesão e espírito de corpo que seriam muito mais difíceis de alcançar através da mobilização formal e burocrática.

Do ponto de vista operacional, as coisas não poderiam ter corrido melhor. No plano pessoal e humano, basta dizer que embora nos encontremos espalhados pelos quatro cantos do mundo, e lembremo-nos que os açoreanos são emigrantes congénitos, continuamos tão unidos quanto uma família. Cada um de nós sabe e interessa-se pelo destino dos outros. De dois em dois anos, encontramo-nos numa das ilhas dos Açores para compartilhar pedaços das nossas vidas.
Acho que foi bonito. E valeu a pena, sem dúvida!

Vitor Junqueira (3)
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Notas do V.J. :

1 - Este texto foi elaborado com base em dados retirados do volume História da Unidade.

2 – A CCAÇ 2753, embarcou para a Guiné a 8 de Agosto de 1970 onde desembarcou a 17, ficando provisoriamente nas instalações do Batalhão de Serviço de Material.

3 - A Companhia 2754, sua gémea, assentou arraiais em Bula, tendo sido posteriormente destacada para o Sector Leste (Piche ou Pirada ?).

4- O B.I.I. 17 já não existe. Deu lugar a uma Unidade chamada R.I.A. (Regimento de Infantaria dos Açores?). Julgo ter ouvido dizer que é uma das Unidades que vai ser desactivada.

5 - Nesta Unidade existe um memorial dedicado à CCAÇ 2753.

6 - A maioria dos elementos que constituíram esta Companhia era de origem açoreana, estando representadas todas as ilhas. Os restantes eram de origem continental, só não havendo nenhum ribatejano. Existia um elemento guinéu.

7 - No I.A.O. que decorreu na região de Caneças e Serra da Carregueira, um GC da Companhia “obteve folgadamente o 1º lugar no campeonato de Tiro de Combate da Região Militar de Lisboa”.

8 - A Companhia 2753 representou o Exército no desfile militar das comemorações do 10 de Junho de 1970, no Terreiro do Paço.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

(2) Grafia de açoriano: a forma correcta é esta, embora também exista a variante ortográfica açoreano, usada aqui neste e noutros posts. Vd. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

(3) Vd. posts de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim2

7 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

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